Sesc SP

postado em 08/08/2017

Antonio Meneses e André Mehmari - AM60 AM40

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Antonio Meneses e André Mehmari celebram a música e a vida de ambos dedicada à arte em AM60 AM40, lançamento do Selo Sesc com apresentações em Ribeirão Preto, no Theatro Pedro II, 17/8 e no Sesc Vila Mariana, 18, 19 e 20/8. No texto abaixo, Irineu Franco Perpétuo nos apresenta esta jóia da música brasileiro que é AM60 AM40. 

 

 

 

AM60 AM40

 

Olhando de longe, poderia parecer que Antonio Meneses e André Mehmari não têm muito mais em comum do que as letras iniciais de prenome e sobrenome. Afinal de contas, nasceram com 20 anos de diferença, a 2.300 quilômetros de distância, moram separados por quatro horas de fuso horário, e construíram suas carreiras nos mundos aparentemente distintos da música erudita e popular.
 

Acontece, porém, que, para além do talento superlativo, ambos foram agraciados com aquelas qualidades raras que constituem o músico de câmara por excelência. Meneses, no Beaux Arts Trio, e ao lado de lendas do piano internacional, como Menahem Pressler e Maria João Pires, dentre muitos outros; Mehmari, entre ases da música popular, como o bandolinista Hamilton de Holanda, os clarinetistas Gabriele Mirabassi e Proveta, as cantoras Ná Ozzetti e Monica Salmaso, para não alongar muito a lista.
 

Seja em qual for o lado que se escolha da fronteira por vezes tênue e elusiva entre o popular e o erudito, a música de câmara é sobretudo um diálogo, um processo de propor e ouvir propostas, de sair de si e se mover na direção da sensibilidade do interlocutor. Antonio Meneses e André Mehmari resolveram comemorar seus aniversários, respectivamente de 60 e 40 anos, com essa conversa musical bastante eclética e brasileira, mesclando o frescor e espontaneidade da música popular ao rigor da erudita.
 

Tudo começou em dezembro de 2015, quando Meneses solou, em Belo Horizonte, com a Filarmônica de Minas Gerais, um de seus cavalos de batalha: o Concerto No 1 para violoncelo de Chostakóvitch. Com regência de Fabio Mechetti, o programa incluía a estreia do Divertimento que Mehmari escreveu sob encomenda da orquestra – sim, porque, à parte a gloriosa carreira como músico popular, ele tem sido insistentemente requisitado no cenário erudito, como compositor, por nossas principais orquestras, regentes e grupos de câmara. No jantar após a apresentação, a química foi imediata: a admiração profissional mútua misturou-se à afinidade pessoal, e nascia um duo.
 

Para Meneses, nascido no Recife e criado no Rio de Janeiro, a música de Mehmari tem uma ligação imediata com o repertório que ele ouvia o pai – João Gerônimo, trompista do Teatro Municipal carioca - cantar em casa, na infância. “Cantar para mim é a forma máxima da música. Eu sempre tive o sonho de cantar com o violoncelo esse tipo de música, que ele cantava tão bonito”, conta. “Não se pode esquecer que eu fui com 16 anos para a Europa e, de uma certa maneira, eu me separei um pouco desse mundo da música popular brasileira”. Ficou na lembrança, assim, um cancioneiro em voga nas décadas de 1960 e 1970. “Todo o repertório que a gente escolheu tem a ver um pouco com isso, com essa minha predileção pela música dessa época – o choro-canção, a bossa nova, a música nordestina como eu conhecia”.
 

Natural de Niteroi e educado em Ribeirão Preto, seu parceiro também traz evocações de infância para embasar suas escolhas estéticas: no caso, o exemplo da mãe, Cacilda, pianista amadora. “Até pela minha figura materna, que tocava no mesmo piano Jobim, Nazareth e Chopin, eu tive ali um exemplo muito claro de que, no mesmo banquinho, você pode tocar todas as músicas, e que o importante é que a música te emocione, que ela tenha a sua história para contar, independente dos rótulos ou de qualquer preconceito estilístico”, explica Mehmari. “Eu aprendi a escutar música sem os nomes, sem os rótulos, e isso ajudou a forjar minha personalidade e o modo como eu vejo a música. Eu vejo muito mais através das intersecções e dos encontros do que das barreiras”.


Humilde, Meneses chega a afirmar que tem mais a aprender com Mehmari do que o parceiro com ele. “Eu é que tenho que entrar nesse mundo dele que, para mim, é uma coisa nova”, diz. “Para mim é uma novidade a maneira como ele trabalha, porque eu nunca tinha tocado com um músico como ele. Eu nunca tinha tocado um pianista que, a cada vez que a gente repete um take, a música é outra. Quando gravei, por exemplo, sonatas de Beethoven: era sempre a mesma música. Você muda talvez uma nuance. Mas com ele, a gente toca, por exemplo, um frevo umas dez vezes, uma atrás da outra, e cada uma delas é diferente. Tudo é permitido - até um certo ponto. É uma coisa muito bacana você saber que, na música popular, que tem as suas regras, de uma certa maneira, quebrar ou torcer essas regras é muito mais fácil”. E, quanto à Suíte Brasileira que encomendou a Mehmari especialmente para o disco, brinca: “André fez a coisa mais fácil para mim. Talvez ele tenha tido um pouco de dó de mim”.

