Sesc SP

postado em 10/07/2020

As políticas culturais no contexto da pandemia de covid-19

Entardecer na Esplanada dos Ministérios | Foto: Senado Federal/Flickr
Entardecer na Esplanada dos Ministérios | Foto: Senado Federal/Flickr

      


É necessário aprender com as experiências passadas para fugir da prostração e projetar saídas para o setor

Por Isaura Botelho*

 

É irônico pensar que a área cultural não precisou do coronavírus para viver uma pandemia: ela já se fazia presente pelo caos instaurado pela nova gestão em nível federal. A covid-19 apenas ajudou a escancarar a fragilidade do setor que, infelizmente, não conseguiu ainda ser pauta na vida dos indivíduos, quanto mais da agenda política governamental.

Proponho aqui um pequeno exercício de rememoração de fatos recentes. Em primeiro lugar, temos de considerar que, estruturalmente, o Ministério da Cultura nasceu frágil institucional e conceitualmente: sua instabilidade e a descontinuidade de suas diretrizes confirmam a marginalidade da área cultural na agenda governamental. Nem precisamos imaginar o que ocorre num governo em que ela é eleita sua inimiga número um. Seria muito esperar a definição de políticas culturais democráticas numa situação como essa. Transformada em mera secretaria do Ministério da Cidadania e, posteriormente, do Ministério do Turismo – e com a indicação de dirigentes inadequados –, a sociedade assistiu calada e pasma ao retrocesso que o setor sofreu. Nada a ver com o relativamente recente episódio de defesa de existência do MinC, que foi o da reação à tentativa de sua extinção por Michel Temer, em 12 de maio de 2016. De ministério autônomo a pasta foi transformada em secretaria vinculada ao Ministério da Educação, decisão que teve de ser revertida nove dias depois, em função dos protestos generalizados por todo o país, diferente do silêncio desinteressado da sociedade quando o então presidente Fernando Collor extinguiu o MinC em 1992, fato que se repetiu agora em 2018. Em 2016 houve uma grita significativa reunindo artistas, gestores, professores e sociedade civil de forma organizada, constituindo um fenômeno inédito e importante na história institucional no campo da cultura. Pode-se dizer que a cultura pareceu ter um significado junto à população de maneira inédita, o que foi uma novidade expressiva. Acredito que a gestão de Gilberto Gil ainda reverberava e alimentava esperanças.

 


O então ministro da Cultura, Gilberto Gil, cantando com Koffi Annan em 2003, durante conferência na ONU

 

As conferências municipais e estaduais de cultura, culminando em três conferências nacionais; os conselhos constituídos de forma representativa e não mais pelos “notáveis” locais; colegiados setoriais sistematizando as informações e necessidades de cada linguagem artística; a criação de fundos e outros mecanismos de condução de políticas; os planos municipais e estaduais de cultura; o desenvolvimento de programas reconhecendo e atendendo manifestações culturais de grupos indígenas, quilombolas e movimentos culturais que raramente se habilitavam a recursos mais expressivos, como o Cultura Viva. Todos esses exemplos representaram desenhos institucionais que, embora recentes, eram repletos de energia. Esse conjunto de formulações, decisões e de encaminhamentos gerou muita mobilização local e regional e foi o fermento dessa reação nacional à extinção do Ministério da Cultura. No entanto, logo a seguir, viu-se que a mobilização pela recriação do ministério havia se consumido em si mesma: das cinzas surgiu uma estrutura esvaziada, sem recursos e sem força.  Pouca consequência tiveram as ferramentas e os programas de uma política cultural que se quis consistente, mas que teve pouco tempo para se institucionalizar.

Um segundo aspecto que vale a pena ressaltar é a grande dependência que temos de políticas federais. Isso foi um aspecto positivo quando se tratou da gestão de Gilberto Gil. Sua habilidade em articular ideias – parte delas oriundas das formulações de Mário de Andrade (1935/36) no Departamento de Cultura de São Paulo e que já haviam sido retomadas por Aloísio Magalhães em nível federal (1981/82) – aliada a seu capital simbólico, criaram um efeito cascata de entusiasmo em grande parte do país. Como vimos, o tempo foi pouco para se institucionalizar as políticas setoriais propostas. A chegada de um governo de extrema direita ao poder encontra o setor desmobilizado e sem liderança. Aquilo que identifiquei como energia remanescente do período da gestão de Gil já havia se diluído. Tudo isso para dizer que tanto a destruição proposta pelo governo Bolsonaro quanto a pandemia de covid-19 encontraram um terreno fértil para instalar a terra arrasada.

A sociedade movimentou-se não ainda em escala suficiente, talvez longe disso. Mesmo assim, a institucionalidade do setor cultural começou a se alterar de forma perceptível. Diria que estávamos no caminho de uma maior complexidade do quadro institucional da área cultural no Brasil, condição que Aloísio Magalhães, secretário de cultura do MEC, acreditava ser necessária para a criação de um Ministério da Cultura. 

Rememoro esses episódios não apenas para refrescar nossa memória, mas para nos ajudar a aprender das experiências passadas e tentar projetar saídas para fugir da prostração e descrença nas instituições políticas.


*Isaura Botelho é doutora em ação cultural e já coordenou o setor de pesquisas e planejamento da Secretaria de Políticas Culturais do Ministério da Cultura. Pelas Edições Sesc São Paulo lançou, em 2016, o livro Dimensões da cultura: políticas culturais e seus desafios.

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