Sesc SP

postado em 29/05/2019

Tradição e ruptura: ingredientes da cidadania

Imagem a partir da obra Somos nós (2015, trabalho coletivo) no livro Agite antes de usar.
Imagem a partir da obra Somos nós (2015, trabalho coletivo) no livro Agite antes de usar.

      


A inserção do indivíduo no mundo, numa relação criativa e transformadora, vai além da educação oferecida nas escolas – e nesse ponto pensar a cultura é fundamental

Por Isaura Botelho*


Simbolicamente, a cultura trata da articulação que os seres humanos fazem, permanentemente, em sua interação com os dados de realidade, organizando mundos de sentido, na busca de um referencial estável. Cabe aqui citar Raymond Williams, em texto de 1958: “A cultura é de todos: este o fato primordial. Toda sociedade humana tem sua própria forma, seus próprios propósitos, seus próprios significados. Toda sociedade humana expressa tudo isso nas instituições, nas artes e no conhecimento. A formação de uma sociedade é a descoberta de significados e direções comuns, e seu desenvolvimento se dá no debate ativo e no seu aperfeiçoamento, sob a pressão da experiência, do contato e das invenções, inscrevendo-se na própria terra.” Esta citação aponta para algo fundamental: a constituição de uma sociedade passa pelo exercício e pela vivência da cultura e das artes, permitindo uma  apropriação criativa destas. A cultura se reporta aos significados que vêm pela tradição e no qual somos “treinados” e que configuram o já dado. Mas é pela experiência que podemos alcançar a sua dimensão criativa, onde novos sentidos são elaborados, incorporando o novo que vem de novas elaborações e do contato com o outro. Raymond Williams acentua ainda: “Estes são os processos ordinários das sociedades humanas e das mentes humanas, e observamos através deles a natureza de uma cultura: que é sempre tanto tradicional quanto criativa; que é tanto os mais ordinários significados comuns quanto os mais refinados significados individuais. Usamos a palavra cultura nesses dois sentidos: para designar todo um modo de vida – os significados comuns; e para designar as artes e o aprendizado – os processos especiais de descoberta e esforço criativo.”


Aí temos os componentes fundamentais para a nossa formação: de um lado aquele mais abrangente que nos faz dialogar com a tradição, permitindo reelaborá-la e, de outro, a arte, que significa ruptura. Não é suficiente, no entanto, acreditarmos que a cultura perpassa nossas vidas: isso é fato, mas não significa ter consciência dele. Na verdade, é a partir das circunstâncias de formação e do exercício das faculdades propiciado pela cultura que podemos incorporá-la enquanto vivência e ferramenta de construção de novos significados.
 

"Tertúlia", evento de poesia no Parque Lage (Rio de Janeiro, 2015). Fotografia de Pedro Agilson no livro Agite antes de usar.


Da mesma forma, são as habilidades em reconhecer os códigos  das linguagens artísticas que permitem um cruzamento de expressões e significados que darão robustez ao conhecimento e à ruptura de velhos paradigmas, liberando a imaginação e estimulando a curiosidade e o impulso criativo de modo a gerar novas formas de leitura do mundo real. Emergem daí a inovação, o pensamento crítico, a habilidade em estabelecer novas conexões, as múltiplas capacidades advindas do diálogo intercultural.  

As pesquisas no campo da sociologia enriqueceram nossa compreensão sobre os mecanismos de transmissão da cultura e da arte mostrando que os níveis de escolaridade e renda têm peso decisivo em sua incorporação ao repertório dos indivíduos. Elas apontam também para outro ingrediente fundamental: a bagagem cultural que advém de um ambiente familiar afeito a práticas expressivas e discursivas  alimenta o interesse do indivíduo por esse universo. Ou seja, a apropriação dos recursos oferecidos pela cultura e pela arte não é inata. Passa por um contato estreito com tais recursos que, vivenciados, passam a mediar a inserção do indivíduo no mundo, numa relação criativa e transformadora ao longo de toda a vida.

O desenvolvimento dessas capacidades não passa exclusivamente pela escola formal. A experiência ensina que o desenvolvimento desejado convoca as demais instituições, tanto bibliotecas, museus e, principalmente, centros culturais multidisciplinares, como outras organizações que se dispõem a desenvolver políticas de ampliação de acesso às linguagens expressivas, à sociabilidade e ao lazer. 

A educação oferecida fora da escola, por ser possível em qualquer etapa da vida dos indivíduos, tem caráter complementar e continuado: a vivência de situações de sociabilidade, tanto por sua essência despretensiosa, quanto por conta dos benefícios relacionados à troca de informações no estabelecimento de redes de convívio social, pode abrir caminhos para que um indivíduo passe a fruir determinadas manifestações culturais até então desconhecidas, descobrindo seu potencial de enriquecimento pessoal. É desse conjunto de interações possibilitadas pelas práticas de educação formal e informal que podemos vislumbrar a construção de uma sociedade que conte com a participação cidadã de seus membros.



*Isaura Botelho é doutora em ação cultural pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Pelas Edições Sesc, publicou Dimensões da cultura: políticas culturais e seus desafios (2016).

 

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