Sesc SP

postado em 01/02/2019

Como cuidar das memórias?

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O desafio das empresas e instituições, mas também de cada cidadão, para organizar, preservar e acessar suas histórias

Por Gustavo Ranieri*

 

Quando os efeitos das tecnologia digitais e do mundo conectado em rede sobre nossa sociedade nem despertavam tantos estudos, diferente do que viria a acontecer pouco depois, um dos mais importantes filósofos da contemporaneidade, o polonês Zygmunt Bauman (1925-2017), esperto como só, se adiantou nesse processo e, nos primeiros anos do século XX, escreveu quatro livros que, juntos, expressam o que ele definiu da seguinte maneira: “Vivemos tempos líquidos. Nada é para durar”.

O pensador, que logo observaria mais ainda as transformações comportamentais em pleno mundo digital, assim como o surgimento de inúmeros aplicativos e outras ferramentas que atestam sua sentença, se referia como “liquidez” o sentido de todas as coisas que, nos tempos atuais, parecem estar a se evaporar, assim como os traumas resultantes disso. Dessa forma, pode-se falar sobre insegurança nas cidades, desemprego, relacionamentos amorosos, solidão...

Mas também, se olharmos para isso, podemos pensar em um outro fenômeno que Bauman não analisou necessariamente, mas em muito tem a ver com esse raciocínio: a preservação da memória, tanto aquela “produzida” no âmbito das instituições e empresas privadas, quanto as de cada ser humano, pessoais, íntimas. Sobre o tema, ótima leitura é o livro Centros de memória: uma proposta de definição (Edições Sesc), de Ana Maria Camargo e Silvana Goulart. Na publicação, as especialistas abordam os desafios que devem ser continuamente enfrentados pelas empresas no que se refere à organização, ao armazenamento e acesso das memórias produzidas nas inúmeras ações de cada dia, mais ainda aquelas que podem gerar interesse social e ter valor permanente.

Silvana conta que a tarefa de lidar com os documentos, sejam eles acumulados pelo poder público e pelas instituições, ou de caráter pessoal e familiar, é complexo. Além disso, devido ao avanço irrefreável das tecnologias, há sempre o risco iminente de se deparar com um “buraco negro” que leve às perdas das memórias. “Os profissionais responsáveis pelo patrimônio documental da sociedade são cotidianamente confrontados com isso, sobretudo quando a tecnologia multiplica as possibilidades de produção e reprodução de registros, que migram, desmaterializados, para o ciberespaço. É quase esperada a perda de porções significativas desse patrimônio, por negligência ou obsolescência tecnológica. A conservação, portanto, está na ordem do dia para todos nós, sobretudo no Brasil, onde é menor a tradição arquivística e mais escassos os recursos materiais para a preservação cultural”, afirma.

As historiadoras realizaram no passado a organização do centro de memória do Sesc São Paulo, quando a instituição comemorava 60 anos. O complexo e necessário processo as estimulou a escrever Centros de memória, inicialmente direcionado a museólogos, historiadores, arquivistas, bibliotecários, mas também de grande relevância para qualquer pessoa que tenha consciência da necessidade de cuidar de sua história. No livro, teoria e prática determinam o percurso necessário para a gestão e custódia de documentos nas empresas e instituições e como se faz necessário a formatação de centros de memórias direcionados a preservação para a posteridade da trajetória das mesmas e de seus atores.

 

Dia a dia
Silvana aponta que já existem também colaborações entre instituições de guarda de documentos e a comunidade. Por meio de cursos, palestras, debates e oficinas, estimula-se cada um a organizar e conservar seus registros físicos e virtuais.

“Já se amplia a consciência de que não se trata apenas de acervos de pessoas públicas, mas dos cidadãos, que além dos documentos identitários (oficiais), acumulam testemunhos de valor subjetivo e sentimental. Deverá crescer o papel social dos documentalistas profissionais e das instituições de memória no sentido de apoiar o cidadão arquivista, compartilhando com ele uma visão científica e disseminando formas de preservar seus arquivos.”

Sobre as reflexões estimuladas por Bauman sobre a liquidez do tempo, Silvana Goulart conclui que, apesar da constatação da volatilidade do tempo em nossa época, não podemos abrir mão de nossa memória, uma vez que ela nos constitui como pessoas e ancora nossa identidade. “Não por acaso, as metáforas mais dolorosas de desumanização, estão relacionadas com a perda de vínculos com o passado, os afetos e a comunidade à qual se pertence. Talvez não seja estranho constatar que a dispersão do nosso tempo nos leve a um movimento contrário, de supervalorização da memória, o que nos reassegura e conforta, mesmo que ela também seja volátil.”

 

*Gustavo Ranieri é jornalista e escritor.
 

 

Veja também:

:: A fotografia como escritura institucional | Textos e imagens discutem as funções da fotografia na trajetória do Sesc e de que forma ela representa a filosofia da entidade

:: Resenha | Da periferia ao epicentro das empresas - Por Vânia Carvalho

:: Vídeo | Ana Maria Camargo e Silvana Goulart falam sobre os meios e as finalidades da criação dos centros de memória

 

 

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