ACORDA AMOR
"Acorda, amor / Eu tive um pesadelo agora / Sonhei que tinha gente lá fora / Batendo no portão, que aflição / Era a dura, numa muito escura viatura / Minha nossa santa criatura / Chame, chame, chame lá / Chame, chame o ladrão, chame o ladrão."
Reconheceu? Por mais que adentremos em nosso cotidiano escolar, mais especificamente nas aulas de português e as incansáveis figuras de linguagem (se os 30 ou 40 lhe parecem mais próximos) ou mesmo percorramos o passar do tempo vivido na não-tão-longe época da ditadura militar (se os 50 ou 60 já lhe estão consolidados), sabemos que essas frases sem tratam dos versos iniciais de uma obra-prima da música brasileira chamada "Acorda, Amor", de Leonel Paiva e Julinho da Adelaide, pseudônimos que Chico Buarque usou em 1974 para driblar a censura.
Felizmente com o pseudônimo Julinho de Adelaide, "Acorda, Amor" passou pelo crivo dos censores e saiu no álbum Sinal Fechado (Philips Records, 1974). A música retrata um dos períodos mais preocupantes da ditadura militar no Brasil - 1968 (depois da decretação do AI-5) a 1976 (quando o regime começou a enfraquecer) e faz alusão aos sequestros e desaparições promovidos no período e ao estado de letargia provocado pela repressão policial, responsável por torturas, sequestros e assassinatos. A ironia de Chico nos versos é tão clara na canção que quando os agentes da repressão chegam a casa, os ladrões é que são chamados para que sejamos socorridos. A esta altura, a professora já teria sublinhado o termo no quadro negro e aprenderíamos que:
Ironia [subs. feminino] figura por meio da qual se diz o contrário do que se quer dar a entender; uso de palavra ou frase de sentido diverso ou oposto ao que deveria ser empr., para definir ou denominar algo [A ironia ressalta do contexto.].
Dando um salto no tempo, chegamos a terceira década dos anos 2000 e se elencássemos as transformações do final do século XX ao final da última década do século XXI já teríamos conteúdo suficiente para esmiuçar novamente os anseios da sociedade e em que estado a arte se encontra agora - crise financeira global pós-2008, a explosão do número de refugiados, a volta do nacionalismo arraigada as preocupantes tendências autoritárias e xenófabas, o novo panorama da comunicação, onde a produção e disseminação das fake-news ocorrendo em escala industrial e, para piorar, uma pandemia letal de proporção global. Numa entorpecente explosão de medos e desconfianças com relação ao futuro, a ironia de Chico parece não dar conta do que se aproxima.
Foi assim. Para encarar esse estado de torpor e, ao mesmo tempo, evocar um despertar das consciências nasce o projeto ACORDA AMOR. Um grito de resistência e de afirmação das lutas identitárias que estão na ordem do dia, tanto nas redes sociais, rádio e TV, mas principalmente nas ruas, fazendo valer da tradição crítica da canção brasileira, muitas delas compostas e gravadas entre os anos 70 e 80, sintonizadas com seu tempo. No consenso de que a arte reflete as modificações da sociedade, seus anseios e sobretudo sua mentalidade.
Concebido no próprio Sesc São Paulo, fruto de um espetáculo produzido pelo programador cultural Devanilson Furlani, o Deva, ao lado do baterista Décio 7 e a jornalista Roberta Martinelli, ACORDA AMOR reúne as vozes de Liniker, Luedji Luna, Letrux, Maria Gadú e Xênia França, jovens cantoras que compartilham talentos e visões de mundo e interpretam aqui, nomes consagrados da música nacional, num repertório que dialoga com movimentos recentes.
Para dar cabo completo a apresentação, Roberta apresenta o projeto às suas próprias palavras levadas em texto no encarte do álbum, na sequência. O disco já está disponível nas plataformas digitais e também encontra-se à venda na Loja Sesc.
"Acorda Amor é um projeto que começou em 2017, a partir do encontro de Décio 7 com Devanilson Furlani, na época programador do Sesc Pompeia, a quem dedicamos com todo amor esse disco. A ideia inicial era um baile de carnaval. Mas, em 2017, bailar parecia difícil. Nosso país tomando um caminho muito diferente do que acreditávamos ou queríamos. Tudo dividido, dois lados: o de lá e o de cá. O de lá odeia tudo o que diz respeito ao de cá. O de cá não se conforma com nada do que acontece com o de lá. Tudo é grito, tudo é ódio. Que país que nós queremos? Quem somos nós? Existe nós? Onde está?
Nesse contexto, surge o Acorda Amor, completamente imerso em nossa realidade. E em tudo que nos aconteceu desde então. Vamos bailar e cantar sempre, claro. Mas, então, faremos isso com um repertório de músicas que estão entaladas na nossa garganta.
E tem tanto entalado aqui. Pense que loucura. Um país onde a arte vem sendo marginalizada. Isso. Artistas perseguidos ou até censurados. Através das músicas podemos entender o momento da história. Podemos até mudar o rumo dela. Então é cantando que perguntamos: Qual o papel da arte no contexto atual, (Esse que nos foi imposto)? Qual? Fundamental! A arte é a resistência, é a construção de nossa identidade e o nosso grito. Que mundo é esse que estamos querendo? Por qual mundo estamos lutando?
O show celebra o amor e a resistência como formas de transformação e a cultura brasileira como protagonista da mudança. No palco, cinco grandes cantoras da música brasileira: Liniker, Luedji luna, Letrux, Maria Gadú e Xênia França cantam um repertório todo escolhido com base na arte transformadora de todos os tempos - dos gritos sufocados no peito para a poesia cantada.
É hora de olhar, é hora de acordar!
Talvez ainda dê tempo.
Acorda amor"
Roberta Martinelli