Sesc SP

postado em 06/08/2018

Cantos De Trabalho II - A música que viaja

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COMEÇO

 

Toda viagem tem um prólogo. Usualmente acompanhado de certa ansiedade que se traduz na forma relapsa como fazemos as malas, sempre saindo de casa com aquela sensação de que esquecemos alguma coisa: o livro "Ioga Para Quem Não Está Nem Aí", encarregou-se de guardar o forte em São Paulo. Trata-se de um livro de viagens, no qual Geoff Dyer, autor de "Todo Aquele Jazz", traz textos de suas andanças, envolvendo música ou não, pelo mundo. O autor estava atolado no lago Tonlé Sap, no meio do sol escaldante do Camboja no exato momento em que a toalha e o chinelo tomaram seu lugar na mochila.

Carrega-se o carro, imprimem-se quilos de autorizações de imagem e outras burocracias, última carregada no celular e rumamos para Guarulhos. Cacetada! O celular ficou carregando em cima do gaveteiro, escondido pela mesa, aparado pelo cabo curto e a tomada distante no escritório. Aquele calafrio de mau agouro faz a boca secar e a cabeça começa a funcionar à milhão, se pondo no estado em que não há perigo das coisas darem certo, como diria o outro. A sorte é que se viaja em dupla, e o parceiro é um poço de tranquilidade que agiliza toda a correria com os anjos administrativos e o celular chega em mãos: Bahia 2, Selo Sesc 1.

O embarque é tranquilo. Um gif de avião decolando e duas horas depois já estamos saindo da locadora de carros rumo ao sertão baiano. O rádio companheiro dá as boas vindas com um cardápio sortido que vai de Lulu Santos à Banda Magníficos - um prato cheio pra quem se diverte com o valor que o som acrescenta às imagens que a cabeça não para de registrar: é o som que nos assenta no lugar. "Bem Vindo a Feira de Santana, princesa do Sertão" diz a placa logo depois de passarmos debaixo duma ponte onde se lê "Portal do Sertão" - o vocábulo "portal" é preciso. O destino final, Bravo, distrito de Serra Preta, não está no GPS ou no Google Maps, mas sim à uns 80 km de distância, no caminho de Ipirá.

Na estrada escura logo às 18h, parece que vamos ser engolidos pelo breu. O co-piloto e piloto divergem sobre a informação dada por um local cinco segundos depois de ouvir as orientações e arrancar com o carro, "não, cara, era pra direita depois da estrada...", "tá maluco? a gente vai voltar lá pra trás!", "bicho, para ali que eu vou fazer xixi e perguntar de novo...". Enfim, o trevo anuncia, logo depois da placa com o melhor requeijão da região: bem vindo ao Bravo!

Uma estrada leva ao centro da cidade, alternando asfalto e chão. Quando se avista a primeira praça, com um jardim rodeando seus limites e algumas árvores projetando sombra na luz de mercúrio, um déja vu: certamente, quem vem do interior conhece o lugar e já viveu situação similar nos solavancos que o carro produz enquanto avança sobre os paralelepípedos da via. Duas paralelas levam ao largo da igreja e do mercado municipal e depois se estendem até o fim da área urbana. O largo é um elevado de uns 10 centímetros do chão, coberto por pedras iguais às da rua, o que torna tudo a mesma coisa: rua, largo, árvores poucas, pedestres, carros e motos - muitas motos - coexistem numa harmonia um tanto acelerada pelo barulho dos escapamentos. O som nos desloca do lugar.

Obviamente, pensava-se que chegaríamos no dia seguinte, junto do restante da equipe. Tudo se resolve rápido porém. Nosso anfitrião está em Feira e diz de brincadeira que foi enganado - manda avisar que amanhã cedo nos encontra pro café e pra feira em Ipirá. Jantamos galinha ensopada (frango ao molho, no paulistês).

Uma volta pela cidade à pé. Adolescentes e crianças passeiam em duplas e grupos. Os homens montam acampamento no bar debaixo de um toldo em frente ao largo da Igreja. O pastor jovem demais prega na filial pentecostal. Cansaço, dormimos.

