Sesc SP

postado em 06/02/2013

Entre o artesanato e a metafísica

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O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski: 1959-1969 reúne textos esquecidos, e memoráveis, do mestre polonês

 

Representamos tão completamente na vida que, para fazer teatro, bastaria cessar a representação.

Jerzy Grotowski

 

Nascido em 1933, em Rzeszów, na Polônia, e falecido em Pontedera, Itália, em 1999, Jerzy Grotowski é um dos grandes mestres do teatro do século XX, ao lado de Bertolt Brecht, Antonin Artaud, Peter Brook, Ariane Mnouchkine e Antunes Filho. Durante a década em que liderou a vanguarda teatral polonesa (1959-1969) – primeiramente com o Teatro das 13 Filas, depois com o Teatro Laboratório –, dirigiu espetáculos transgressores e inventivos como Akropolis, O príncipe constante e Apocalypsis cum figuris, entretanto, no ápice da fama mundial, em 1970, anunciou que não trabalharia mais como diretor, dando início à fase chamada de “parateatral” ou da “cultura ativa”. No final da década de 1970, do projeto de parateatro surgiu outra proposta ousada – o Teatro das Fontes – interrompido em 1982 quando Grotowski deixou a Polônia sob a lei marcial e emigrou para os Estados Unidos. A partir de 1986, ele se transferiu para a pequena cidade italiana de Pontedera, onde criou o Workcenter of Jerzy Grotowski no qual desenvolveu a fase final de seu percurso artístico, a da “arte como veículo”.

O trabalho de Grotowski é um dos mais representativos do teatro contemporâneo, exercendo influência direta ou indireta sobre muitos experimentos cênicos que se fazem ainda hoje e fomentando boa parte das discussões modernas a respeito da natureza do fenômeno teatral. Além de subverter a relação palco-plateia (neutralizando o aspecto contemplativo de um espetáculo) e de redefinir o conceito de grupo teatral (lugar para ele de exploração pessoal e de pesquisa artística), Grotowski elaborou um treinamento contínuo, cotidiano e personalizado para o ator, visto como elemento catalisador de experiências autênticas de cuja vitalidade emana o caráter sagrado do teatro. 

Com o intuito de tornar disponível aos leitores brasileiros que fazem, assistem e amam o teatro um conjunto de reflexões acuradas de um dos maiores renovadores da cena moderna, as Edições Sesc São Paulo e a Editora Perspectiva lançam O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski: 1959-1969, coletânea organizada por Ludwik Flaszen e Carla Polastrelli para a Fundação de Teatro de Pontedera, com tradução da professora Berenice Raulino. Constituído por textos e materiais de trabalho de autoria do próprio Grotowski (em sua maior parte, transcritos de conferências e palestras) e de dois de seus colaboradores mais íntimos – Ludwik Flaszen e Eugenio Barba –, o livro é o segundo título do mestre polonês publicado no Brasil. O primeiro, Em busca de um teatro pobre, data de 1971. Certamente, a presente obra não substitui a leitura do clássico, mas a amplia e potencializa significativamente.

Este volume reúne alguns textos publicados há muito tempo e apenas em polonês. Muitos deles esquecidos, todos memoráveis. O primeiro é datado de 1959; o último, de 1992. Independentemente da época em que foram escritos ou publicados, tais registros se referem ao período da atividade do Teatro Laboratório dirigido por Jerzy Grotowski que ele definirá anos depois como a fase do “teatro dos espetáculos”.

O livro está dividido em três partes: "As energias da gênese", "Práticas na expansão" e "A perspectiva pelo avesso". A primeira delas trata do período que assistiu ao nascimento da companhia. O texto que abre a coletânea é “Invocação para o espetáculo Orfeu”, com o qual o Teatro Laboratório inaugurou suas atividades em 1959. Espécie de prece de agradecimento ao mundo que dança, ele servia de epílogo à montagem. O segundo texto, “Alfa-ômega”, era grafado – sob a forma de caligrafia infantil – sobre um lençol branco que caía no final do espetáculo Caim, de George Gordon Byron. “Brincamos de Shiva” e “Farsa-misterium” são as primeiras tentativas de generalização teórica das pesquisas acerca da dança e do mistério. Ambos remontam à época na qual Grotowski trabalhava na encenação do drama erótico indiano Sakuntala, a civilização predileta do diretor. O primeiro, um apêndice da tese de direção de Grotowski acabou no acervo da Escola Teatral de Cracóvia, enquanto o segundo – escrito para a discussão de um seminário – foi descoberto nos arquivos particulares dos colaboradores próximos e de amigos de confiança (nas páginas de abertura do documento datilografado aparece a observação: “materiais teóricos de trabalho para uso estritamente interno”). Segue-se “A possibilidade do teatro”, texto de uma brochura publicada pelo Teatro das 13 Filas em fevereiro de 1962. Integram ainda esta primeira parte três textos de Ludwik Flaszen e um de Eugenio Barba, assistente de Grotowski em Akropolis (1962) e A trágica história do doutor Fausto (1963).

Os destaques da segunda parte do livro – "Práticas na expansão" – ficam com a versão definitiva do ensaio “Em busca de um teatro pobre” (reescrito em 1968 a partir do original publicado em 1965) e as conferências “Teatro e ritual” (no qual Grotowski retoma uma ideia da juventude: a das artes rituais) e “A voz” (ministrada para os estagiários estrangeiros do Teatro Laboratório de Wroclaw em 1969).

Nos textos da terceira e última parte – "A perspectiva pelo avesso" –, Grotowski discute, respectivamente, o treinamento do ator, o papel do diretor como “um espectador de profissão” e a natureza dos grupos teatrais. O livro se encerra como uma bem-vinda “Teatrografia”, que lista todos os espetáculos dirigidos em sua década de encenador.

Conforme aponta com muita pertinência Ludwik Flaszen no primoroso prefácio que escreveu para a edição italiana do livro, o léxico de Grotowski “situa-se frequentemente na estreita passagem entre artesanato e metafísica”. Assim, os campos semânticos da arte como artifício e como experiência espiritual são explorados em constante e desafiadora inter-relação. O artista precisa ser treinado em suas habilidades de artesão a fim de poder lutar, paradoxalmente, “contra Deus e por Deus”, já que Deus, para o mestre herético que foi Grotowski, é uma entidade “experienciável”.

Em 1996, o Sesc São Paulo teve a rara oportunidade de promover o encontro presencial de Jerzy Grotowski com o público paulistano por meio da realização de três atividades: um simpósio, algumas sessões comentadas de um documentário a respeito do trabalho desenvolvido no Workcenter de Pontedera e uma demonstração livre do método criado por ele. Uma década e meia depois, as Edições Sesc São Paulo em parceria com a editora Perspectiva proporcionam novamente este encontro, agora, sob um novo formato. Pelas páginas escritas com a pena do mistério e a tinta da heresia, o público brasileiro pode voltar a experimentar a presença viva de um artista genuíno cuja grande obra foi transgredir as fronteiras da arte em que tão bem militou.

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