Sesc SP

postado em 13/07/2021

(Re)encontro com a cena contemporânea

Cena de Os náufragos do Louca Esperança (2011). Foto: Ed Figueiredo
Cena de Os náufragos do Louca Esperança (2011). Foto: Ed Figueiredo

      


Em edição revista e ampliada, Encontros com Ariane Mnouchkine: erguendo um monumento ao efêmero, de Josette Féral, revela as leis fundamentais que regem o Théâtre du Soleil

 

Quando Ariane Mnouchkine começou sua carreira na efervescente cena teatral europeia dos anos 1960, havia muitas questões sobre as quais atores, diretores, dramaturgos, cenógrafos e críticos eram chamados a debater. Qual é a natureza do trabalho do ator? Que papel assume o diretor em uma montagem? Que lugar o texto ocupa na cena? Quais são os limites do palco tradicional e da utilização de espaços alternativos? Que diferenças há entre a ideia de teatro clássico e contemporâneo? Disposta a compreender melhor a complexidade de tais indagações e a dar, ela mesma, sua contribuição à arte da cena – o teatro daqueles anos rebeldes privava de uma prontidão crítica e de uma postura participante jamais vistas até então –, a jovem diretora fundou a Associação Teatral dos Estudantes de Paris (ATEP), grupo de teatro universitário responsável por dois espetáculos: Gengis Khan, de Henri Bauchau, e Bodas de sangue, de Federico García Lorca.

Após a dissolução da ATEP em 1962, Ariane empreendeu uma longa viagem ao Oriente, com passagens por Camboja e Japão, onde entrou em contato com as diferentes formas de teatro que já haviam fascinado tantos artistas do Velho Continente. Dois anos depois, junto a alguns amigos, a diretora fundou a Compagnie du Théâtre du Soleil, à frente da qual suas qualidades de encenadora foram pouco a pouco sendo reveladas. Os pequenos burgueses (1964), de Máximo Gorki, em adaptação de Arthur Adamov, Capitão fracasso (1965), de Théophile Gautier, e A cozinha (1967), de Arnold Wesker, foram as primeiras montagens da trupe. Não tardou muito para que os acontecimentos de maio de 1968 chegassem à recém-fundada companhia (ano em que, emblematicamente, o grupo encena Sonhos de uma noite de verão, de Shakespeare), levando seus integrantes a adotarem práticas diretamente ligadas ao ideário dos jovens estudantes que protestavam nas ruas: a vida comunitária, a reflexão política e a criação coletiva.

Alguns anos depois, o Théâtre du Soleil iria transformar-se em um dos maiores grupos de teatro do mundo, ao desenvolver trabalhos baseados nas ideias de Brecht e de Artaud, nas formas singulares da commedia dell’arte e do teatro oriental, e na vasta tradição do teatro ocidental com o intuito não somente de conceber espetáculos desconcertantes e originais, como também de debater os principais problemas estéticos contemporâneos.

 


Ariane durante a produção de L’indiade. Foto: Martine Franck (Magnum)

 

O livro

Para tornar compreensível ao grande público as leis fundamentais que regem a construção da cena para Ariane Mnouchkine em seu Théâtre du Soleil, Josette Féral, professora de Teatro da Universidade do Québec, lançou em 1995, em língua francesa, o livro Encontros com Ariane Mnouchkine: erguendo um monumento ao efêmero. No Brasil, a primeira edição saiu em 2010, fruto de uma parceria com a Editora Senac SP. Onze anos depois, agora com exclusividade das Edições Sesc, uma segunda edição revista e ampliada acaba de chegar às livrarias com novo projeto gráfico, posfácio e fotografias.

Muitas foram as indagações que levaram Josette Féral a querer escrever o livro. Em que teorias Ariane se apoia para dirigir os atores? Quais foram seus mestres? Existem, para ela, teorias úteis para os artistas? Na falta destas, a partir de que modelos eles podem utilizar suas potencialidades ao máximo? Sobre o trabalho com os atores, mais especificamente, Féral se propôs a investigar que qualidades Ariane exige deles, qual formação ela considera mais útil para um intérprete e qual é seu papel, enfim, como diretora.

