Sesc SP

postado em 27/02/2013

Jogos ancestrais na era dos games digitais

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Jogos e brincadeiras na cultura Kalapalo é o resultado de uma longa pesquisa sobre a comunidade indígena do Alto Xingu

 

Quantos índios vivem hoje no Brasil e quanto esse número representa em termos percentuais? Quantas sociedades indígenas existem no país e qual é o número de línguas faladas nelas? Quais são as características básicas das civilizações indígenas que há, pelo menos, dez mil anos chegaram à América do Sul, descendendo de populações originárias da Ásia? Certamente, poucos são os brasileiros aptos a responder a tais perguntas, dada a escassez de conhecimentos que temos em relação aos primeiros habitantes do continente americano. A rigor, as populações indígenas são vistas pela sociedade brasileira de forma preconceituosa ou idealizada. O senso comum é responsável pela propagação de duas ideias básicas: ou os índios são preguiçosos e atrasados – o que entrava o crescimento das áreas rurais do país – ou eles são os heróis de um mundo idílico, os únicos habitantes que sabem conviver em harmonia com a natureza sem destruí-la.   

A cultura milenar indígena excede em muito não só a esses estereótipos como também ao clássico conjunto de peças de madeira ou cerâmica mostrado de tempos em tempos pelos meios de comunicação de massa (destaque-se o famigerado “Dia do Índio” como data comemorada com excesso de generalizações e lugares-comuns). Assim, é muito bem-vinda a divulgação recente dos mais variados trabalhos a respeito da vida indígena, cujo objetivo é apresentar os brasileiros a uma população que lhes é contemporânea – embora muitos não se deem conta disso – e cuja cultura merece ser conhecida. 

Eis o grande desafio de uma obra como Jogos e brincadeiras na cultura Kalapalo, lançado pelas Edições Sesc São Paulo. Fruto do trabalho de campo realizado por uma equipe integrada pelos indigenistas Marina Herrero e Ulysses Fernandes e pelo fotógrafo naturalista Haroldo Palo Jr., o livro reúne uma série de atividades lúdicas, individuais e coletivas, ainda hoje praticadas pela etnia Kalapalo, localizada na porção sul da Terra Indígena do Xingu.

Apresentada por meio de um cuidadoso projeto gráfico que não somente estimula a leitura como ainda confere ao farto material fotográfico selecionado estatuto de informação privilegiada, a obra é dividida em três seções distintas. Na primeira delas, três textos de caráter panorâmico fornecem ao leitor informações essenciais sobre os conceitos de cultura, mitologia e simbolismo, além de descrever quem são, onde estão e em que contexto vivem os índios Kalapalo. A segunda parte apresenta um rico inventário de adereços, plumária, peles, armas, utensílios, cerâmica, objetos rituais, instrumentos musicais e arte gráfica da cultura Kalapalo. Na terceira parte – a alma da obra, por excelência – descrevem-se vinte e cinco jogos e brincadeiras indígenas do Alto Xingu. A descrição de cada jogo é precedida por uma espécie de ficha na qual constam informações técnicas essenciais, como o material utilizado, o número de integrantes, a quem é permitido participar, o local, a ocasião em que se pratica o jogo e que habilidades ele desenvolve.

Em um mundo no qual a atividade lúdica migrou para os suportes digitais, propiciando uma infinita variedade de videogames ávidos por ganharem estatuto de produtos culturais, obras de arte ou ferramentas pedagógicas, a leitura de Jogos e brincadeiras na cultura Kalapalo é mais do que necessária. Os games andam dividindo a opinião de teóricos e especialistas quanto às implicações cognitivas, éticas e morais de seu uso. Segundo a empresa norte-americana de análise de aplicativos Flurry, 26 milhões de jovens em todo o mundo passam vinte e cinco minutos diariamente jogando games em seus computadores.

O tempo de permanência em frente à tela é relativamente curto, mas a natureza dos games virtuais tem preocupado pais e educadores. As novas gerações parecem não se incomodar com o fato de estarem aos poucos saindo da vida real, regulada pelos contatos interpessoais, para entrar de cabeça no mundo dos prazeres simulados. Há que se perguntar como fazer com que um público sedento para tomar de assalto um bunker terrorista, atropelar pedestres em uma via movimentada ou colecionar relacionamentos mediante uma automática manipulação de cliques passe a se interessar por atividades que estimulem a capacidade crítica do indivíduo e o exercício de sua consciência social?     

O leitor mais atento perceberá que tal discussão está implícita na articulação de Jogos e brincadeiras na cultura Kalapalo. Os modos de jogar e brincar da cultura Kalapalo são mais do que diversões e veiculam saberes múltiplos por meio do qual os indivíduos da comunidade vivem processos vitais de relacionamento. Como define um dos autores, as atividades lúdicas reunidas “estão enriquecidas de conteúdos implícitos estreitamente ligados aos aspectos culturais, ao complexo ritual, ao ethos e aos mitos tradicionais que por meio dessas atividades se reproduzem na formação cognitiva da pessoa kalapalo. Subjacentemente à prática de cada brincadeira, de cada jogo, repousa uma referência mitológica ou cosmológica”.

Vale ainda destacar o estilo vivo e dinâmico que salta das páginas do livro e que nada mais é do que o resultado natural do longo projeto desenvolvido pelo Sesc São Carlos junto às comunidades indígenas. Em 2001, a unidade passou a manter relações com algumas etnias alto-xinguanas. No ano seguinte, 45 membros da aldeia Aiha-Kalapalo visitaram a cidade e mantiveram contato com jovens, educadores, artistas e interessados. Pouco tempo depois, uma expedição partiu rumo à aldeia Aiha para acompanhar a cerimônia do Kwarìp. Em 2005, então, iniciou-se a pesquisa formal dos jogos e das brincadeiras indígenas do Alto Xingu. É por conta deste estreito relacionamento firmado entre a Instituição, os pesquisadores e as comunidades indígenas que emana uma atmosfera do mais afetuoso respeito de cada consideração feita por um dos autores ou de cada imagem fotográfica exibida. Os textos evitam sempre a linguagem técnica dos especialistas e o hermetismo das elucubrações. Em seu lugar, surgem a descrição atenta, a reflexão estimulante, o olhar diligente.

Abrindo mão da linguagem árida que caracteriza a pesquisa científica clássica e renunciando ao fácil caminho da difusão de dados estatísticos dramáticos (460 mil índios vivem hoje no Brasil – 0,25% da população – e eles já foram 10 milhões. Há 225 sociedades indígenas espalhadas pelo país, onde se falam 180 línguas – à época do descobrimento eram faladas 1.300 línguas.). Jogos e brincadeiras na cultura Kalapalo destina-se àquele leitor interessado em dois assuntos que se mostram complementares: a cultura indígena e a atividade lúdica.

Acompanha o livro um DVD especialmente produzido que contém o registro dos jogos sendo praticados e do trabalho da equipe que desenvolveu o projeto, além de um documentário sobre a cultura Kalapalo.  

Em Homo ludens, o filósofo e historiador holandês Johan Huizinga afirma que o primeiro esforço a ser feito no sentido de compreender o universo do jogo é deixá-lo de fora da antítese entre sensatez e loucura. Acompanhando de perto os jogos e as brincadeiras dos Kalapalos, os mais variados leitores – na plena posse de seus juízos ou simulando que não – terão a oportunidade de experimentar um vastíssimo repertório simbólico usufruído por milhares de brasileiros contemporâneos a nós, mas que, paradoxalmente, são tratados como velhas peças de um tabuleiro cujo jogo foi extinto há muito tempo. 

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