 

Já o compositor classifica a tarefa de escrever para Meneses como “o paraíso”, já que a sonoridade do instrumentista inspirou-o “desde o momento de gestar” a obra. “Eu gosto tanto do violoncelo que tem horas em que eu gostaria de tirar o piano, que estou tocando, e ouvir só o que ele está tocando. É um instrumento que nas mãos do Antonio soa realmente divino. A minha procura como compositor foi criar uma música brasileira para violoncelo e piano que estabeleça esse vínculo com toda a tradição da escrita para o instrumento e que seja genuinamente brasileira e contemporânea”. Para tanto, Mehmari quis explorar “a riqueza do nosso folclore, da nossa música popular, dos ritmos nordestinos, do choro”. E assume o débito com Villa-Lobos (que, não devemos nos esquecer, tocava violoncelo), homenageando-o com uma citação das Bachianas Brasileiras No 4.
 

Bachianos e brasileiros são também Meneses e Mehmari que, embora pratiquem um jeito brasileiro de fazer música, aplicam esse sotaque ao repertório universal. Assim, além das composições de Mehmari (a Suíte Brasileira, Aurora Nasceu e Impermanências), começam e terminam seu diálogo musical por Johann Sebastian Bach (1685-1750), com quatro transcrições de obras contemplativas do mestre do Barroco alemão: duas de Mehmari, uma do pianista russo Aleksandr Ziloti (1863-1945, cujo nome também aparece com a grafia germânia, Siloti), e outra do francês Pierre Fournier (1906-1986), apelidado de “aristocrata dos violoncelistas”.
 

No caminho que leva de Bach a Bach, espaço para a música argentina, com o mestre do cruzamento de estilos que foi Astor Piazzolla (1921-1992). Ocupando, no tango, um papel de renovador equivalente ao de Tom Jobim na bossa nova, Piazzolla voltou-se, em 1982, para o maior violoncelista daquela época, compondo Le Grand Tango em homenagem a Mstislav Rostropovich (1927-2007).
 

Só que Rostropovich, então, não sabia nada a respeito do músico argentino, e não deu importância à partitura que lhe foi dedicada e enviada. Passaram-se oito anos até que o mago russo do violoncelo descobrisse os encantos da música de Piazzolla. Envolveu-se com a peça a ponto de pedir mudanças na parte do seu instrumento e, antes de fazer sua estreia mundial, em 1990, Rostropovich deslocou-se a Buenos Aires, e pediu conselhos estilísticos ao compositor, em uma sala do Teatro Colón. Desde então, Le Grand Tango entrou no repertório dos grandes violoncelistas.
 

Décadas antes de se tornar referência internacional, o jovem Piazzolla cruzava Buenos Aires de ônibus duas vezes por semana para tomar aulas de composição, orquestração e harmonia com o principal compositor erudito argentino de todos os tempos: Alberto Ginastera (1916-1983). Influente e premiado, Ginastera passou por diversas fases, de um nacionalismo militante inspirado no folclore gauchesco até a adoção de técnicas de vanguardas.
 

As três peças que ele chamou de Pampeanas (a primeira é para violino e piano, e a terceira, para orquestra) pertencem à etapa de sua produção classificada de “nacionalismo subjetivo”, na qual Ginastera evoca o caráter dos pampas argentinos sem o emprego direto de temática folclórica. A Pampeana No 2 foi estreada em 1950 pela violoncelista que, duas décadas mais tarde, se tornaria esposa do compositor: Aurora Nátola.
 

Se a Suíte Brasileira trabalha com os gêneros que Antonio Meneses ouvia o pai cantar, na infância, esse repertório está representado de forma direta pela lírica Sem Você, parceria de juventude de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, gravada em 1958 por Lenita Bruno para o selo Festa, no disco Por toda a minha vida, e no ano seguinte por Silvia Telles, em Amor de gente moça (EMI-Odeon).
 

Já André do Sapato Novo tem o prenome de Mehmari que, contudo, elaborou um arranjo que se refere à trajetória profissional de Meneses. Composto pelo saxofonista e clarinetista André Vítor Corrêa (1888-1948), e celebrizado pela gravação de Pixinguinha e Benedito Lacerda, o choro narraria um incidente da vida de seu autor, que teria machucado o pé ao, calçando um incômodo calçado recém-comprado, dançar com a namorada a noite inteira, em uma festa. Ainda de acordo com a lenda, cada uma das “paradinhas” da música seria uma pausa de André na dança, tirando o sapato para massagear o pé dolorido. Aqui, o que nosso André, o Mehmari, faz, é incluir pequenas citações de obras consagradas do violoncelo erudito, que fazem parte do repertório de Meneses. Um brincadeira cultivada, bem-humorada e respeitosa, que ilustra o deleite do fazer musical em conjunto desses dois músicos superlativos.
 

Irineu Franco Perpétuo

 

Repertório:
1 - Arioso - 3:36 (J.S Bach)
2 - Impermanências - 4:55 (André Mehmari)
3 - Preludio - 2:10 (André Mehmari)

Suíte brasileira para cello e piano
4 - Choro-canção - 3:41 (André Mehmari)
5 - Frevo - 2:13 (André Mehmari)
6 - Valsa - 3:28 (André Mehmari)
7 - Baião - 3:27 (André Mehmari)

8 - Adagio - 3:21 J.S Bach
9 - Sem você - 5:58 (Antonio Carlos Jobim)
10 - Pampeana nº 2 - 8:27 (Alberto Ginastera)
11 - Gran Tango - 12:00 (Astor Piazzola)
12 - Corale - 4:40 (J.S Bach)
13 - André de Sapato Novo - 3:45 (André Vitor Corrêa)
14 - Aurora Nasceu - 5:07 (André Mehmari)
15 - Aria - 4:46 (J.S Bach)

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