Sesc SP

postado em 07/07/2020

Espaços públicos obsoletos: o novo normal

Região do bairro paulistano do Paraíso. Foto: Sergio Souza | Pexels
Região do bairro paulistano do Paraíso. Foto: Sergio Souza | Pexels

      


Sem mudanças, as cidades no pós-coronavírus tendem a perder o sentido de organismos coletivos que favorecem o convívio entre as diferenças
 

Há muitos elementos para se definir o conceito de cidade. Entre eles, pode-se apontar o conjunto denso de edificações para moradia e comércio; o número volumoso de pessoas desenvolvendo atividades econômicas diversas; a existência de espaços públicos para lazer; assim como a oferta de uma ampla infraestrutura para todos. Contudo, cidade é também fundada a partir da percepção, da relação e da experiência de seus habitantes com o espaço ao redor e com os demais semelhantes. Assim, é possível avaliar, ainda que seja inconclusivo, a ruptura que a covid-19 provocou em aspectos tão fundamentais dessa formatação.

O ir e vir incessante de pessoas, espaços públicos lotados e mais uma série de outras imagens que faziam parte do cotidiano das metrópoles não são mais percebidos como antes e, certamente, não serão mais mesmo após um controle efetivo da pandemia. Para o filósofo e pesquisador colombiano Armando Silva, “um novo inimigo que nos acompanha determinando o uso do espaço público já deixou dois elementos de representação do cidadão: a máscara e a distância social de dois metros. Estaremos por um tempo mascarados e distantes. O choque entre prudência e desejo de sentir novamente é o paradoxo”.

Professor na Universidad Externado de Colombia e diretor do projeto Internacional Imaginários Urbanos, Silva é um dos que começam a pensar o desenvolvimento das cidades e da relação com seus habitantes pós-pandemia. Pouco se sabe, claro, mas o cenário que se desenha não é de um retorno ao estágio anterior ao coronavírus, mas sim, a formatação de um novo modo de se compreender e de se relacionar com o espaço ao redor, impondo, inclusive, outros paradigmas às gerações que estarão em fase adulta daqui a vinte anos, por exemplo.

“O grande paradigma do final da segunda década dos anos 2000 é o coronavírus. Ele atravessa tudo e todos. Será um fantasma errante que assombra todos os lugares, pelo menos nos primeiros anos do pós-vírus. A falta de certezas produz imagens dominantes sobre o real e seu futuro também é incerto. O vírus nos surpreendeu e assimilá-lo ao real nos custará trabalho e tempo”, diz Silva, que pelas Edições Sesc lançou Álbum de família: a imagem de nós mesmos (coedição com a Editora Senac), Imaginários: estranhamentos urbanos e Atmosferas urbanas: grafite, arte pública, nichos estéticos.
 

PERSPECTIVAS ARQUITETÔNICAS E URBANÍSTICAS


Centro de São Paulo vazio. Foto: C. Cagnin/Pexels

O arquiteto e ensaísta Guilherme Wisnik, professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), salienta que é importante não esquecer que outras pandemias já existiram antes dessa e que as cidades contemporâneas são, de algum modo, fruto da acumulação histórica que resultam desses outros cenários pandêmicos. Para ele, viveremos consequências importantes, como a aversão ao outro e a progressiva diminuição da ideia de aglomeração, de multidão. Justamente por isso, uma das ideias válidas urbanisticamente e que devem se desenvolver com mais força a partir de agora é a formatação de cidades policêntricas, embora muitas metrópoles já sejam assim. “A mais notável é Tóquio, desde sempre pensada como uma série de células agregadas sem hierarquia. Mas mesmo no caso de São Paulo, por exemplo, que nasceu com um centro, o desenvolvimento foi no sentido de criar outros centros, ainda que estejam todos no que chamamos de região central ou sudoeste. Mas sim, a multicentralidade será um valor.”

Também na opinião do arquiteto, autor de, entre outros, Espaço em obra: cidade, arte, arquitetura, as transformações que possam vir a acontecer no modo de morar não devem afetar o que se chama de cidade vertical, ou seja, o alto número de prédios existentes para dar conta da enorme população. Sabe-se que a exposição das pessoas nas áreas comuns desses edifícios é um problema sério quando se analisa formas de controle à propagação do vírus. “O problema dos edifícios verticais são os elevadores, lugares temidos em uma situação de pandemia, onde as pessoas podem se esbarrar e compartilhar o ar, por exemplo. Mas não há terreno suficiente no mundo para que as cidades deixem de ser verticais, reverter esse modelo é impossível. O que, sim, tende a acontecer é talvez uma nova onda da elite querendo morar em subúrbios. No entorno de São Paulo temos Alphaville e Granja Viana, e, no Rio de Janeiro, a Barra da Tijuca”, diz ele, que complementa: “Ainda mais por ter se mostrado muito efetivo o trabalhar a distância, reforçando a lógica do trabalho flexível, as pessoas não precisarão se deslocar tanto para onde estão os escritórios e maiores oferta de empregos, podendo morar mais próximas da natureza e menos dos centros poluídos”.

