Sesc SP

postado em 15/02/2013

Práticas de liberdade

Quer jogar 2

      


Quer jogar? defende a atividade lúdica como uma nutrição do espírito.

 

“É no jogo e pelo jogo que a civilização surge e se desenvolve”.
Johan Huizinga

 

O instinto do jogo é um dos elementos fundamentais da cultura humana, sustentando grande parte das realizações da civilização nos terrenos da arte, filosofia, literatura, ciência, direito, política... Ensina-nos Johan Huizinga, em Homo ludens: o jogo como elemento da cultura que o jogo, a brincadeira e a diversão estão presentes na cultura humana desde sempre, advertindo o mestre que jogo não é idiotice, ficando, portanto, fora da antítese entre sensatez e loucura. Jogar e brincar são atividades voluntárias que preveem quatro características: liberdade, desinteresse, exclusividade e ordem. E são fenômenos culturais tão fortes que poderíamos até mesmo dizer que, depois do homo faber e do homo sapiens, é o homo ludens que merece ser estudado para que se entenda um pouco mais da evolução humana, afinal.

Uma vez que as condições de vida contemporânea, sobretudo nos grandes centros urbanos, vêm negando às nossas crianças e adolescentes o direito ao jogo e à brincadeira como atividades livres e desinteressadas, é fundamental voltarmos nossa atenção ao reconhecimento da importância do lúdico no processo de socialização. Crianças são inseridas hoje, prematuramente, no mundo das atividades pragmáticas e competitivas; jovens ingressam cada vez mais cedo no mercado de trabalho; nossas ruas e residências não comportam, com segurança, a livre prática de jogos e brincadeiras; e os sistemas formais de educação, em geral, supervalorizam o aprender em detrimento do brincar, como se essa última fosse uma atividade muito artesanal para o mundo tecnocrático moderno.

Concebido por Adriana Klisys (textos) e Carlos Dala Stella (desenhos), o livro Quer jogar? (Edições Sesc São Paulo) apresenta o universo dos jogos e das brincadeiras a partir de um olhar poético e afetivo, que tenta a todo o momento remeter o leitor às suas próprias lembranças de infância. Esse mesmo olhar sensível é revelado ao considerar a criança como a personagem principal da trama que emana dos textos e dos desenhos, tratando o público infantil respeitosamente como detentor de saberes e desejos.

Formada em psicologia pela PUC-SP, Adriana Klisys é diretora da Caleidoscópio Brincadeira e Arte, instituição cujo objetivo é pensar o lúdico em todas as esferas da vida. Consultora para a criação de projetos lúdicos, ela trabalha desde 2001 com o resgate de jogos e brincadeiras ticunas na Amazônia. Além de ministrar palestras, conferências e cursos sobre a questão lúdica, Adriana é coautora do livro Bem-vindo, mundo! O poeta e pintor Carlos Dala Stella nasceu no Paraná e formou-se em letras pela UFPR. Foi redator do jornal Nicolau, da Secretaria de Estado da Cultura do Paraná, e colunista do caderno de cultura do jornal Gazeta do Povo. Desde 1987, vem se dedicando regularmente às artes plásticas. Além das técnicas tradicionais de pintura e desenho, trabalha com jato de areia sobre vidro e com painéis de cimento.

Quer jogar? é o resultado de uma bem-sucedida experiência de trabalho entre os dois. Durante o processo, Adriana principiava a falar de uma lembrança lúdica e Carlos, então, já a transformava em imagens, antes mesmo de ela colocá-la no papel. Em outras ocasiões, Carlos desenhava brincadeiras de seu repertório pessoal, convidando Adriana a olhar para as cores, os gestos e as formas materializados, buscando-lhes o sentido. Alimentados permanentemente por livros, fotos e tabuleiros, os autores se entregaram, sem amarras, ao processo de escrever e ilustrar. Pautados por longas listas ou respondendo a lembranças particulares, Adriana e Carlos investigaram, ao longo dos dez meses que durou o trabalho, a porção lúdica da natureza dos jogos e dos desenhos. E a brincadeira, então, deu frutos.

Dividido em cinco capítulos, Quer jogar? representa uma importante contribuição para as reflexões acerca dos jogos e das brincadeiras populares, levando os leitores ao aprendizado de novas culturas. Em “O sentido dos jogos”, a autora tece finas considerações a respeito da atividade lúdica (“No jogo, a língua do desejo prevalece e, com ela, a possibilidade de escolha e o exercício de tomada de decisão”), apresentando em seguida algumas fórmulas tradicionais de escolha para começar um jogo, como “lá em cima do piano”, “uni, duni, tê”, “cara ou coroa”, “par ou ímpar” e “jô quem pô”.

No capítulo seguinte – “Jogos de faz de conta” –, Adriana, aliando reflexões de especialistas às suas próprias memórias pessoais, trata da imaginação, essa poderosa faculdade humana responsável por manter a infância como um reino de outrora: ”A vivência lúdica sem duvida é a alma da criatividade. Dona de uma imaginação infinita, a criança carrega consigo um grande tesouro: o segredo de como inventar tantas brincadeiras, passando dias surpreendentes em naves espaciais, dirigindo carros fantásticos, viajando pelo mundo da imaginação. Uma visão transformadora do mundo, que acredita nas possibilidades”.

“Jogos de habilidade e destreza” fornece ao leitor algumas informações preciosas. Neste capítulo, ficamos sabendo que os índios brasileiros são especialistas em produzir uma infinidade de brinquedos com elementos da natureza, como é o caso do fio de tucum, tipo de fibra amazônica que gera figuras de peixes, pássaros, jacarés, estrelas, quando manipulado pelas mãos e até mesmo pelos pés. Descobrimos também que, nas ladeiras de Minas Gerais, jogava-se amarelinha com casca de banana e não com pedrinhas, que invariavelmente saíam rolando pelo chão. E somos informados ainda de que, na França e na Inglaterra medievais, as paróquias religiosas promoviam, na terça-feira de carnaval, campeonatos de pião – brinquedo cuja origem religiosa remonta à Babilônia do ano 3.000 a.C..

O capítulo “A cultura dos jogos de tabuleiro, cartas e dados” aborda os jogos ancestrais como a mancala, o jogo do ganso, os jogos de trilhas, o jogo da velha, o fant-tan e, entre outros, o jogo da onça – único jogo de tabuleiro difundido entre parte da população indígena de que se tem registro. Já no último capítulo – “Brincadeiras à toa” –, a autora trata das diversões ociosas sob a perspectiva “da invenção e reinvenção do mundo”.

Uma obra como Quer jogar? não se resume a um receituário lúdico. Educadores e agentes culturais vão encontrar em suas páginas não somente um riquíssimo arsenal de jogos e brincadeiras, como também uma consistente tessitura de reflexões e lembranças de infância. Juntos, eles poderão ajudá-los a compreender melhor o universo infantil e a criar atividades e projetos para crianças e jovens.

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