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postado em 18/10/2017

Quarteto Carlos Gomes - Carlos Gomes, Alexandre Levy e Glauco Velásquez

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Quarteto Carlos Gomes

 

O Quarteto Carlos Gomes nasceu há cerca de quatro anos, mas nem parece: o entrosamento de seus integrantes e a alta qualidade do trabalho nos faz acreditar que estamos diante de um grupo com décadas de estrada. Seu som refinado, trabalhado nos mínimos detalhes, e a sólida concepção artística que o conjunto demonstra, não lembra um grupo que ainda dá os primeiros passos. Em parte, isso acontece porque dois dos integrantes já estiveram juntos em outro quarteto que marcou época. Cláudio Cruz (violino) e Alceu Reis (violoncelo) trabalharam lado a lado durante onze anos no Quarteto Amazônia. Para formar o Quarteto Carlos Gomes, esses dois músicos experientes e de altíssima capacidade técnica chamaram dois jovens talentosos: Adonhiran Reis (violino) e Gabriel Marin (viola).
 

O Quarteto Carlos Gomes, que ensaia regularmente e segue uma ativa agenda de apresentações e gravações, nasceu com o objetivo de difundir a música brasileira, latino-americana e contemporânea. Em 2016, gravou seu primeiro CD pelo Selo Sesc, com os três quartetos de cordas de Alberto Nepomuceno. A impecável interpretação do grupo jogou luz sobre essas obras, verdadeiras pérolas da música de câmara brasileira. Além disso, mostrando que possui um comprometimento real com a difusão desse repertório, o Carlos Gomes lançou a edição das partituras (Editora da Osesp), permitindo que outros grupos e toda uma geração de estudantes de música tenham acesso a esse material e possa também interpretá-lo.

 

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Adonhiran Reis, Gabriel Marin, Cláudio Cruz e Alceu Reis

 

Neste segundo CD, o Quarteto Carlos Gomes segue trabalhando com o romantismo brasileiro, um período até recentemente deixado em segundo plano por músicos e pesquisadores, que dirigiam seu olhar preferencialmente para a música colonial brasileira ou para o modernismo nacionalista e seus desdobramentos. Temos aqui reunidos três compositores de estética romântica e gerações diferentes. De um lado, Antônio Carlos Gomes (1836-1896), primeiro compositor brasileiro a alcançar renome internacional, consagrado autor de óperas como O Guarany e Lo Schiavo. De outro, autores altamente talentosos e que morreram jovens, deixando a sensação de algo inacabado pelo caminho: Alexandre Levy (1864-1892) e Glauco Velásquez (1884-1914).
 

Se Carlos Gomes se dedicou sobretudo à ópera – seu talento foi descoberto graças à Academia de Ópera Nacional e pôde ser lapidado em estudos na Europa, onde escreveu e estreou a maioria de suas obras – tanto Levy quanto Velásquez nos legaram principalmente peças de câmara. Isso se deu tanto pela brevidade de suas vidas como pelo fato de que não havia a disposição de ambos uma orquestra fixa, na qual suas composições pudessem ser executadas (os dois estiveram na Europa, mas desenvolveram suas carreiras profissionais no Brasil). A música de câmara, então, era o espaço ideal para dar vazão à sua criatividade musical, na certeza de que as obras seriam tocadas – tanto em saraus particulares, entre amigos e familiares, quanto em pequenas apresentações públicas.

 

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Alexandre Levy

 

Alexandre Levy nasceu em São Paulo, filho do imigrante da Alsácia, Henrique Luiz Levy, que havia fundado no centro da cidade, poucos anos antes, a Casa Levy de Pianos. Na adolescência, Levy já compunha e se apresentava ao piano – em 1880, aliás, escreveu uma fantasia para dois pianos sobre temas da ópera O Guarany, demonstrando a afinidade que unia a família Levy a Carlos Gomes (Henrique Luiz Levy costumava se apresentar ao lado de Gomes e foi um dos grandes entusiastas de sua ida à Europa para estudar). Em 1887, Alexandre Levy passa alguns meses em Paris estudando harmonia com Émile Durand (que também foi professor de Debussy) e compõe algumas obras orquestrais: o Andante Romantique, que depois foi incorporado à Sinfonia em mi menor e Variações sobre um tema brasileiro, na qual utiliza a melodia “Vem cá, bitú”.
 