O calor é onipresente no semiárido baiano. Ele te acorda e te nina. A palavra falada, mais do que a escrita, também; e faz uma trilha sonora constante em nossos ouvidos, às vezes permeada por um imperativo saído da boca de nossos anfitriões: “Viu!? Amanhã, às sete e meia vocês encontram o Seu Zelito aqui!” ou, por hora, exclamada aos sete cantos pelo carro de som que anuncia o mais novo evento da cidade: Cantos de Serra Preta. Aliás, é isso que a cidade faz o tempo todo conosco: fala e propõe uma “ilusão de realidade”, uma sequência de imagens e vozes parciais, sujeitas a leis próprias, cujos fragmentos são desencadeados diante de nossos olhos. Tudo é passível de uma perene incompreensão, natural a dois forasteiros paulistas.


Dormimos o suficiente, não mais do que às sete horas necessárias para se pôr de pé com facilidade e rumamos para o café. O Restaurante Jesus é a Luz, é frisado com um grande pôster na parede onde lêem-se variações de passagens bíblicas famosas; outrora salvação para viajantes à deriva, o local passa a ser o ponto de encontro oficial diário de nossa aventura sertaneja. Nele felizmente aprendemos que o calor seria um dos poucos reveses neste baralho. O café da manhã chega paulatinamente em doses, tal qual o menu degustação de um restaurante estrelado. Entre bananas-da-terra, batatas doces, ovos mexidos, aipins cremosos e pães fresquinhos, ganhamos uma certeza: de fome, aqui a gente não morre.


Seguimos a cartilha do dia devorando o café que se tornaria um costume até o fim da viagem. Ao passo que nossos rostos tornavam-se conhecidos, conversamos sobre nossas expectativas com Socorro, dona da pousada e também nossa principal interlocutora com Seu Zelito, ser humano que ocupará bons parágrafos ao longo deste relato. No Bravo, apesar da conexão com a internet ser escassa, a comunicação não é menos eficaz. Em poucos minutos, já soubemos que Zelito viria a nosso encontro em trinta minutos. O dia que para nós se iniciava às 7h, já ganhava contornos e reviravoltas antes das 8h.

 

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SEU ZELITO

 

O primeiro contato que tivemos com seu Zelito foi durante as reuniões sobre o projeto que iríamos filmar dali um mês. desde antes, a ideia era focar no encontro: fosse da pesquisa com o objeto, do som com o gravador, das pessoas todas envolvidas. a princípio, acreditava-se que serra preta, bravo e adjacências fossem conhecidas fruto de andanças pelos interiores do país buscando cantos de trabalho. "na verdade, eu cheguei neles pelo youtube".

A caneta parou de escrever no bloquinho e os olhos se arregalaram na direção do companheiro de labuta: pelo youtube! Soube-se ali os predicados que antecedem a figura de Zelito: ex-prefeito de Serra Preta, um documentarista inveterado da cultura tradicional daquele sertão baiano, munido da sua handcam, amigo de whatsapp da pesquisadora que nos guiaria pela Bahia. "nós conversamos muito durante o último ano. agora ele até me manda vídeos engraçados no whatsapp, meio família quase, sabe?".

O encontro, antecedido pelos vídeos e pelos chats, ainda valeria para a história e se daria na entrada para a feira em ipirá, 40 km do bravo, perto do meio dia. Antes disso, na noite anterior, Zelito se fez presente como a voz do outro lado do telefone de Dona Socorro, "pois é, Zelito, o pessoal de São Paulo já está aqui... isso! Lhe aplicaram! Haha". Socorro ainda diria à Joelva que lhe ajudava na pousada, "é hoje que Zelito não dorme!".

