Sesc SP

postado em 30/04/2020

O capitalismo se desloca

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Novo livro do economista Ladislau Dowbor* lança luz na necessária transformação estrutural do mundo que conhecemos 

*Autor participou de encontro no Ideias do Centro de Pesquisa e Formação Sesc São Paulo. Assista em youtube.com/sescsp

 

Neste 1º de Maio, as Edições Sesc disponibilizam aos leitores textos de Ladislau Dowbor que estarão no livro O capitalismo se desloca: novas arquiteturas sociais. A versão impressa em breve estará disponível para compra. Já o pdf pode ser baixado gratuitamente no Sesc Digital, plataforma do Sesc São Paulo.

Economista social e professor, Dowbor analisa as mudanças ocorridas nas últimas décadas com a financeirização do capital e as novas tecnologias de comunicação, que causam impacto direto e em escala global na vida dos trabalhadores. Em seu prefácio, que pode ser lido a seguir, ele põe em perspectiva esse modo de produção, bem como a devastação socioambiental que ele causa, somado ao advento da pandemia que assola o planeta e ameaça ainda mais nossa existência.

 

 

PREFÁCIO

Estamos todos procurando novos caminhos. Wolfgang Streeck constata que pode não ser o fim do capitalismo, mas sem dúvida o fim do capitalismo democrático; Joseph Stiglitz, mais otimista, sugere um progressive capitalism; Thomas Piketty, um socialismo participativo. Bernie Sanders resgatou a legitimidade e o potencial do conceito de socialismo. Mas não se trata de etiquetas, porque as soluções não estão no passado, apesar do forte eco que apresentaram o Make America Great Again de Trump ou a promessa de resgatar o controle da nação do Brexit. Trata-se de entender e qualificar os mecanismos que regem essa súbita aceleração da história, a transformação estrutural do mundo que conhecemos. 

No momento em que escrevemos, o mundo olha entre pasmado e assustado o impacto destruidor de um vírus minúsculo, que de repente revela toda a nossa fragilidade. Depois de nos termos convencido de que fomos feitos à imagem e semelhança de deuses, nos damos conta de que somos feitos das mesmas células que toda a natureza – mais espertos, sem dúvida, mas igualmente vulneráveis. Já pensamos em colonizar Marte, mas ainda estamos aprendendo a sobreviver na terra. 

A pandemia que nos ataca não veio sozinha, antes vem coroar uma convergência de tendências críticas planetárias. Já somos quase 8 bilhões de habitantes, aumentando num ritmo de 80 milhões ao ano, todos querendo consumir mais. Estamos destruindo a natureza do planeta em ritmo absurdo, enfileirando a mudança climática, a destruição da biodiversidade, a degradação dos solos, a contaminação da água doce, a poluição dos oceanos com plástico e outros resíduos, a geração de bactérias resistentes pelo uso de antibióticos na criação de animais. Basta olhar as imagens de crianças nos lixões que cercam tantas cidades do mundo, em disputa com ratos e urubus, para se dar conta do drama. 

Em outro nível, e convergindo com a catástrofe ambiental, temos o drama da desigualdade. É bem fria a estatística de 1% dos humanos que tem mais riqueza acumulada que os demais 99%. Mas se trata de gente, de pessoas que, ricas ou pobres, brancas ou pretas, nasceram com o mesmo potencial de contribuir para o mundo e com o mesmo horizonte de esperanças. A esterilização desse potencial e o fechamento dos horizontes pela máquina de reprodução da pobreza é um crime. Qualquer agricultor que trabalha a terra na Nigéria tem mais inteligência social e maior contribuição para a humanidade do que os idiotas de Wall Street, que gritam alegremente Greed is good

Temos 850 milhões de pessoas passando fome no planeta, das quais mais de 150 milhões são crianças, ainda que seja produzido no mundo mais de um quilo de cereais por pessoa e por dia. Se dividirmos o PIB mundial, da ordem de 85 trilhões de dólares, pela população mundial, constatamos que o que hoje produzimos pode assegurar três mil dólares por mês por família de quatro pessoas. Nosso problema não é econômico, e sim de uma máquina política e ideológica que promove e justifica uma repartição absurda dos resultados dos esforços, sem qualquer relação com o mais elementar critério de merecimento ou até de decência humana. 

