Sesc SP

postado em 12/06/2020

Reinvenção da sala de aula?

Fotos: Divulgação
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Covid-19 evidencia que a falta de uma profunda discussão sobre o uso das tecnologias da informação podem ter um efeito nefasto: lucro, precarização do trabalho e ausência de formação crítica


Um texto como este que você lê agora não tem a capacidade de resumir a complexidade do processo educacional brasileiro – ou a falta dele. Ainda somos um país com cerca de 11 milhões de analfabetos, como apontam os dados de 2018 da Pesquisa Anual por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-Contínua), e com 29% de analfabetos funcionais, entre jovens e adultos de 15 a 64 anos, conforme outro estudo do mesmo ano, realizado pelo Ibope Inteligência, da ONG Ação Educativa e pelo Instituto Paulo Montenegro. Claro, os dados também ressaltam que persistem as desigualdades regionais, de gênero e de cor e raça. E isso sem adentrarmos no campo das políticas públicas.

Além desse quadro, que pouco vem sendo alterado nos últimos anos, a educação neste 2020 atravessa o crítico cenário da pandemia de covid-19. Rodeada de incertezas, as instituições de ensino, no Brasil e no mundo, estão fechadas para frear o avanço da disseminação do vírus. Uma saída vem sendo a ampliação das aulas pela modalidade a distância, o que muitos estão chamando de reinvenção digital na sala de aula. Mas será mesmo uma reinvenção? O aluno como protagonista de seu aprendizado, recorrendo a um professor apenas para resolução de dúvidas, por exemplo, é o caminho que vigorará neste século? E como ficaria o acesso igualitário dos estudantes, já que boa parcela do país não tem acesso à internet?

Para responder algumas questões, fomos atrás da pedagoga e pós-doutora em educação, Renata Sieiro Fernandes. Docente do curso de graduação em pedagogia e do mestrado em educação no Centro Universitário Salesiano de São Paulo (unidade da cidade de Americana), ela é também uma das organizadoras, junto a Margareth Brandini Park, do livro Programa Curumim: memórias, cotidiano e representações (Edições Sesc São Paulo). Lançado em 2015, a publicação traça um panorama das memórias e das práticas de trabalho experimentadas no Programa Sesc Curumim, que desde 1987 atende crianças de 7 a 14 anos de idade, realizando com elas atividades desenvolvidas sob o conceito de educação não formal. Confira o bate-papo a seguir:


Especialistas da área da educação, como você, há muito dizem que o Brasil paga um alto preço por negligenciar a etapa mais importante para a formação do indivíduo, que é a Educação Infantil. Você concorda? O cenário é de negligência ainda?

A Educação Infantil continua sendo negligenciada em relação aos outros níveis de escolarização, como o Ensino Fundamental. A educação nos primeiros sete anos de vida de uma criança é o que dá as condições para ela se desenvolver de forma orgânica, integral e integrada, holisticamente. E outro agravante é a tentativa de se transpor para a Educação Infantil os modelos cada vez mais conservadores, disciplinares, normatizados da escolarização, antecipando situações e vivências que o currículo desenha para anos futuros. Sendo que nem no Ensino Fundamental esse formato é rico e desafiador. Portanto, negligenciar as crianças é deixar de apostar na geração que pode fazer deste mundo algo melhor e mais inclusivo para todos os seres, humanos e não humanos.

 

É possível pensar sobre novos meios de educação sem dedicar uma ampla reflexão à questão da desigualdade social?
De modo algum. A desigualdade social tem a ver com classismo, racismo e sexismo e tudo isso se relaciona a um modo cultural das sociedades funcionarem, atrelado ao capitalismo (acirrado pelo neoliberalismo) como modelo econômico, que se espalha como sistema hegemônico pelo mundo na modernidade, com o fim da União Soviética, pelo patriarcado, que persiste desde o período neolítico e do racismo, desde o período de colonização das Américas. E a cultura é um modo de nos emocionar e ela se mantém e se perpetua ou se modifica e transforma, por meio de práticas e processos educativos. Logo, não há jeito de desvincular a educação do contexto sócio-político-econômico em que vivemos.