No outro dia, o Bravo cintilava debaixo do céu nublado perto das 7 da manhã: tudo era branco. A vida ardia nos olhos ao mesmo tempo que já acontecia como se fossem 10h num dia de semana: havia certa urgência e movimento à despeito do tempo, do branco, das nuvens, do horário de verão que não existe na Bahia - o sertão está noutro fuso horário. "não chove faz dois anos, sei não essa nuvem..." nos disse um senhor na casa dos seus 70 anos, cabelinho penteado para trás e para o lado, muito lépido, pequeno e magro como um pardal, usando óculos de aros finos e redondos por cima dum nariz quase-largo-quase pontudo que fazia sombra à boca bem desenhadinha e estreita: seu Zelito nos recebia antes do café.

E o homem nos levou para a feira de Ipirá antes das 9h: no caminho, a promessa de um requeijão bom de verdade na sexta feira; uma palestra sobre violência urbana e êxodo rural; uma ligeira falta de direção dentro de ipirá, uma volta no centro, na igreja, numa rua na contramão e algumas buzinadas seguidas "aê, Zelito!".

 

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A FEIRA DE IPIRÁ

 

A feira era num ponto próximo ao centro, mas distante das construções, casas e comércios: havia um espaço enorme num terreno com uma cerca baixa, que dependendo do ponto onde estivesse, seria necessário descer umas escadas pra chegar ao pavimento da feira. Ali, tendas, barracas e cestos expunham verduras, frutas, móveis, roupas, cds, passarinhos, bolsas e ervas. No meio do pavimento, um galpão onde se vendia grãos e bijús e farinhas, circundado por pequenos bares e restaurantes de balcão. Anexo a este galpão, outro espaço, todo azulejado onde se vendia carne.

11h e o corpo pedia um pouco de água; as câmeras um pouco de sombra. Parada num posto de beira de estrada. "aqui a tradição é não se cobrar o café". Mais café. Um namorico com a bota da loja de couros. Estrada. Ponto de encontro. "Rapaz, será que a gente não se demorou demais no posto? Não podemos deixar o pessoal esperando...": das características todas que Zelito ainda ofereceria no tempo que nos acompanhou, a atenção ao outro e ao compromisso que se firma, se sobreporia à todas suas qualidades e defeitos.

O ponto de encontro é uma saída da estrada que leva à Ipirá. de um lado, um outdoor enorme, sobre prevenção da catarata, "rapaz, vamos fazer a entrevista ali no mato, aqui parece que eu sou cego...", do outro, uma construção grande que não conseguimos saber se era um atacado, um restaurante em construção ou só um galpão com logomarca na frente. O carro branco que traz Renata, Clara, André e Beto chega tranquilo e os abraços são de agradecimento: do lado de Zelito, segundo ele, uma honra; do lado de Renata, a honra é dela. Voltamos pra feira.

Nosso retorno à feira ganhou horizontes mais específicos. Se na ida com Seu Zelito horas atrás, o tempo foi tomado por encontros, desencontros e um enfático deslumbre com a catarse, na volta revelou-se um terreno fértil para contemplação. A feira se dissipou rapidamente e, sob o sol do meio-dia, a equipe percorreu novamente suas veredas vislumbrando detalhadamente e registrando os personagens que o acaso jogava diante de nosso cine-olho (o acaso tinha nome e se chamava Zelito).

“Ah, Dona Cida, mas esse xarope faz como?” perguntava o cabra vibrante apontando sua camereta para a vendedora de temperos e logo depois a guardando cuidadosamente em sua bolsa preta, que carrega na mão. Seu Zelito, aliás, como Renata adiantara, guarda fama de youtuber de Serra Preta: em uma de suas vídeo-denúncias, por exemplo, brada contra a ainda constante venda ilegal de pássaros silvestres na região. “Qual foi o crime que esse bichinho cometeu?” denuncia Zelito enquanto liberta o animal das grades e passa com as rodas de um quatro por quatro por cima da gaiola. Diante dessa fama, o ex-prefeito é visto com olhares desconfiados quando passa por um setor da feira dedicado a esta prática.