Essa desigualdade constitui, ao lado da destruição ambiental, um segundo eixo crítico. Os bilhões de excluídos do progresso social e dos avanços tecnológicos que a humanidade conseguiu não estão mais aceitando essa injustiça, sentem-se ameaçados, inseguros e, em todo caso, sabem que estão sendo excluídos. Votam sem dúvida em qualquer demagogo que prega o ódio contra culpados reais ou imaginários, e o ódio tem um poderoso efeito de catarse para as frustrações. A ideia de construir uma muralha entre ricos e pobres, entre os Estados Unidos e o México – a muralha já não funcionou em outras eras –, mostra de certa maneira esse profundo contraste entre nossa inteligência tecnológica e nossa dificuldade em organizar um convívio civilizado. O mundo político e social está se desarticulando. Nenhuma política funciona a partir de certo nível de desigualdade.

Um terceiro eixo crítico, que será amplamente discutido no presente trabalho, é o caos financeiro. Algumas décadas atrás, os governos imprimiam dinheiro sob forma de papel e de metal, nós o usávamos nos nossos bolsos, e os bancos armazenavam nos cofres. Atualmente, 97% do que nomeamos “liquidez” são apenas sinais magnéticos emitidos por bancos. Com os governos controlando espaços nacionais, enquanto a liquidez roda pelo planeta praticamente na velocidade da luz – High Frequency Trading, como hoje é chamado –, há um desajuste radical entre o mundo financeiro e as velhas instâncias reguladoras. Instalou-se um caos financeiro planetário, com o impacto fundamental de que se ganha muito mais dinheiro com aplicações financeiras, basicamente especulação, do que com investimentos produtivos. 

O dinheiro deixou de ir para onde é necessário, em particular para financiar a reversão da destruição ambiental e a redução da desigualdade. Explora inclusive as empresas produtivas. Isso permitiu a emergência de fortunas como o mundo nunca viu, em mãos de pessoas que nada produzem – ao contrário, desviam o dinheiro da sua função principal, que seria a de fomentar o desenvolvimento real, concreto, para o chamado rentismo, hoje analisado em detalhe por Joseph Stiglitz, Michael Hudson, Thomas Piketty, Ann Pettifor e tantos outros, como Marjorie Kelly, que chama essa nova etapa de “capitalismo extrativo”.    

A destruição ambiental, o aprofundamento da desigualdade, o caos financeiro e a atual pandemia convergem assim para desenhar uma crise sistêmica planetária. Como raramente se viu, inúmeros pesquisadores e analistas estão apontando para uma mudança estrutural de como nos organizamos neste pequeno objeto espacial chamado Terra. Não tenho dúvidas de dizer que se trata de uma crise civilizatória. 

A convergência das crises abre um imenso espaço para ideias novas. Há uma mudança profunda de cultura política, e isso cria oportunidades de mudança. A efetivação e a institucionalização de novas regras do jogo devem passar por uma compreensão mais profunda dos mecanismos atuais, de como estão estruturados os interesses, e das alternativas viáveis. O futuro não está escrito, as quatro crises interagem de maneira caótica. Entre elas, esse vírus que nos ameaça biologicamente e trava nossa rotina, abre espaço para mudanças. Podemos, é claro, vencê-lo em breve e retornar à mesma destruição em câmera lenta de antes. Mas ele nos dá a talvez derradeira oportunidade de pensarmos além do capitalismo.


UMA NOVA ARQUITETURA SOCIAL?

Uma hipótese de trabalho pode ser muito útil. O que aqui propomos é pensar uma possível articulação do conjunto de transformações que hoje vivemos com base no conceito de mudança do modo de produção. Ou seja, pensar para além dos parâmetros do capitalismo. Sem dúvida, podemos analisar as mudanças do modo capitalista de produção. Segundo o ângulo de análise, encontramos caracterizações como o fator informacional de produção e a sociedade em rede (Manuel Castells), o advento do “imaterial” (André Gorz), a sociedade com custo marginal zero (Jeremy Rifkin), a economia da colaboração (Arun Sundararajan), o capitalismo financeiro (François Chesnais, David Harvey), o capitalismo global (Joseph Stiglitz), a era da complexidade (Edgar Morin), o capitalismo parasitário (Zygmunt Bauman), o sistema-mundo (Immanuel Wallerstein). Alvin Toffler, com A terceira onda, de 1980, já tentava sistematizar as mudanças, como também faz Shoshana Zuboff, que fala de civilização da informação. Todos tentamos encontrar sentido nos rumos da modernidade, tateando, inseguros, “para onde vamos”. Não há um “plano” global, mas haverá, sem dúvida, uma resultante sistêmica que emergirá da convergência dos atuais processos caóticos de transformação. Está nascendo um novo animal.