Já são várias as escolas que promovem uma relação horizontal do aluno com seu processo de aprendizado, tornando a sala de aula apenas o lugar para sanar dúvidas, por exemplo, e não mais para exames e cobranças. Essa horizontalização é um caminho necessário a ser adotado em toda a rede pública?
Jamais afirmaria isso, pois, para mim, a razão de ser da escola é, dentre muitas, a construção e socialização do conhecimento e das pessoas. Portanto, acredito firmemente que conhecimento, reflexão e criticidade se produzem no coletivo, com a presença física, contato pelos sentidos, de emoção. A gente aprende com o outro e discussão só acontece no coletivo e ações só acontecem presencialmente, quando as pessoas se encontram. A horizontalidade para mim é entre as relações pessoais e grupais e não é o desenho que melhor representa, ao meu ver, isso que você menciona. Sozinho consigo mesmo é mergulho interno – necessário e permanente –, com os outros é ampliação – tenso, contraditório, diverso.

A ida à escola, a presença em sala de aula foram, assim como outras coisas, por demais afetadas com a pandemia de covid-19. Algumas instituições reforçaram o conteúdo on-line, por exemplo, cabendo ao aluno um "protagonismo" maior para o seu aprendizado. Ao mesmo tempo, muito antes disso, já se observava o crescimento de plataformas de ensino digitais, como a internacional Coursera, por exemplo, e os cursos de graduação superior apenas à distância. Como você observa esse papel do estudante, mais responsável pela própria educação, uma vez que estaria menos tempo diante de um professor?
A covid-19 não facilitou o uso das tecnologias, pelo contrário, evidenciou as grandes defasagens tanto de acesso quanto ao uso do recurso. Não é verdade que a tecnologia amplia o tal do protagonismo, aliás, termo ligado ao liberalismo e nascido do mundo das corporações empresariais. Ela maquia isso, pois joga toda a responsabilidade para o sujeito. Educação e aula necessitam de contato, presença e calor humano. O problema da atualidade é que não se tem feito a necessária e aprofundada discussão sobre o uso das TIC’s [Tecnologias da Informação e Comunicação]. Elas viraram a panaceia da educação, apenas porque interessa, aligeirada e superficialmente, aos lucros do mercado e das empresas que entraram nesse campo. A educação agora precisa dar lucro para esses investidores. E lucro é do mercado, não é da educação. Isso é sério. Outro ponto que também já se discutiu muito antes e é preciso retomar hoje, mais do que nunca, por todos os retrocessos que temos vivenciado, é que técnica é só um meio para algo. O ensino tecnicista tem fim em si mesmo. E a criticidade não advém de uma tecnologia. Ela só pode ser exercitada na relação. Portanto, a partir disso que, brevemente exponho, é possível inferir quais os reais interesses do mercado com o uso abusivo e descontrolado das tecnologias, em suma: lucro, precarização do trabalho e ausência de formação crítica.

Então, em sua opinião, não seriam o protagonismo e engajamento do estudante os modos que irão transformar a educação deste século?
O que transforma a educação é o acesso e a produção de conhecimento por todos, na diversidade, sem a instauração de modos e pensamentos hegemônicos e homogêneos. Se não houver diversidade, não haverá mais humanidade, nem o humano. E a educação é o modo pelo qual entramos em jornada de interiorização e exteriorização, que aprendemos com os outros e conosco mesmos. A educação deste século precisa se comprometer com a diversidade de modos de pensar, ser, existir e, junto com isso, fazer circular os conhecimentos já produzidos e ter suportes de todas as ordens para criar condições de que novos conhecimentos sejam produzidos em todas as áreas. O que transformará a educação neste século é o compromisso e a responsabilidade com todas as formas de vida e, portanto, do planeta. É por meio dela que podemos fazer o enfrentamento e a superação do racismo, do classismo, do sexismo e criar condições de vida em alinhamento com o planeta, pois desde que fizemos o Antropoceno, os riscos de extinção humana são altos e negar isso é uma forma de cegueira, que só interessa aos super-ricos e aos países imperialistas. A educação é que permitirá nos voltarmos para outras epistemologias deixadas de lado ou soterradas, que harmonizam todas as formas de vida. E, por fim, a educação deste século precisa se comprometer tanto com a reflexão crítica quanto com a ação urgente e necessária, para além das salas de aula, nos espaços da cidade, nos coletivos e onde as pessoas estão.
 

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