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postado em 12/03/2018

Em nome da liberdade

 Erwin Piscator. Alfred J. Balcombe, Institut für Theaterwissenschaft der Freien Universität Berlin
Erwin Piscator. Alfred J. Balcombe, Institut für Theaterwissenschaft der Freien Universität Berlin

      


Em Notas sobre Piscator: teatro político e arte inclusiva, Judith Malina registra a experiência que teve como discípula de Erwin Piscator, diretor reconhecido pelo viés social de seus trabalhos

Por Andrea Caruso Saturnino*

 

Notas sobre Piscator foi primeiramente publicado em 2011 e chega a nós sete anos mais tarde, em versão cuidadosamente traduzida por Ilion Troya, ator brasileiro integrante do Living Theatre desde 1971. A publicação é bastante oportuna, não só porque é sempre hora de conhecer o trabalho de artistas que marcaram a história do teatro, mas de se aprofundar nele ou revisitar uma contundente trajetória de busca pela liberdade na arte e na vida. No livro, Judith Malina (1926-2015), ex-aluna do Dramatic Workshop de Piscator, comenta as aulas de seu mestre na New School, em Nova York, nos primeiros meses de 1945, fazendo uma relação entre o que aprendeu nessa escola e o trabalho que desenvolveu no Living Theatre.

The Piscator Notebook, título original do livro, foi o modelo dos inúmeros diários que Judith Malina escreveu durante toda sua vida. Dentre eles seu cotidiano de detenta no DOPS de Belo Horizonte, em 1971, quando a companhia foi presa em Ouro Preto, que na época foi publicado pelo jornal Estado de Minas e posteriormente pelo Arquivo Público Mineiro. Sua escrita envolvente consegue fazer com que ideias complexas se tornem conceitos facilmente compreensíveis. Assim, seja por meio de anotações, cartas ou relatos, somos tomados por sua paixão pela prática teatral, que a levou a fundar o Living Theatre, juntamente com Julian Beck, em 1947.

O que é fascinante nesta sua segunda publicação no Brasil é descobrir como a influência do diretor alemão Erwin Piscator (1893-1966) foi determinante em sua trajetória. Piscator foi sem dúvida um grande homem de teatro. O mais importante de sua época, nas palavras de Brecht. Seu conceito de interpretação objetiva foi um divisor de águas no teatro do século XX. Para o encenador, o objeto de atenção do artista não é o que se passa em cena, mas sim o que acontece com o público, o que reforça sua postura estética e política. A palavra de ordem para os atores era o foco no espectador. Suas escolhas marcaram o viés social de seus trabalhos tanto como diretor de atores quanto como o encenador inovador que foi, arquitetando cenários giratórios, esteiras móveis e torres enormes; misturando técnicas de cinema e teatro, e dispondo de não atores em cena.

O encontro de Malina com Piscator não foi mero acaso. Ao contrário, foi um encontro predestinado, como ela mesma faz questão de dizer. Sua mãe, quando solteira, ainda na Alemanha, era atriz e admiradora do trabalho do diretor. Mas quando se casou com um jovem rabino decidiu-se que, por causa das convenções, ela deixaria de atuar. Porém, os dois combinaram que a filha seguiria a carreira que ela abandonara. As ameaças ao povo judeu a partir do final dos anos 1920 fez com que a família de Malina emigrasse para Nova York. Pelo mesmo motivo, Piscator partiu em meados dos anos 1930 para a União Soviética e em seguida passou por Paris, para finalmente se instalar durante um período em Nova York, onde criou seu curso de teatro, o Dramatic Workshop, na New School for Social Research, onde alguns anos mais tarde Malina iria estudar.

O fato de haver esse precedente familiar, ligado à conjuntura que levou Piscator e Malina a viverem em Nova York, revela-nos a genealogia de uma história de ciclos, rituais e devoção que marcaram de forma essencial o trabalho da diretora. Ainda aluna, quando convocada pelo diretor a ensaiar aos sábados, entendeu que "teria de escolher entre fazer teatro ou observar o shabat". Para resolver o impasse, criou para si outro ritual - "acender as velas do shabat no camarim, ou num quarto de hotel" –, que seguiu cumprindo até o final de sua vida. Para completar, e não deixar passar em branco seu posicionamento, desenhou uma charge com uma jovem segurando um cartaz com os dizeres: Quando meu trabalho é a oração e o louvor, trabalho os sete dias da semana.

A escrita de Notas sobre Piscator é mais uma de suas belas incursões ritualísticas. Com a clareza e a generosidade dos que mergulham fundo em busca de seus ideias, Malina compartilha suas questões, suas descobertas e conquistas. O livro é dividido em três partes, e a primeira é o detalhado diário de seus primeiros meses no Dramatic Workshop, de 5 de fevereiro a 27 de abril de 1945. Acompanhamos o dia a dia, as expectativas e os desafios da aluna aplicada ingressando no mundo teatral. A segunda parte desvela preciosas anotações sobre os cursos com os diferentes professores da escola, observações sobre os colegas e descrições do funcionamento das produções de Piscator na New School. Já a terceira e última parte é um fascinante tratado sobre a influência de Piscator no teatro moderno. É uma reflexão que leva Malina a tecer o fio condutor da concepção do teatro que ela melhor conhece: o Living Theatre, que construiu juntamente com Julian Beck, Hanon Heznikov e uma companhia de atores empenhados em realizar uma "versão da visão de Piscator". Se em determinado momento ela confessa sua tristeza por nunca ter conseguido exprimir diretamente a seu mestre o quanto o estimava, neste livro ela não só desvela o quanto ele foi importante como faz reverberar seu legado para as gerações que o sucederam. Neste modo íntimo e potente de partilhar uma conduta distinguimos, por assim dizer, uma vida.

 


*Andrea Caruso Saturnino é diretora, pesquisadora e produtora em artes cênicas e visuais. Doutora em teatro contemporâneo pela ECA-USP. Este texto foi originalmente publicado na orelha do livro.

 

Veja também:

:: trecho do livro

 

 

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