Sesc SP

postado em 02/03/2020

ACORDA AMOR

Toda a equipe musical de Acorda Amor - Foto: Pablo Saborido
Toda a equipe musical de Acorda Amor - Foto: Pablo Saborido

"Acorda, amor / Eu tive um pesadelo agora / Sonhei que tinha gente lá fora / Batendo no portão, que aflição / Era a dura, numa muito escura viatura / Minha nossa santa criatura / Chame, chame, chame lá / Chame, chame o ladrão, chame o ladrão."

Reconheceu? Por mais que adentremos em nosso cotidiano escolar, mais especificamente nas aulas de português e as incansáveis figuras de linguagem (se os 30 ou 40 lhe parecem mais próximos) ou mesmo percorramos o passar do tempo vivido na não-tão-longe época da ditadura militar (se os 50 ou 60 já lhe estão consolidados), sabemos que essas frases sem tratam dos versos iniciais de uma obra-prima da música brasileira chamada "Acorda, Amor", de Leonel Paiva e Julinho da Adelaide, pseudônimos que Chico Buarque usou em 1974 para driblar a censura.

Felizmente com o pseudônimo Julinho de Adelaide, "Acorda, Amor" passou pelo crivo dos censores e saiu no álbum Sinal Fechado (Philips Records, 1974). A música retrata um dos períodos mais preocupantes da ditadura militar no Brasil - 1968 (depois da decretação do AI-5) a 1976 (quando o regime começou a enfraquecer) e faz alusão aos sequestros e desaparições promovidos no período e ao estado de letargia provocado pela repressão policial, responsável por torturas, sequestros e assassinatos. A ironia de Chico nos versos é tão clara na canção que quando os agentes da repressão chegam a casa, os ladrões é que são chamados para que sejamos socorridos. A esta altura, a professora já teria sublinhado o termo no quadro negro e aprenderíamos que:

Ironia [subs. feminino] figura por meio da qual se diz o contrário do que se quer dar a entender; uso de palavra ou frase de sentido diverso ou oposto ao que deveria ser empr., para definir ou denominar algo [A ironia ressalta do contexto.].

 

Dando um salto no tempo, chegamos a terceira década dos anos 2000 e se elencássemos as transformações do final do século XX ao final da última década do século XXI já teríamos conteúdo suficiente para esmiuçar novamente os anseios da sociedade e em que estado a arte se encontra agora - crise financeira global pós-2008, a explosão do número de refugiados, a volta do nacionalismo arraigada as preocupantes tendências autoritárias e xenófabas, o novo panorama da comunicação, onde a produção e disseminação das fake-news ocorrendo em escala industrial e, para piorar, uma pandemia letal de proporção global. Numa entorpecente explosão de medos e desconfianças com relação ao futuro, a ironia de Chico parece não dar conta do que se aproxima.

Foi assim. Para encarar esse estado de torpor e, ao mesmo tempo, evocar um despertar das consciências nasce o projeto ACORDA AMOR. Um grito de resistência e de afirmação das lutas identitárias que estão na ordem do dia, tanto nas redes sociais, rádio e TV, mas principalmente nas ruas, fazendo valer da tradição crítica da canção brasileira, muitas delas compostas e gravadas entre os anos 70 e 80, sintonizadas com seu tempo. No consenso de que a arte reflete as modificações da sociedade, seus anseios e sobretudo sua mentalidade. 

Concebido no próprio Sesc São Paulo, fruto de um espetáculo produzido pelo programador cultural Devanilson Furlani, o Deva, ao lado do baterista Décio 7 e a jornalista Roberta Martinelli, ACORDA AMOR reúne as vozes de Liniker, Luedji Luna, Letrux, Maria Gadú e Xênia França, jovens cantoras que compartilham talentos e visões de mundo e interpretam aqui, nomes consagrados da música nacional, num repertório que dialoga com movimentos recentes.

Para dar cabo completo a apresentação, Roberta apresenta o projeto às suas próprias palavras levadas em texto no encarte do álbum, na sequência. O disco já está disponível nas plataformas digitais e também encontra-se à venda na Loja Sesc.

 

 

capa-Acorda-Amor-low

"Acorda Amor é um projeto que começou em 2017, a partir do encontro de Décio 7 com Devanilson Furlani, na época programador do Sesc Pompeia, a quem dedicamos com todo amor esse disco. A ideia inicial era um baile de carnaval. Mas, em 2017, bailar parecia difícil. Nosso país tomando um caminho muito diferente do que acreditávamos ou queríamos. Tudo dividido, dois lados: o de lá e o de cá. O de lá odeia tudo o que diz respeito ao de cá. O de cá não se conforma com nada do que acontece com o de lá. Tudo é grito, tudo é ódio. Que país que nós queremos? Quem somos nós? Existe nós? Onde está?

Nesse contexto, surge o Acorda Amor, completamente imerso em nossa realidade. E em tudo que nos aconteceu desde então. Vamos bailar e cantar sempre, claro. Mas, então, faremos isso com um repertório de músicas que estão entaladas na nossa garganta.

E tem tanto entalado aqui. Pense que loucura. Um país onde a arte vem sendo marginalizada. Isso. Artistas perseguidos ou até censurados. Através das músicas podemos entender o momento da história. Podemos até mudar o rumo dela. Então é cantando que perguntamos: Qual o papel da arte no contexto atual, (Esse que nos foi imposto)? Qual? Fundamental! A arte é a resistência, é a construção de nossa identidade e o nosso grito. Que mundo é esse que estamos querendo? Por qual mundo estamos lutando?

O show celebra o amor e a resistência como formas de transformação e a cultura brasileira como protagonista da mudança. No palco, cinco grandes cantoras da música brasileira: Liniker, Luedji luna, Letrux, Maria Gadú e Xênia França cantam um repertório todo escolhido com base na arte transformadora de todos os tempos - dos gritos sufocados no peito para a poesia cantada.

É hora de olhar, é hora de acordar!
Talvez ainda dê tempo.
Acorda amor"

Roberta Martinelli

 

“Acorda

 

01. Gente Aberta

02. Deixa eu Dizer

03. Saúde

04. A Vida em seus Métodos diz Calma

05. Extra

06. O Quereres

07. Assumindo

08. Triste, Louca ou Má

09. Sujeito de Sorte

10. Não Adianta

11. Obaluayê

12. Conflito

13. Comportamento Geral

14. Chorando pela Natureza

15. Cinco Bombas Atômicas

16. Nuvem Cigana

17. Cansaço

18. Sem Preguiça para Fazer Revolução

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