ESVAZIAMENTO
Vem sendo dito e repetido que não seremos mais os mesmos quando o período de ampla contaminação do vírus tiver passado ou, ao menos, controlado. Mas como retomar o sentimento de apropriação à cidade? As respostas não são muito otimistas. Para Wisnik, há muito já se desenvolve, pelo menos nas áreas mais ricas, uma tendência individualista, baseada no medo e na escolha de haver cada vez mais muros, guaritas e câmeras de segurança. “E o espaço público é o que concretamente dá a dimensão da coletividade em uma cidade, que mantém a ideia do encontro de todos que àquela cidade pertencem e que têm direitos iguais ou deveriam ter perante aquele governo. Mas se esse espaço público vai decrescendo, desaparecendo em importância, em nome da virtualização das relações, essa própria ideia da cidade como organismo coletivo vai se perdendo. Com isso, o que passa a valer são os direitos de consumidor. Um exemplo muito gritante atual é o fato de que os shoppings foram reabertos antes dos parques. O que que isso sinaliza? Que cada vez mais a noção de cidadania está se deslocando para a ideia de consumidor e não para a de um cidadão urbano, dono de direitos políticos e de igualdade.”

O panorama apontado pelo arquiteto reforça igualmente que, com a perda gradual do senso de coletividade e do uso comum dos espaços, as classes mais abastadas viverão mundos particulares enquanto as menos favorecidas continuarão impossibilitadas de transpor as barreiras da desigualdade social. “Essa questão é um problema estrutural, anterior à pandemia e que pouco mudará”, garante o antropólogo José Guilherme Magnani, professor titular do Departamento de Antropologia da USP e organizador do livro Lazer de perto e de dentro: uma abordagem antropológica. “Se nas zonas mais privilegiadas da cidade poder-se-á retornar às atividades de lazer e consumo habituais – restaurantes, shopping centers, cinemas, teatros, shows –, na periferia a volta será também nas condições prévias: modalidades de lazer invisibilizadas desde uma ótica dominante e até criminalizadas. Mantém-se, creio, a dicotomia entre ‘desfrutar o lazer’, nas classes mais privilegiadas em contraposição a ‘tirar lazer’, ‘fazer um social’, na periferia.”

 

A individualidade também é ressaltada pelo filósofo colombiano. Silva opina que, inicialmente, por uma questão de segurança, a coexistência será entre grupos conhecidos, provando que “a globalização, como tantas vezes foi anunciada e que por tantas vezes não funcionou, agora será ainda menos real. A globalização existe em aspectos econômicos e em tecnologia, mas seu uso é cada vez mais local e até tribal. A pandemia nos tornou mais tribais. Em um ensaio que preparo, chamado ‘Arte e vírus’, mostro como memes e vídeos que circulam nas redes reforçam uma nostalgia do que é local [para cada povo]. Da mesma forma, há pedidos para que se consuma aquilo que é produzido internamente para impulsionar a produção do país. Trump não estava tão errado: America first! O mesmo com o Brasil ou México, por exemplo".

Ainda segundo Silva, embora o espaço público atravesse momentos difíceis, a arte será uma das atividades mais solicitadas para recuperá-lo. “O grafite e a arte urbana se expandirão nas ruas, será uma grande oportunidade para os artistas de rua expressarem e criarem opinião ou conscientização pública. Não será uma arte ideológica, mas sim o uso da criatividade para ilustrar ou criar situações nas quais as pessoas se identificam.”

Baseados em tais ideias, serão elas concretas no “novo normal” da relação das pessoas com as cidades? Para se chegar a uma resposta, Guilherme Wisnik diz que primeiro é preciso fazer uma outra pergunta: queremos voltar ao que tínhamos antes da pandemia? “Diante tamanha exclusão social, isolamento das pessoas, abismo crescente entre as classes e a transformação do direito de cidadania em consumo, o que deveríamos buscar é algo melhor do que isso. Mas, infelizmente, assim como nossas vidas nas redes sociais em bolhas, pois funcionam como bolhas e não como senso e desafio às diferenças, a tendência, infelizmente, é que a vida urbana vá mimetizando isso e a gente viva fechado, mais próximo daqueles que temos como próximos e vá perdendo o contato com outros que são diferentes e, com isso, a empatia.”
 



REGISTRO DO VAZIO


A londrina Ponte da Torre na noite de Natal de 2015. Foto: Genaro Bardy

O fotógrafo francês Genaro Bardy antecipou-se ao cenário da pandemia, lançando três anos atrás o projeto Ville déserte – também registrado em livro. O intento do artista foi revelar importantes pontos turísticos de Paris, Londres, Nova York e Roma sem nenhuma presença humana nas imagens.

Para obter o resultado esperado, foram anos de paciência, com Bardy passando as noites de Natal em cada cidade diferente, nas quais aproveitou a madrugada vazia para fazer os registros. A intenção do artista era mostrar o que chama de paradoxo das cidades quando, embora ali estejam como estrutura física, elas deixam de existir se não há ninguém a usufruir delas. "A cidade não existe sem ninguém. E nestes meses, desde março passado, com a quarentena e lockdown, o projeto mudou, assumiu outra forma com a situação que vivemos", diz ele, que há pouco tempo vive com a família na baiana Salvador.
 


Imagem de Nova York registra a Times Square vazia na noite de Natal de 2016. Foto: Genaro Bardy

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