Sesc SP

postado em 25/02/2013

O cinema para se ver... e ler

Vigo e Kaufman filmando <em>A propósito de Nice</em>
Vigo e Kaufman filmando A propósito de Nice

      


Trabalhos de Paulo Emílio Sales Gomes sobre Jean Vigo e o pai do cineasta são relançados em edição especial

 

Foi com Paulo Emílio que a minha geração aprendeu o que
era cinema, passando por uma série de provas iniciatórias
que ele julgava indispensáveis e começava no mudo.

Gilda de Mello e Souza. 

 

Os volumes 4 e 5 da obra completa de Paulo Emílio Salles Gomes foram lançados com merecida sofisticação. Fruto de uma bem-vinda parceria entre as Edições Sesc São Paulo e a Editora Cosac Naify, uma caixa especial reúne os livros Jean Vigo e Vigo, vulgo Almereyda, que Paulo Emílio publicou originalmente em francês, e dois DVDs com a filmografia integral de Vigo e uma série de extras.  

A ligação de Paulo Emílio Sales Gomes (1916-1977) com o cinema remonta a 1937, quando ele chegou a Paris depois de ter fugido do Brasil por causa de sua militância comunista. Na capital francesa, o interesse do rapaz pela sétima arte foi despertado pelas sessões do Cercle du Cinéma, promovidas por Henri Langlois e Georges Franju. Com o início da guerra na Europa, Paulo Emílio retornou a São Paulo. E, a partir do segundo semestre de 1940, na companhia de um grupo de jovens intelectuais formados pela recém-criada Faculdade de Filosofia (dos quais faziam parte Décio de Almeida Prado, Antonio Candido, Lourival Gomes Machado e Gilda de Mello e Souza, dentre outros), ele resolveu colocar em prática o Clube do Cinema de São Paulo, nos moldes da iniciativa francesa. Os filmes eram exibidos em sua própria casa ou no salão da faculdade, seguidos de debates. Não tardou muito para que a ditadura Vargas considerasse a iniciativa subversiva, impedindo a continuidade do clube. Entretanto, a grande admiração de Paulo Emílio pela arte do cinema estava estabelecida e iria gerar muitos frutos para a cultura brasileira.

No começo de 1946, com uma bolsa do governo francês e já formado em filosofia, ele voltou a Paris, desta vez para estudar estética no Institut des Hautes Études Cinématographiques (IDHEC). Na mesma época, como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo e da revista Anhembi, Paulo Emílio escreveria uma série de artigos sobre os filmes apresentados nos festivais de Cannes, Veneza e Bruxelas. Foi durante esta segunda estada na França que ele descobriu os Vigo, pai e filho. Miguel Almereyda, pai do cineasta Jean Vigo, havia sido um militante anarquista no começo do século, morto misteriosamente na prisão. O filho, diretor de cinema, teve sua carreira interrompida, em 1934, em decorrência de complicações de uma tuberculose, deixando somente quatro filmes: A propósito de Nice (1929), Taris ou a natação (1931), Zero em comportamento (1933) e Atalante (1934). Zero de comportamento fora proibido pela censura logo após a estreia. Já Atalante sofrera cortes, sendo remontado pela produtora Gaumont e exibido como La chalande qui passe, para aproveitar uma canção de sucesso da época. Todos esses elementos contribuíram para fixar a imagem de Vigo como um cineasta maldito. Somente depois da guerra, seus filmes entrariam em circulação.

Paulo Emílio pesquisou a vida do cineasta e de seu pai anarquista, de 1947 a 1952, quando os textos em francês sobre ambos os personagens foram finalizados. O livro sobre Jean Vigo foi editado em 1957 pela Seuil, em Paris (para o qual muito colaboraram André Bazin e Chris Marker), e traduzido, em 1972, para o inglês, pela Secker e Warburg, de Londres. As obras somente ganharam edições brasileiras bem mais tarde: Jean Vigo, em 1984, e Vigo, vulgo Almereyda, em 1991.

Ambos os trabalhos receberam da crítica especializada e de intelectuais renomados os mais calorosos elogios. A fortuna crítica sobre Jean Vigo é imensa, e vale destacar o depoimento de dois de seus admiradores especiais. O cineasta François Truffaut declarou ao Cahiers du Cinema, já em 1954: “Passou por minhas mãos o manuscrito do mais belo livro de cinema que já li. Trata-se de um livro monumental sobre Jean Vigo, sua vida, sua obra. (...) Estou convencido de que com a publicação desse livro – teria de ser uma publicação integral – não seria mais possível escrever dez linhas sobre Jean Vigo sem fazer referência a ele.” Já o crítico André Bazin, em artigo publicado no jornal parisiense France Observateur, de 22/08/1957, escreveu: “Concebido já há três ou quatro anos, este extraordinário trabalho histórico e crítico comprova a importância adquirida após a guerra pela obra de Jean Vigo, apesar de ser tão breve e de essa importância não ter sido pressentida nem mesmo pelos seus admiradores e amigos”.

Embora não tão volumosa, a fortuna crítica a respeito de Vigo, vulgo Almereyda não recebeu elogios menos nobres. No prefácio da primeira edição da obra em português, o filósofo Claude Lefort afirma: “O livro que [Paulo Emílio] consagrou a Almereyda, pai de Jean Vigo, traz a marca de sua personalidade. Não teria feito disso um projeto não fosse o sentido de mistério que encerra o destino de um indivíduo e, não menos, o desejo de compreender o jogo das forças sociais e políticas que abalam ou destroem o edifício das teorias. O que torna o livro tão envolvente é a maneira como entrelaça a história de um homem à de uma época”.    

Os dois DVDs que acompanham o livro sobre o cineasta são dignos de nota. Além dos quatro filmes de Vigo, eles reúnem o documentário Cineastas do nosso tempo, realizado por Jacques Rozier, uma entrevista concedida por François Truffaut e os depoimentos de Antonio Candido, Lygia Fagundes Telles (com quem Paulo Emílio foi casado), Ismail Xavier e Carlos Augusto Calil. Dificilmente um livro sobre cinema conseguirá ser tão completo como esse.

Estudos impecáveis de vida e obra, Jean Vigo e Vigo, vulgo Almereyda, constituem trabalhos raros no mercado editorial brasileiro. Em ambos os livros, Paulo Emílio Sales Gomes desce ao nível dos detalhes para compreender o conjunto. Nos anos 1950, ele revelou aos próprios franceses aquilo que eles não sabiam. Meio século depois, esta caprichada edição mostra aos leitores de língua portuguesa o que eles precisam conhecer: um trabalho cuja marca é a adesão afetiva, intelectual e política do autor ao objeto estudado. 

 

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