Sesc SP

postado em 16/07/2014

Vivemos em tempos imperdoáveis?

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Em A memória, a justiça e o perdão, Amelia Valcárcel trata de uma questão fundamental para a contemporaneidade 

 

O que significa perdoar? Que tipo de indivíduos reúnem as condições necessárias para conceder perdão a alguém? Perdoar é o mesmo que esquecer? Depois de concedido, o perdão serve para mais alguma coisa? É possível extrair alguma lição dos rancores acumulados? Que relação se pode estabelecer entre o perdão, a justiça e a memória? Se perdoar já é em si uma atitude bastante difícil, saber em que consiste essencialmente o perdão não constitui tarefa das mais simples. Nas línguas neolatinas, a palavra “perdão” é usada em tom corriqueiro em variadas situações de comunicação, podendo significar uma saudação de cunho essencialmente fático, uma desculpa trivial, um modo de intromissão em um diálogo e mesmo uma forma de desapreço, caso seja proferida com suficiente altivez. Em ambientes corteses e polidos, ela pode equivaler a um “muito obrigado” ou “por favor”, por exemplo. Entretanto, seja em que uso for, o vocábulo conserva a alta voltagem moral, filosófica e cultural de sua carga semântica.

A fim de colocar o leitor brasileiro em contato com tais indagações e questionamentos, as Edições Sesc São Paulo publicam um livro que busca nas mais variadas áreas do conhecimento humanístico uma densa e riquíssima matéria-prima para tratar de um tema tão controverso nos dias atuais, cuja discussão, por essa razão, reveste-se de um caráter de urgência. Trata-se de A memória, a justiça e o perdão, da filósofa espanhola Amelia Valcárcel, professora de filosofia moral e política na Universidade Nacional de Educação a Distância (UNED) de Madri, agraciada em 2006 com o prestigiado Prêmio Príncipe das Astúrias por seu inestimável trabalho nas áreas do ensino e da pesquisa.

Dividido em nove capítulos que sucedem uma alentada introdução e um denso prefácio – todos vazados em estilo claro e direto –, o livro articula com muita propriedade um conjunto de informações, conceitos, argumentos e ideias, comprometidos com o rigor intelectual e a abrangência das reflexões, propondo-se a analisar o perdão, de acordo com as próprias palavras da autora, como “um tipo de novidade normativa ligada, sobretudo, à memória”, faculdade humana singular que “jamais funciona sem um pano de fundo valorativo”. O grande diferencial da obra é articular de modo muito atraente o plano da pesquisa diacrônica com a dimensão da análise sincrônica. Desse modo, o percuciente repertório histórico e cultural levantado pela autora em relação ao itinerário mitológico e histórico da prática do perdão é apresentado paralelamente à discussão de questões contemporâneas – característica esta que acaba por imprimir à iniciativa uma dinâmica toda especial.  

Partindo, por exemplo, da narrativa bíblica que trata do assassinato de Abel por seu irmão Caim, Amelia Valcárcel chega ao conceito de “perdão fundador” sobre o qual está assentada a cultura judaica: “... quando Esaú perdoa Jacó, aplacado por seus presentes, ambos realizam um ato fundador da genealogia de Israel. Como foi o perdão de José a seus irmãos; eles o venderam como escravo e esperavam que houvesse morrido, e não que se tivesse convertido em vizir do faraó. Ele se lhes ocultou. Mas, depois de mantê-los prisioneiros e abatidos, perdoou-os por sua venda, pois não podia acontecer que a semente de Jacó, de Isaac e de Abraão se extinguisse. Alguns patriarcas perdoaram para que existisse o povo, a lei e a Promessa. Assim são perdoados Saul e Davi. A realeza passará a Davi sobre a posteridade de Saul, que Davi promete respeitar. Assim, Davi perdoa Absalão. Tais perdões são fundadores da genealogia. São e existem para ser recordados. (...) Pois é no contexto judaico que há de surgir o protoperdão. Adonai adquirirá a misericórdia como atributo exemplar. O dia da expiação também o será, mas, desde logo, nunca sem condições, prendas e penitência”.

Entretanto, antes de constituírem dados estanques, mergulhados em sua ancestralidade própria, tais saberes surgem para emoldurar as acuradas reflexões que a autora tece sobre a história contemporânea. Sobre as guerras ocorridas nos últimos anos, ela afirma: “Houve na América e na África, como também na Ásia. Na América, em países como Chile, Argentina, Uruguai, Guatemala, que, para prosseguir, enfrentaram processos de paz e de perdão, processos de memória igualmente duríssimos. Na África, Ruanda e África do Sul costumam ser os exemplos mais claros, mas quase nenhum novo Estado pôde se libertar de guerras espantosas. E alguns ainda as padecem. Na Ásia, Vietnã ou Camboja são exemplos aterradores de conflito e de genocídio. Em todos esses lugares, quando as pessoas acabaram com a violência mútua, houve prolongados processos de paz, os quais, de fato, alguns países ainda não concluíram. Isso explica que o tema do perdão ponha a cabeça para fora d’água, de modo intermitente, durante esses primeiros dez anos do princípio do milênio”.

Se ao longo da leitura de A memória, a justiça e o perdão, uma questão não abandona jamais o leitor atento e perspicaz – se a memória de um terrível dano infligido a alguém fosse completa e absoluta, o peso de tamanho mal deixaria mesmo que esse sujeito vivesse normalmente? – ao final da obra, uma insuspeita resposta há de surpreender esse leitor: o perdão permite ao homem sanar propriamente a memória, tornando-a mais delgada de vez em quando. As possibilidades que nos oferecem o perdão e o esquecimento dependem de seus marcos ontológicos. Tal é a nobre tarefa que o precioso livro de Amelia Valcárcel se propõe a examinar.

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