O capitalismo está mudando de maneira acelerada e em profundidade. Podemos utilizar adjetivos que caracterizem as mudanças ou ordená-las em fases, referindo-nos aos capitalismos imperialista, liberal, rentista, neoliberal ou global, dependente ou dominante, central ou periférico. Podemos ainda nos referir a um conjunto de regras, como as do Consenso de Washington, para dar uma visão mais integrada do que queremos expressar, à Terceira ou à Quarta Revolução Industrial ou, ainda, ao Antropoceno. De forma geral, temos caracterizado “tudo isso aí” de neoliberalismo. O animal continua a ser o mesmo, mas com cores diferentes, uma juba maior, um comportamento mais ou menos agressivo, mais ou menos articulado ou desarticulado. Em termos epistemológicos, acabamos nos salvando pelos “neo” ou “pós” que acrescentamos às várias escolas científicas.

À medida que as mudanças se aprofundam, no entanto, e que os conceitos mais tradicionais vão se tornando desajustados em relação ao mundo real, somos naturalmente levados a pensar se estamos ainda estudando variações do mesmo animal ou características de um outro animal em gestação. A borboleta constitui uma mudança da crisálida, mas é radicalmente diferente. Não há nada de ilegítimo nessa abordagem, pois a compreensão de que o acúmulo de mudanças quantitativas leva a uma mutação qualitativa faz hoje parte da ortodoxia científica. No presente estudo, trataremos de ordenar um conjunto de mudanças do capitalismo que possam caracterizar a evolução para um outro modo de produção, que poderíamos caracterizar como informacional, constituindo uma outra era, a do conhecimento, diferente da era industrial. Desse ponto de vista, a revolução que vivemos é muito mais do que a deformação do capitalismo industrial, constituindo uma transformação.

Assim, ainda que acrescentar etiquetas à imagem tradicional do capitalismo possa ajudar, possivelmente seria mais esclarecedor adotar a hipótese da transição para um outro modo de produção, em que os diversos vetores de mudança da sociedade passam a formar uma outra lógica sistêmica. Essa outra lógica sistêmica caracterizaria outro modo de produção, enfoque que me parece mais útil do que falar de outra matriz ou de outro paradigma. A questão que me move é saber se seria mais produtivo, em termos científicos, usar o referencial do capitalismo industrial, observando como o passado se deforma, ou olhar mais para o futuro, pensando que um novo sistema está sendo construído.

A Revolução Industrial nos legou relações sociais de produção centradas na máquina, na propriedade privada dos bens de produção, na burguesia e no proletariado, no lucro e no salário. Que tendências e que novas relações traz no seu bojo a revolução da era do conhecimento, das tecnologias de comunicação e da informação, do dinheiro imaterial e do capital intangível? Que novas articulações? Que novas exclusões? Não se trata aqui de dar respostas fechadas a temas tão amplos, mas de tentar entender como as mudanças podem adquirir maior transparência e ser mais facilmente compreendidas quando as analisamos como partes de uma nova dinâmica em vez de apenas como alterações de dinâmicas antigas. Aqui, a qualificação Quarta Revolução Industrial francamente não ajuda. Estou convicto de que é muito mais do que isso. A revolução tecnológica que vivemos é muito mais do que uma etapa da Revolução Industrial. O que quero analisar aqui é a força reorganizadora e geradora de novas estruturas que caracteriza a revolução digital.

A linha de análise que seguirei é a de uma transformação social mais ampla, a ponto de gerar uma sociedade do conhecimento, assim como tivemos uma sociedade agrária e uma sociedade industrial. Nessa perspectiva, as implicações são profundas. As diversas sociedades agrárias se estruturaram, tanto politicamente como em termos de relações de produção, em torno do controle do fator-chave: a terra. A sociedade industrial, por sua vez, estruturou-se em torno da propriedade privada dos novos meios de produção: as máquinas. Que estrutura política e que relações de produção estarão implícitas nas sociedades cujo fator-chave será o conhecimento?

