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postado em 24/11/2017

Cássia Carrascoza - Tempo Transversal [Flauta Expandida]

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O Selo Sesc lança em novembro mais um título dedicado ao universo da música instrumental, desta vez com enfoque na flauta transversal por meio do trabalho da flautista Cássia Carrascoza e seu experimentalismo. Em Tempo Transversal – Flauta Expandida, Cássia nos apresenta a flauta de uma forma inusitada, misturando-a a sons eletrônicos, ruídos e emissões vocálicas. Com sete faixas, o CD traz cinco inéditas, compostas especialmente para o álbum, num trabalho árduo entre a flautista e os seis compositores de peso que integram o trabalho: Alexandre Lunsqui, Igor Lintz Maués, Mikhail Malt, Rodolfo Coelho de Souza, Sergio Kafejian e Silvio Ferraz. 

Damos a palavra a Fernando Iazzetta, professor na área de Música e Tecnologia do Departamento de Música da Escola de Artes da USP e coordenador do Laboratório de Acústica Musical e Informática (LAMI) para falar sobre esse belo projeto que dá ares inusitados para um instrumento considerado clássico, além de comentar o processo criativo de cada faixa.

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TEMPO TRANSVERSAL – FLAUTA EXPANDIDA

Este é um trabalho raro no contexto musical brasileiro. Em primeiro lugar, pelo registro de um repertório de peças que reflete ao mesmo tempo a riqueza e diversidade da produção musical no país. Em segundo lugar, pela qualidade da interpretação realizada por Cássia Carrascoza. Tudo aqui foi bem cuidado. Cássia Carrascoza escolheu as peças, trabalhou em proximidade com os compositores, muitas vezes interagindo diretamente com eles no processo de composição. Essa ligação entre quem toca e quem compõe é fundamental para a produção da música hoje. Se pensarmos na música tradicionalmente tocada nas salas de concerto, geralmente focada no repertório de épocas passadas e com pouca atenção para a produção contemporânea, essa relação é sempre indireta. Ela vem da tradição que vai se construindo a partir da execução recorrente dessas obras. É assim que construímos concepções musicais diferentes para estilos e épocas diferentes: quanto rubato deve ser usado numa passagem, qual a intensidade de vibrato neste ou naquele compositor, quão flexível pode ser o andamento de um movimento de sinfonia.

Mas quando o intérprete está diante de uma peça inédita ou do uso de uma técnica instrumental não usual, nem sempre é possível contar com os conceitos estabelecidos pela tradição. Tudo está por formar-se e são justamente as escolhas do intérprete que moldarão as novas maneiras de tocar as músicas feitas naquele período. A possibilidade de diálogo estreito entre músico e compositor, como acontece neste trabalho, é fundamental, pois é desse diálogo que surgem as concepções musicais de um determinado repertório. Várias das peças que formam este CD foram compostas especialmente para Cássia, e muitas vezes os compositores contaram com a possibilidade de experimentar suas ideias juntamente com a flautista antes que elas fossem fixadas nas partituras. 

Todo esse cuidado com a composição e interpretação das músicas coloca em evidência a sonoridade da flauta. O som é colocado em relevo, quase como se fosse uma matéria da qual podemos descobrir os planos, as texturas, os movimentos. E essa descoberta tem certamente um aliado: o trabalho cuidadoso do experiente Ulrich Schneider, responsável pela produção de áudio do CD. Schneider é conhecido no meio da música de concerto pelas gravações cristalinas que tem feito com as mais diversas formações instrumentais, de solistas a renomadas orquestras brasileiras.

Num país em que a flauta teve como referência nomes como Patápio Silva e Altamiro Carrilho, destacar-se neste instrumento não representa pouca coisa. Seu domínio do instrumento, sua versatilidade em relação às técnicas e estilos, e sua generosidade enquanto artista fizeram com que ela fosse mais e mais requisitada para colocar em sons o que compositores imaginaram para o seu instrumento.  Essa proximidade com os compositores é um aspecto fundamental deste CD. Cada obra tocada representa um relacionamento particular com cada autor. Cássia Carrascoza não toca apenas aquilo que viu nas partituras. As performances são também fruto das conversas, das trocas de ideias e da interação com os autores das peças. Num repertório em constante transformação, em que a tradição estilística não está (e talvez nem deva estar) consolidada, o estreitamento da relação entre quem compõe e quem toca é fundamental.

