Sesc SP

postado em 28/02/2013

Papel civilizador

Foto: Edmar Júnior / Sesc
Foto: Edmar Júnior / Sesc

      


Seleção de ensaios organizada por Danilo Santos de Miranda, Ética e cultura relaciona algumas concepções éticas fundamentais às condições da vida contemporânea

 

Nunca a palavra “ética” foi tão empregada como nos dias de hoje, em que ostensivamente está presente em editoriais de jornais, entrevistas de rádio e TV, palestras e seminários, faixas e cartazes de protesto... Entretanto, a despeito de tal popularidade, a impressão geral que se tem – e qualquer cidadão comum é capaz de reproduzir esse argumento-padrão – é a de que o termo se transformou em mero clichê, já que pouquíssimas práticas sociais, em âmbito público ou privado, podem mesmo ser consideradas éticas.

Em termos filosóficos, a ética é definida, de maneira geral, como a ciência da conduta, implicando duas concepções fundamentais: a que investiga a natureza própria do homem, isto é, sua substância, e a que especula os motivos ou causas da conduta humana, examinando as forças que a determinam. Desde a Grécia antiga – onde nasceu ligada à ideia de caráter –, esta ciência vem alimentando o desejo dos indivíduos por uma sociedade mais justa e humana.

No entanto, a obsessão dos tempos modernos em clamar pelos princípios éticos a todo momento demonstra a crise de conduta na qual estamos mergulhados, e cujas razões são inúmeras. Assistimos, sem sombra de dúvida, à derrocada das chamadas crenças morais comuns. Assim, apelamos à ética a cada vez que os costumes e os valores assentados sobre a tradição parecem perder seu caráter evidente. Vivemos também a era das incertezas e da falta de perspectivas no domínio da história. Somos testemunhas, ainda, de um número vertiginoso de descobertas tecnológicas e científicas que estão alterando significativamente nossa concepção do que é o ser humano. Por fim, a complexidade da vida atual nos obriga a adotar uma nova sensibilidade e novos códigos de comportamento, que passam a levar em conta uma diversidade de culturas e de formas de vida, muitas vezes, absolutamente desconhecidas. A partir dos anos 1970, então, a fim de responder às mais variadas indagações nascidas deste panorama complexo, os domínios da ética se ampliaram e começaram a investigar não somente os novos sujeitos morais (e jurídicos) como também as novas noções de responsabilidade destes mesmos sujeitos.

Assim é que a ética, em vez de se restringir à esfera da política, passa a dizer respeito, antes de qualquer coisa, à área da cultura, entendida em sua acepção mais ampla. Ela, então, é chamada a examinar as grandes questões culturais contemporâneas, na qual a ideia de individualidade implica necessariamente a concepção pós-moderna de subjetividade. Na cultura artística em especial, o homem deixa de ser observado em sua interação social (modelo que vigorou até a década de 1960), sofrendo um radical processo de singularização. Portanto, é fundamental estudar os vínculos estabelecidos entre ética e cultura nas últimas décadas, quando os fenômenos culturais saem da esfera do simbólico e adentram o terreno do pragmatismo, vendendo comportamentos e valores de vida a crianças e jovens, adultos e idosos, homens e mulheres de todas as classes.

Procurando explicitar a natureza de tais vínculos, o sociólogo Danilo Santos de Miranda organizou em 2001, no Sesc São Paulo, um precioso simpósio cujas reflexões foram reunidas, agora, em livro lançado pelas Edições Sesc São Paulo em parceria com a Editora Perspectiva, dentro da coleção Debates. As páginas de Ética e cultura tecem ricas análises que transitam pelas esferas da política, da estética, da psicologia social, da comunicação e da indústria cultural. São quatorze textos que reúnem ensaios e conferências assinados por nomes como Amelia Valcárcel, Bento Prado Júnior, Newton Cunha, Olgária Matos, Renato Janine Ribeiro e Roberto Romano, dentre outros.

No ensaio “Ética, um valor fundamental”, a filósofa espanhola Amelia Valcárcel, professora da Universidad Nacional de Educación a Distancia (UNED), investiga a candente concepção de multiculturalismo. “Nenhuma diferença sem igualdade poderia bem ser o lema do multiculturalismo satisfatoriamente compreendido”, postula ela, defendendo a ideia de que é “imprescindível distinguir com nitidez um tabu alimentar de uma mutilação indigna, o uso festivo e livre de uma vestimenta de uma imposição opressiva e intolerável de uma marca de inferioridade”. Somente a ética nascida de uma ideia comum de justiça, diz a autora, pode ajudar o homem a enfrentar o desfio do tempo presente.

O filósofo Renato Janine Ribeiro trata, no ensaio “Ética, ação política e conflitos na modernidade”, da ética da responsabilidade, não mais confinada ao domínio clássico da política institucional e, sim, ligada à ação de cada indivíduo, entendido como estadista de seu próprio destino. “Ao ser excluído o absoluto, ao serem destituídas as verdades reveladas, cada um de nós se vê posto no lugar que pertenceu ao Príncipe. Com as verdades se silenciando, cada um ficou obrigado a inovar”, conclui o filósofo.

“Modernidade e mídia: o crepúsculo da Ética” é o nome do texto da professora de filosofia da Unifesp Olgária Matos. Partindo do sentido que a palavra ethos goza na Ilíada de Homero, ela inventaria o percurso do ideário humanista ao longo dos tempos até chegar à sociedade pós-ética de hoje na qual foram desfeitos os laços de amizade, sociabilidade e afabilidade. “Assim como na antiguidade romana o livro perdia sua luta contra os anfiteatros de gladiadores e todos os teatros da crueldade, hoje a educação formadora do espírito livre, de tolerância e compreensão do outro, está sendo vencida pelas forças indiretas das mídias padronizadoras da sensibilidade e do pensamento”, afirma a autora. 

O linguista francês Jean-Jacques Courtine, professor da Université de Paris III, inventaria, em seu ensaio “O desaparecimento dos monstros”, a transformação fundamental  das sensibilidades em relação ao olhar dirigido à deformidade humana no Ocidente, empreendendo uma surpreendente análise da relação da Ética com o corpo.

Apesar de as novas gerações viverem sob o domínio de um padrão ético (aético? antiético?) irreconhecível para muitos, recusando-se a, por exemplo, considerar válidas as experiências das boas condutas milenares, a noção de indivíduo continua sagrada – e as regras da aritmética ainda não se aplicam a unidades humanas, como afirma o personagem Ivanov no romance O zero e o infinito, de Arthur Koestler. Por essa razão, então, é possível vislumbrar algo de muito esperançoso nas ideias veiculadas por Ética e cultura, um livro que, antes de ensinar presunçosamente que tipos de conduta devemos adotar (como fazem muitos manuais de autoajuda), se dispõe a discutir por que ainda vale a pena lutarmos por muitas delas. 

 

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