Para a era da terra, delimita-se o feudo ou se coloca a cerca, o principal fator de produção é a terra, a propriedade é baseada nas relações familiares vinculadas à nobreza, as relações de produção se apoiam na escravidão ou na servidão, o controle das mentes se estabelece na religião e no correspondente poder da hierarquia eclesiástica. Na era industrial, colocam-se os muros e as portarias nas fábricas, o principal fator de produção é a máquina, a propriedade é baseada no controle dos meios de produção, as relações de produção se apoiam no assalariado e na mais-valia, o controle das mentes se estabelece no consumismo e na propaganda. Para a era do conhecimento, da revolução digital, é possível fazer um ordenamento sistêmico semelhante?

A visão de Marx, a sua abordagem da análise macrossocial, continua teimosamente relevante. O essencial, no entanto, é que os conceitos devem ser reconstruídos, e não simplesmente transpostos. Reconstruídos, porque Marx, ao analisar a Revolução Industrial, deu-se ao trabalho de explicitar as novas relações técnicas de produção (a divisão do trabalho, a socialização da produção, a constituição do universo fabril), as relações sociais que delas decorreram (a relação salarial e, em particular, a mais-valia) e as novas relações de poder baseadas na propriedade privada dos meios de produção. A essa infraestrutura correspondiam superestruturas características do capitalismo, a democracia burguesa e o sistema jurídico, assim como a ideologia liberal, o Homo economicus, a cultura do dinheiro e do consumo, todo um sistema de valores correspondente. A isso se acrescenta uma aparente legitimidade que seria proporcionada pela justa remuneração do capital (lucro) e do trabalho (salário). A narrativa de cada sistema também é fundamental.

Com este conjunto, infraestrutura e superestrutura, Marx caracterizava um modo de produção capitalista. Com as novas relações técnicas e sociais, com as novas formas de poder e de apropriação do excedente, ainda podemos manter o mesmo referencial? A exploração do trabalhador não só continua como se aprofunda, de acordo com os dados sobre a desigualdade, mas a existência de exploradores é comum a todos os sistemas e pode se reproduzir dentro de dinâmicas e mecanismos renovados. A pergunta pode ser prematura, pelo fato de as novas tendências estarem pouco amadurecidas, mas é legítima. A resposta dependerá provavelmente da capacidade das novas elites mundiais – “novas” porque essencialmente manipuladoras de símbolos e de imagens e cada vez menos gestoras de fábricas – de absorver as dinâmicas emergentes em seu proveito.

A nova sociedade traz indiscutivelmente em seu bojo tanto um potencial de libertação quanto sombrias possibilidades de um universo opressivo à la 1984, de George Orwell, ou Admirável mundo novo, de Aldous Huxley. Ainda assim, caso se configure um universo sombrio, as novas formas de dominação não caracterizarão necessariamente um modo de produção capitalista. Quando a forma de apropriação do excedente social já não é predominantemente a exploração pelo salário, as mudanças se tornam qualitativas, constituem uma mutação e um deslocamento da lógica sistêmica dos processos de reprodução social. Os bilhões apropriados por um Bill Gates ou um Carlos Slim são baseados em sistemas imateriais, e não em fábricas. David Harvey, em A loucura da razão econômica, nota com razão que o “capital” que Thomas Piketty analisa em O capital no século XXI não é bem capital, e sim patrimônio, gerando mais enriquecimento desmesurado no topo do que acumulação do capital. O próprio conceito de acumulação do capital se desloca.

De toda forma, vale a pena elencar, de maneira organizada, os grandes eixos de mudança, os megatrends ou macrotendências, que estão gerando um mundo novo. Novo não significa necessariamente melhor: os dramas ambientais, sociais e econômicos no planeta estão se agravando de maneira desgovernada, e o controle individualizado sobre as populações, por meio de algoritmos e de inteligência artificial, já é muito presente. Abrem-se simultaneamente imensas perspectivas de uma sociedade mais informada, conectada e colaborativa. Mas o essencial é que, para o bem ou para o mal, o mundo está passando a funcionar de modo diferente. É uma mudança sistêmica.

Apenas para ilustrar, vamos aqui nos referir a uma série de inovações tecnológicas ou transformações organizacionais que o leitor estará provavelmente cansado de conhecer. O que visamos é desenhar em traços amplos a forma como muda o conjunto das engrenagens, como se rearticulam as partes. 

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