Certamente, esse contato entre intérprete e compositor não é isento de atritos, tensões, aprendizados. O que imaginamos quando pensamos em figuras como Beethoven ou Debussy está sempre modulado por um imaginário construído em torno desses compositores. Eles são emblemas, símbolos de coisas que projetamos sobre seus nomes. Mas num projeto como este, a situação é bem diferente. Temos a clara noção de que o que ouvimos não se dá num plano ideal, mas é resultado do trabalho e dedicação dos compositores e da intérprete. Cássia Carrascoza teve o cuidado de viajar a Paris para discutir com Mikhail Malt as sonoridades de sua Khorwa – Myalwa e não é difícil imaginá-la jantando numa cantina italiana com Silvio Ferraz, com quem já participou em inúmeros projetos, ou improvisando com sons multifônicos na sala de estar de Alexandre Lunsqui. Não pode sair de uma relação tão próxima, tão sincera, uma música que não seja igualmente íntima e ao mesmo tempo verdadeira – uma música que é bem mais do que as notas pintadas no pentagrama ou do que os sons que invadem nossos ouvidos. A música em Tempo Transversal – Flauta Expandida coloca a escuta em ação, provoca imagens sonoras, traz o conforto que só é possível quando admiramos alguma coisa.

 



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Kahorwa – Myalwa (Samsara, os infernos) (Mikhail Malt, 2016) para flauta baixo e sons eletrônicos, está fortemente ligada aos processos técnicos de composição. A realização é na verdade um duo entre a instrumentista e compositor e a versatilidade dos sons produzidos pela flauta baixo, com nuances súbitas de dinâmica, articulações, introdução de ruídos de chaves e de sopro e emissões vocálicas que permitem a criação de um rico vocabulário sonoro. Sons que geralmente seriam inaudíveis para nossos ouvidos são captados por microfones colocados próximos ao corpo do instrumento para serem processados eletronicamente. Por trás do artesanato fino de Malt, que proporciona uma fusão admirável entre os sons do instrumento e os sons sintéticos, há toda uma simbologia, quase esotérica, traçada pelo compositor. Os orientalismos que identificamos aqui e ali vêm da referência à ideia dos “seis reinos de existência” do budismo tibetano. Em Kworwa – Myalwa o compositor propõe uma perambulação pelos 18 infernos: oito infernos quentes; oito infernos frios; os quatro infernos vizinhos e o Salmali de ferro (que contam como um); e os infernos efêmeros. Metaforicamente, a flauta representa a consciência contemplando a descrição dos infernos que é feita pela eletrônica.

 

Kairos IV – Pássaros de Pó (Silvio Ferraz, 2016) remete imediatamente à questão da sonoridade. Essa tensão entre a ideia de nota – essa entidade abstrata que permite que se crie todo tipo de relações e hierarquias, como acordes, escalas e intervalos – e de som entendido como concreto, quase material, é central para a compreensão da música feita nos últimos 100 anos. Uma coisa é escrever notas que representam um dó sustenido ou de um acorde maior. Outra é trazer para a composição uma imagem cada vez mais precisa do som em todas as suas qualidades dinâmicas: o tipo de articulação, as modificações de sua textura, seus movimentos no tempo, suas inflexões tonais. Em Kairós IV – Pássaros de Pó, as notas criam pequenas e insistentes filigranas sonoras que vão se modificando sutilmente a cada repetição. O caráter repetitivo chega a criar uma certa stasis em alguns momentos da peça, mas ao mesmo tempo somos convidados a imergir nas pequenas variações que se sucedem com regularidade. Tudo isso acontece com uma transparência tal que não nos damos conta da complexidade da composição. Também nesta peça fica evidente a simbiose entre o trabalho de composição e o de interpretação. Cássia Carrascoza, que já realizou muitos projetos com Silvio Ferraz, parece decodificar com facilidade essas imagens sonoras criadas pelo compositor e que nem sempre podem ser adequadamente notadas na partitura. Por sua vez, temos a impressão de que Silvio Ferraz não está compondo para flauta, mas sim para esse conjunto intimamente amalgamado que é a Cássia-tocando-flauta.

 

Mineral (Alexandre Lunsqui, 2016) é uma decomposição de camadas texturais que vão revelando traços melódicos e qualidades sonoras, como se fôssemos descascando uma rocha e descobrindo uma nova composição a cada camada que se revela. A fluidez da peça está relacionada ao processo de composição feito em estreita colaboração com a flautista. Por vezes fica evidente o caráter de experimentação, como quando um músico improvisa exaustivamente sobre um mesmo material, tentando revelar todas as suas propriedades, vencer suas resistências, aparar suas arestas. Pequenos motivos obstinados (ou em ostinato, como se costuma dizer entre músicos) criam a sensação de uma continuidade, quebrada aqui e ali com incisões de instabilidade gestual, métrica e de altura que na partitura aparecem com as indicações drunk e rock. São dois modos de tocar. O primeiro, impondo pequenos deslizes tonais (desafinações, se preferirem) que contrastam com a austeridade da maior parte da peça; o segundo, que aparece poucas vezes e de modo pontual, pedindo sons agressivos, percussivos e ruidosos, ou seja, uma sonoridade oposta àquela que nos vem à mente quando pensamos no som da flauta. A escrita transparente requer um trabalho dobrado da instrumentista que tem de manter um controle apurado da articulação de cada nota, já que qualquer variação é imediatamente percebida pelo ouvido.