Seu único Quarteto de cordas foi escrito em 1885, quando o autor tinha apenas 21 anos e, portanto, antes de sua estadia europeia. A obra tem os quatro movimentos habituais (rápido-scherzo-lento-rápido) e nos dois primeiros nota-se a total primazia do primeiro violino, que em alguns momentos estabelece um sutil diálogo com o violoncelo. O terceiro movimento (Adagio molto, quasi lento) é o ponto alto da obra. Introspectivo, meditativo e, em alguns momentos, de uma dramaticidade contida, ele também traz, do ponto de vista técnico, maior equilíbrio entre os instrumentos. Um alegre finale, também equilibrado, encerra a peça.

 

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Antonio Carlos Gomes

 

Escrita alguns anos após o quarteto de Alexandre Levy, a Sonata em ré, “Burrico de pau”, de Carlos Gomes, data de 1894 e é obra dos últimos anos de vida do autor campineiro. Carlos Gomes dedicou-se ao gênero lírico e deixou poucas obras instrumentais. A Sonata em ré foi dedicada ao Clube Sant’Anna Gomes – associação musical campineira dirigida por Sant’Anna, seu irmão. É  originalmente um quinteto (previa ainda um contrabaixo), o que reforça a ideia de que ela tenha sido pensada para ser executada também por uma orquestra de cordas.
 

A opção pela escrita camerística, no entanto, se dava para facilitar a execução da peça, no caso de não se dispor de uma orquestra. Esse é um procedimento bastante comum em peças de câmara do romantismo brasileiro. Como diversos outros grupos que tocam a obra o Quarteto Carlos Gomes fez uma adaptação da partitura original. A Sonata em ré tem quatro movimentos e é extremamente expressiva.
 

Desde o primeiro movimento, o diálogo entre as vozes é constante e rico, e a todo momento somos capturados por melodias irresistíveis. No allegro scherzoso (segundo movimento), temos uma grande brincadeira em que todos dividem o protagonismo. O largo é melodioso, com um belo diálogo entre os instrumentos. O último movimento é o que leva o nome de “Burrico de pau”, e novamente acompanhamos uma espécie de brincadeira, com diálogos e passagens bem-humoradas. Ao que consta, o título veio de um sonho de Carlos Gomes que, montado em um cavalo de madeira infantil, cavalgava em direção ao céu. Assim ele procura, por meio de um elemento rítmico-melódico que se ouve principalmente no primeiro violino, criar um efeito onomatopaico que simula o relinchar de um burro. É um trabalho que demonstra claramente o grande conhecimento de Carlos Gomes do gênero instrumental-camerístico, e não seria exagero dizer que se trata de uma pequena obra-prima.

 

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Glauco Velásquez

 

Por sua vez, o Quarteto de cordas de Glauco Velásquez foi escrito já no século XX, em 1910. É a obra mais importante do disco sob o ponto de vista musicológico, uma vez que a partitura manuscrita estava até recentemente adormecida na biblioteca da escola de música da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Por um esforço do próprio Quarteto Carlos Gomes, teremos a partir de agora uma versão revista e editada, bem como sua primeira gravação.
 

Glauco Velásquez nasceu em Nápoles, fruto de uma relação não oficial entre Adelina Alambary, moça da sociedade carioca, e de seu professor de canto Eduardo Medina Ribas, português pertencente a uma célebre família de músicos. Foi trazido ao Brasil aos 11 anos de idade e pouco depois de ingressar no Instituto Nacional de Música já chamava atenção pela qualidade de suas obras. Tanto seus professores como importantes intérpretes da época empenharam-se em difundir suas composições. Darius Milhaud foi outro que ficou fortemente impressionado com a produção de Velásquez – cujas obras românticas trazem ecos wagnerianos arrojados para o ambiente musical brasileiro de então.
 

Seu Quarteto foi escrito poucos anos antes de sua morte, e não deixa dúvidas de que já temos aqui um autor maduro. Ao longo da obra, algumas características permanecem constantes, como o diálogo intrincado entre os instrumentos e um andamento que, mesmo nos movimentos rápidos, é comedido: o trecho lento, doce e de emoção contida após o primeiro minuto do primeiro movimento anuncia o clima de toda a peça – clima que, por vezes, causa estranhamento aos ouvidos. Em comparação com as peças de Levy e Gomes, o Quarteto de Glauco Velásquez é uma obra menos solar e mais misteriosa – uma pequena joia da música de câmara brasileira que volta à vida com o Quarteto Carlos Gomes.
 

Se o período romântico brasileiro ficou por algum tempo abandonado – e considerando que a produção de câmara dessa época é seu grande legado – só se pode desejar vida longa ao Quarteto Carlos Gomes, o que nos trará um benefício duplo: o de desfrutar de um conjunto do mais alto nível e que disputa desde já o posto de melhor quarteto de cordas do Brasil, e o de ver levado adiante um trabalho sério com o repertório brasileiro.

Camila Fresca
 

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