Mais algumas voltas: bolsas de artesanato local, barracas de CD de arrocha, frutas e legumes, todo tipo de tempero e remédios para enfim nos distanciamos da feira. Era hora de zarpar. Uma parada por um restaurante local em Ipirá nos leva a um grupo de vaqueiros, que sentados a frente de um bar, veem a banda passar; sacamos a câmera e registramos uma história. O anúncio vindo de um alto-falante acoplado num Monza ecoa na praça: “Se você tem sífilis, diabetes, enxaqueca, dor na coluna, reumatismo, pancada, ferida, coceira, sinusite. Você usa a pomada da copaíba.” Cansados, regressamos ao Bravo.

 

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O PÔR-DO-SOL NA CASA DE TININHO

 

O laço da amizade ocasional foi se mostrando cada vez mais forte. Em dado momento, sentados em frente ao único bar posto no canteiro central da praça, somos surpreendidos por Seu Zelito, que ferozmente nos repreende: pela cerveja e o fumante pelo cigarro: “Ouvi que tá na moda parar de fumar”. O convite vem em seguida: “Bora na casa de Tininho. Precisamos convidar ele pra bata”.

O que se segue é uma boa amostra do que iria acontecer nos outros dias: todos ouvindo o "bora!" bem curto e bem enfático de Zelito, enquanto o próprio se atrasava ao cumprimentar um conhecido, fazendo propaganda da equipe, do registro e, de certa forma, dando peso às convicções com que desdenhava daqueles que diziam que documentar a cultura daquele canto do mundo não era mais que coisa de maluco..

A equipe chegada de São Paulo no mesmo dia ainda descansa, mas o tempo no semiárido passa devagar. São cinco horas da tarde e o sol ainda está a pino. Da praça, seguimos para vinte minutos de uma estrada de terra cercada. O carro morde a terra e nossa inexperiência com o relevo faz o carro trepidar incessantemente (um lifehack do sertão que vamos aprender somente após dois dias de direção ostensiva).

Atravessando porteiras, topamos com a casa de Dona Gilé, que demora a aparecer. Seu Tininho tem o privilégio, para uns, de morar perto da sogra. A senhora, com seus mais de noventa anos tem passada curta e um belo sorriso. Com um pouco de insistência, ela se desacanha e canta para Zelito. São seis hora das tarde e a câmera registra timidamente o primeiro canto de trabalho. A tônica da gravação será sempre essa? A resposta é sim. Notamos que a construção desse documentário se dará pelos encontros e para tal, teremos que estar sempre com as lentes a postas.

 

tininho

 

O crepúsculo crescia cada vez mais, o vento cada vez mais forte e as gotas de chuva ameaçavam despencar do céu semi nublado. Mais alguns metros de estrada de terra e chegamos a casa de Tininho. Metade do senhor de pele escura queimada de sol é um grande sorriso e a outra metade é simpatia e bom humor. Apesar da visita inesperada (dos cinegrafistas paulistas e não de Seu Zelito), batemos um papo e tragamos um café. Seu Tininho é também um ocupado carpinteiro que construiu sua própria casa de farinha com traquitanas, brocas, molas e madeiras que faziam um conjunto harmonioso e incrivelmente grande dentro do galpão do lado da casa. Logo percebemos que a preocupação de Zelito era convidá-lo pessoalmente para as festividades de Serra Preta, sobretudo o Canto de Roda e a Bata do Milho. “Só vou na Bata do Milho, na bata eu vou.” afirma Tininho convicto. O convite estava feito e o sol posto.

Uns quilômetros depois, o silêncio da estrada vence nossa conversa com Zelito. Fitar a paisagem já não é mais possível. É hora de voltar pro Bravo e aguardar o acaso novamente.

***

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Em todos os lugares que fomos, seu Zelito era onipresente. Os mais velhos o adoravam, os mais jovens não eram tão efusivos. Fazia questão, porém, de estar atento, como um passarinho ligeiro que sabe bem antes do inimigo o momento certo de buscar abrigo, de fazer festa e farra na roça na hora que os outros perdem tempo achando que o melhor mesmo é fazer troça.

Zelito, não. Estava ali, entregue, disposto o tempo todo feito o acaso que traz todo tipo de notícia boa àqueles que estão dispostos a seguir cantando.

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