 

Topografia I (Alexandre Lunsqui, 2001) para flauta baixo remete-se à paisagem formada pelas montanhas do sul de Minas Gerais. Lunsqui percebeu ali, no relevo das montanhas mineiras, as ondulações que serpenteavam como o contorno de linhas de uma melodia. Como Villa-Lobos, que transformou em melodia as linhas formadas pelos topos dos prédios de Nova Iorque em sua peça New York Skyline Melody, Lunsqui transcreve o contorno das montanhas para a flauta baixo. Mas ao contrário de Villa, Lunsqui não se contenta com o vai e vem das notas seguindo o perfil morfológico das montanhas. A peça cria realmente um deslizamento pela paisagem, que incorpora os gestos escondidos das montanhas mineiras: o escorregão nas partes acidentadas, a rápida contemplação nos planos mais estáveis, o frenesi nos pontos mais serrilhados. O caráter de ostinato é referência ao reticulado sobre o qual as linhas montanhosas são transformadas em notas musicais. A coerência da própria formação geológica empresta à peça uma espécie de narrativa, em que saltos, declives e aclives estão sempre conectados por alguma força maior (a gravidade?), em que as diferenças de texturas aparecem sem sobressaltos. A flauta atua como uma tecelã, criando um tecido para cada dobra da montanha, mas sempre partindo do mesmo fio.

 

Pedra D'Água (Sérgio Kafejian, 2014) para flauta e sons eletrônicos, leva a uma escuta da sonoridade que se sobrepõe aos eventuais aspectos formais da composição. Os sons eletrônicos – todos eles derivados de sons de flauta – dão relevo à flauta criando uma espécie de instrumento ampliado. A flauta, por sua vez, é submetida a uma série de técnicas não usuais, produzindo uma enorme riqueza de timbres. Repetições, jogos de oposição e sutis variações sonoras estabelecem um projeto narrativo simples e coerente para a peça que convida o ouvinte a imergir num espaço de sons. A palavra espaço aqui não serve apenas como metáfora para dar concretude à nossa percepção dos sons; ao contrário, ela indica uma escuta em que os sons são pensados como imagens, com formas e deslocamentos espaciais. A tranquilidade com que a trama sonora vai sendo tecida permite que se percebam as texturas, as tessituras, as camadas de cada som, como se estes fossem preenchendo o espaço. Aqui se destaca também a naturalidade com que Carrascoza produz um repertório variado de sonoridades esculpindo de maneira precisa cada som projetado na partitura de Pedra D'Água.

 

Os sons eletrônicos usados em Triflauto (Igor Lintz Maués, 1994) foram gerados num programa de computador chamado UPIC, desenvolvido por Iannis Xenakis. O contato de Maués com essa ferramenta aconteceu durante as comemorações dos 70 anos de Xenakis no festival Wien Modern – ele estave encarregado da apresentação da integral das obras eletroacústicas do compositor greco-francês. A ideia para a realização de Triflauto ocorreu quando Maués folheou por acaso a partitura da ópera Euridice (1600), de Jacopo Peri. Chamou-lhe a atenção particularmente uma cena em homenagem aos noivos (Orfeu e Eurídice), na qual uma personagem toca um instrumento a três vozes chamado triflauto. O instrumento, que até onde se sabe só existe na partitura de Peri, era provavelmente “dublado” por três flautas na orquestra. Maués faz sua própria leitura do mito de Orfeu ao multiplicar o som da flauta com os sons gerados pelo UPIC. Quase não há processamento nos sons da flauta, mas a partitura de Triflauto pede que os sons sejam captados por dois microfones relativamente distantes. O instrumentista deve movimentar-se entre os microfones criando um efeito bastante natural de espacialização.

 

Em Bestiário II: Salamandra (Rodolfo Coelho de Souza, 2016), para flauta e sons eletrônicos, temos outra peça para flauta acompanhada de uma parte eletroacústica produzida em estúdio. Mais uma vez, a composição foi realizada em estreita parceria com a flautista.  Sons e gestos foram testados juntamente com o compositor e mesmo a parte de sons sintetizados foi finalizada tendo como base a performance gravada da parte da flauta.  A música de Rodolfo Coelho tem um forte apoio em gestos melódicos e pulsações regulares, muitas vezes aproximando-se de uma abordagem minimalista. Seu uso da eletrônica em Bestiário II não é mimético. Antes, contrapõe-se diretamente à sonoridade da flauta. O contraste é usado como recurso composicional: a flauta representa, na composição, a salamandra, ser que na mitologia grega se originava do fogo e era capaz de viver nas chamas. A agilidade das linhas melódicas da flauta, com seus saltos e volteios, remete diretamente aos movimentos do bicho. Os sons eletrônicos, geralmente mais potentes e densos do que os da flauta, representariam justamente o fogo. O resultado final é quase um embate entre a versátil flauta de Cássia Carrascoza e os sons sintetizados por Rodolfo Coelho. 

 

Fernando Iazzetta
maio de 2017

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