Sesc SP

postado em 17/01/2024

Ousadia, coerência, determinação

Foto: Dani Sandrini / Sesc
Foto: Dani Sandrini / Sesc

      


2ª edição de Dos Escombros de Pagu: um recorte biográfico de Patrícia Galvão retoma a história de uma mulher apaixonadamente transgressora tendo como ponto de partida seus próprios escritos

 

A história do Brasil está repleta de mulheres cujas trajetórias pessoais foram vividas com tal intensidade que elas são capazes de representar a própria condição feminina, independentemente das características peculiares do tempo e do meio social em que viveram. Dentre as brasileiras que – em pleno século da emancipação das mulheres, conquistada a duras penas – atuaram na vida pública com ousadia, coerência e determinação, destaca-se, sem sombra de dúvida, o nome da escritora, poetisa, diretora teatral, tradutora, desenhista, cartunista e jornalista Patrícia Rehder Galvão, ou simplesmente Pagu. A vida dessa mulher extraordinária, no entanto, ainda é pouco conhecida do grande público. Para ajudar a preencher essa lacuna, as Edições Sesc São Paulo, em parceria com a Editora Senac SP, publicam a segunda edição de Dos Escombros de Pagu: um recorte biográfico de Patrícia Galvão, da historiadora Tereza Freire. 

Nascida em São João da Boa Vista, em 9 de junho de 1910, Pagu mudou-se para a capital do Estado em 1912. Aos 15 anos, começa a colaborar com o Brás Jornal, sob o pseudônimo de Patsy. Apresentada em 1928 ao casal Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, ela passa a frequentar os salões modernistas, integrando o movimento antropofágico, quando ganha, então, do poeta Raul Bopp o apelido que a acompanhará pelo resto da vida, consagrado no poema “O coco de Pagu”. Em 1930, casa-se com Oswald, com quem tem seu primeiro filho. Junto ao poeta, inicia-se na vida política, tornando-se militante do Partido Comunista. No ano seguinte, comanda uma greve no Porto de Santos e é presa pela primeira vez. Em 1933, publica o romance Parque industrial, sob o pseudônimo de Mara Lobo. Nesse mesmo ano, empreende uma viagem pelo mundo como correspondente do Correio da Manhã e do Diário de Notícias. Visita os Estados Unidos, o Japão e a China, entrevista Sigmund Freud e assiste à coroação de Pu-Yi, o último imperador chinês. Presa na França por sua militância comunista, é repatriada para o Brasil em 1935. Separa-se definitivamente de Oswald e retoma a atividade jornalística, mas é detida pela ditadura Vargas, permanecendo cinco anos na prisão. Desliga-se do PCB em 1940 e se casa em 1945 com Geraldo Ferraz, jornalista d’ A Tribuna de Santos, cidade na qual passam a viver. Em 1941, dá à luz seu segundo filho. Na década de 1950, atua como animadora cultural, dedicando-se especialmente ao teatro amador. Morre em 12 de dezembro de 1962, vítima de um câncer no pulmão.

 

 

Contemplado na categoria Biografia do Programa de Ação Cultural (ProAC) da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, em 2006, o livro Dos escombros de Pagu tem como ponto de partida os próprios escritos da biografada e está dividido em 3 partes. O primeiro capítulo – “Aos olhos de Pagu” – procura mostrar o mundo pela ótica da protagonista. Além dos textos publicados no jornal O homem do povo e das informações de caráter biográfico-crítico extraídas do romance Parque industrial, servem de fonte para a autora as cartas e os poemas escritos por Pagu e os desenhos concebidos por ela. Inicialmente, Tereza Freire recupera as origens dos Rehder, família de imigrantes alemães a que pertencia a mãe de Pagu, para, em seguida, traçar a trajetória da jovem e promissora escritora. O capítulo se encerra a conversão de Pagu ao comunismo e sua combativa militância – que lhe rendeu sucessivas decepções com o Partido.

O segundo capítulo – “Os voos de Pagu” – trata das viagens internacionais que ela realizou em 1933 (com apenas 23 anos), logo após as divergências com o Partido e a publicação de Parque industrial, que a tornaram alvo da polícia política. As fontes utilizadas aqui foram os diversos bilhetes, cartas e postais que Pagu enviou à família e aos amigos. O tom é de felicidade, realização e gratidão pela oportunidade que lhe é dada. Ficamos sabendo que Pagu viajava à custa de Oswald de Andrade, apesar de eles não estarem mais juntos. Os bilhetes e cartas que ela escreve para o poeta apontam grande estima e amizade entre os dois.

O terceiro e último capítulo – “As gaiolas de Pagu” – é o mais curto, acompanhando, segundo a autora, a curta sobrevivência de Pagu após ter passado cinco anos na prisão. Embora tenha morrido somente em 1962, a mulher pública, de acordo com a feliz hipótese construída por Tereza Freire, “deixou de existir em 1940, em decorrência de torturas físicas e psicológicas, e do fim de um sonho ao qual entregou sua vida durante dez anos”.

 

trecho do livro

 

 

Historiadora, roteirista e apresentadora de TV, Tereza Freire não se propõe a conceber nestes Escombros de Pagu uma daquelas biografias totalizantes, em que se acompanha a vida íntima da personagem por meio de cada um dos extensos detalhes apurados, dos muitos depoimentos colhidos, das várias fontes consultadas. Assumidamente apresentado como um “recorte biográfico”, a obra investe em outro caminho metodológico – o da concisão criteriosa – como se dos destroços cuidadosamente examinados pela autora, pudesse surgir uma Pagu fragmentada sem soar superficial, plural sem parecer evanescente, caleidoscópica sem afigurar-se incompleta.

Às portas do século XXI, certa “Pagu indignada no palanque” surgia numa canção assinada por Rita Lee e Zelia Duncan para defender o direito das mulheres de continuarem a ser arrojadas e atrevidas. Cabe agora ao público leitor a prazerosa tarefa de descobrir a trajetória da Pagu original, que, embora já tenha se passado um século desde seu nascimento, continua sendo uma mulher muito à frente dos tempos que ainda virão.

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