Sesc SP

postado em 21/01/2013

A transfiguração de um encenador em mestre

Editorial Imagem Hierofania 02

      


Joia rara na bibliografia sobre o teatro brasileiro, livro de Sebastião Milaré analisa o sistema e o método de trabalho do diretor Antunes Filho.

 

Em sua juventude, Antunes Filho frequentava o cinema quase todos os dias, assistindo não somente aos filmes norte-americanos, mas também às experimentações surrealistas de Buñuel e aos clássicos do expressionismo alemão. Foi nesta época que ele entrou em contato com uma obra cinematográfica que iria lhe abrir os olhos para as possibilidades expressivas da arte da encenação, que abraçaria mais tarde: A paixão de Joana d’Arc, de Carl T. Dreyer, com a célebre estrela francesa do cinema mudo Renée Falconetti. A combinação do maduro realismo adotado pela atriz em sua performance com os closes e primeiros planos explorados pela direção e pela fotografia mostrou ao futuro diretor a perspectiva de uma encenação metafísica, revelando-lhe novos meios de entender a realidade.

Muito tempo se passou até que Antunes, após vinte anos de carreira, encenasse um espetáculo antológico: Macunaíma (1978), com o qual a ressonância de seu trabalho como encenador ultrapassaria as fronteiras do país, levando-o a se tornar uma importante referência do teatro mundial. Foi a partir de Macunaíma, seguido pela instituição do Centro de Pesquisa Teatral do Sesc (CPT), que Antunes desenvolveria de modo sistemático um processo de criação artística contemporâneo, conectado com as mais avançadas tendências das artes cênicas de todo o mundo. O desenvolvimento estético do CPT, revelado nas produções do Grupo de Teatro Macunaíma, não se prende unicamente à mise-en-scène, ao estilo do diretor. Pelo contrário, corresponde a novos conceitos de teatro e do fazer teatral, resultando em um novo método para o ator. Pelo CPT (cujas atividades são mantidas pelo Sesc São Paulo, configurando um raro e bem-sucedido caso de contribuição sistemática à cultura brasileira) passaram inúmeros atores, dramaturgos, cenógrafos, técnicos, professores e diretores.

Para o historiador das religiões romeno Mircea Eliade, hierofania é a manifestação do sagrado, que funda ontologicamente o mundo. Em Hierofania: o teatro segundo Antunes Filho, o jornalista, crítico e pesquisador Sebastião Milaré (autor também de Antunes Filho e a dimensão utópica, Perspectiva, 1994) documenta a trajetória do encenador a partir de Macunaíma, produzindo riquíssimas reflexões sobre este percurso de mais de três décadas.

A primeira parte do livro – "O sistema" – trata da fundação do Grupo de Teatro Macunaíma e do Centro de Pesquisas Teatrais, observando a organização interna e as alterações da estrutura ao longo do tempo. Os onze capítulos desta parte fazem uso não somente de documentos publicados ou inéditos como também de depoimentos do diretor e de atores que trabalharam ou ainda trabalham com ele. Somam-se a esse espesso manancial as observações diretas do próprio autor do livro, que há décadas acompanha o processo de trabalho do CPT. O todo poderia soar um tanto quanto aleatório não fosse a acurada capacidade de Sebastião Milaré de conferir unidade formal e estilística a um conjunto orgânico de ideias e imagens que, transitando entre os campos de procedimentos, conceitos e técnicas, dão forma ao método. Tudo aqui circula em torno da pesquisa de técnicas e de meios expressivos para o ator.

A segunda parte – "O método" – é composta por outros onze capítulos que descrevem a pedagogia teatral concebida pelo diretor. Não se trata, obviamente, de um punhado de exercícios que, uma vez aprendidos, habilitam tecnicamente o intérprete. Antes de tudo, o método de Antunes propõe que primeiro se transforme o ator, o ser humano, para que depois a transformação se manifeste em cena, gerando novas formas estéticas. Assim, o método pacientemente desenvolvido pelo diretor ao longo de sua vida pressupõe a compreensão de uma ideologia assentada em questões humanas que envolvem um compromisso ético do ator com a sociedade e uma nova postura do artista perante a vida.

O epílogo do livro descreve os espetáculos realizados no processo de sistematização do método e após sua conclusão, buscando detectar nesta produção tanto os efeitos do método sistematizado como os novos encaminhamentos estéticos do encenador.

Ao longo de três décadas, Antunes Filho, discípulos e colaboradores produziram e divulgaram para círculos restritos de aprendizes as fontes filosóficas, as premissas estéticas e as práticas experimentais do CPT. Entretanto, é por meio da escritura de Sebastião Milaré que essas sistematizações periódicas se alinham em um tratamento a um só tempo histórico e metafísico. Pela primeira vez, o método idealizado para formação de atores-criadores é apresentado em sua dupla natureza de meio de acesso ao plano estético e de código de conduta ideológico e espiritual.

Muito do sucesso de Hierofania se deve à larga experiência teatral acumulada por Milaré. Desde 1994, ele é curador de teatro do Centro Cultural São Paulo. Por vinte anos, foi crítico teatral na revista artes e nas últimas décadas tem publicado ensaios e periódicos do Brasil e do exterior. Criou e edita desde 2000 a revista teatral eletrônica www.antaprofana.com.br. É autor das peças A trupe futurista contra o bumba-meu-boi modernista e A solidão proclamada e dramaturgo dos espetáculos A flor e o concreto e Quem come quem. É roteirista das séries O teatro segundo Antunes Filho (TV Cultura, 2001) e Teatro e circunstância (Sesc TV, 2009).

Passo a passo, o estudo de Milaré revela a vigência e os desdobramentos do processo criativo instaurado a partir de Macunaíma, sem se esquecer, entretanto, de retomar a primeira fase da carreira do diretor, quando ele se exercitava no domínio da linguagem realista para a qual assistir ao filme de Carl T. Dreyer tinha sido fundamental. Seu trabalho, desde então, seria o de superar o realismo, utilizando-se de suas técnicas na busca de outro conceito de realidade.

Acompanhando de perto a formulação de uma poética na qual as questões do repertório se enlaçam à teorização do processo criativo, o livro registra com minúcias as prospecções estéticas antes de chegar a seu objetivo central: desvendar a filosofia e a pedagogia do encenador. Esta perspectiva faz com que a filosofia e a pedagogia desenvolvidas por um mestre como Antunes Filho se destinem não somente aos atores e aprendizes das artes cênicas, como também aos leitores cujo interesse maior é a educação em seu sentido mais amplo.

 

Veja também:

:: Vídeo

:: Trechos do livro

 

 

 

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