O material do livro foi reunido a partir de três encontros que a autora teve com Ariane. O primeiro aconteceu em 1988 na Cartoucherie, a antiga fábrica de munição do exército francês nos arredores de Paris que serve de sede do grupo. O segundo ocorreu no mesmo ano e local, durante um estágio ministrado pela diretora a interessados em conhecer seu método de trabalho. O terceiro encontro, por fim, aconteceu em Montreal, em 1992, em um evento que reuniu escolas de teatro, organizado pelo Departamento de Teatro da Universidade do Québec.

 


Cartoucherie, onde está instalado o Théâtre du Soleil. Foto: Josette Féral

 

A partir da entrevista concedida pela diretora no primeiro encontro, Josette Féral escreveu o artigo “A interpretação no teatro de Ariane Mnouchkine”, no qual condensa os principais conceitos praticados pelo Théâtre du Soleil no tocante ao trabalho dos atores, como a pesquisa da teatralidade oriental, a perspectiva de a personagem ser tratada como mensageira de uma narrativa e a necessidade de os atores encontrarem uma “situação verdadeira” e “estarem” sempre no presente. O segundo encontro originou dois capítulos. Em “Um estágio no Soleil: uma extraordinária lição de teatro”, Féral descreve os métodos e as técnicas empregados para a aprendizagem ou o aperfeiçoamento de atores. Já em “Entrevista com Ariane Mnouchkine”, a autora indaga a diretora a respeito de um assunto-chave para a pesquisa teatral: a influência que as teorias exercem no trabalho do ator. Do terceiro encontro saiu o capítulo mais caudaloso do livro: “Encontro público do Soleil com as escolas de teatro: um grupo começa com um sonho”, no qual Ariane e alguns atores da companhia debatem com professores e alunos de teatro canadenses temas como a concepção do fenômeno teatral e sua recepção junto ao público.

Vale ressaltar que esta segunda edição conta com um texto de abertura e um de encerramento que ajudam a tornar mais palpáveis as leis fundamentais com as quais Ariane trabalha, mesmo que ela já tenha dito que tais leis são “misteriosas” e “voláteis” e que é preciso buscá-las dia após dia “porque simplesmente desapareceram”. Na apresentação do livro – “A arte do efêmero” –, o professor, dramaturgo e romancista Paulo Vieira capta a essência poética do método desenvolvido pelo Théâtre du Soleil, aliando-a a uma apresentação panorâmica, mas muito bem articulada, das principais conquistas trilhadas pelo teatro no século XX. Já no posfácio – “O Théâtre du Soleil no Sesc São Paulo” –, a pesquisadora e produtora artística Andrea Caruso Saturnino comenta em texto inédito os espetáculos Les Éphémères (2007) e Os náufragos do Louca Esperança (2011), ambos realizados no Sesc Belenzinho, em São Paulo. Uma ampla seleção de imagens dessas peças encerra o volume.

 


Cena de Les Éphémères (2007). Foto: Isabel D'Elia

 

Um livro como Encontros com Ariane Mnouchkine: erguendo um monumento ao efêmero tem o mérito de discutir quais transgressões estéticas – e políticas – o teatro está apto a propor ao público, ao combinar certas práticas de estranhamento do senso comum à ideia de resistência, tão essencial nos dias de hoje. Deste modo, o teatro – arte transitória por natureza – se transforma em uma experiência inesquecível para todos que partilham de sua comunhão.

 


Trecho do livro

 

Veja também:

:: O Théâtre du Soleil: os primeiros cinquenta anos | Valendo-se dos relatos de atores, artistas e técnicos, livro de Béatrice Picon-Vallin constrói uma narrativa que nos coloca no centro dos acontecimentos, abrangendo história e memória, passado e presente

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