Sesc SP

postado em 31/07/2020

As canções e a música para piano de Claudio Santoro

Ilustração de Margaret Mee na capa do álbum
Ilustração de Margaret Mee na capa do álbum

Durante todo o período de 2019, a música de concerto manteve-se envolta às lembranças e à genialidade de Claudio Santoro. Seja como violinista, compositor, maestro ou professor, o músico mantém um legado entre óperas, sinfonias e centenas de obras de embates estéticos e políticos. Entre os registros datados pelo último ano, encontram-se o centenário de nascimento do amazonense; os 30 anos do falecimento dele; e a comemoração das quatro décadas de fundação da Sinfônica do Teatro Nacional
Claudio Santoro (OSTNCS).

A partir de estudos no acervo pessoal do cravista Alessandro Santoro, filho de Claudio, o pianista Nahim Marun e a pesquisadora Camila Fresca fizeram um levantamento de canções para delinear e celebrar a versatilidade do compositor brasileiro. Durante esta peregrinação musical, 11 obras inéditas foram identificadas e, junto às 13 canções concebidas da parceria entre o maestro e Vinicius de Moraes, nasceu o disco duplo Jardim Noturno - Canções e Obras para Piano de Claudio Santoro. Lançado pelo
Selo Sesc e tendo como intérpretes o cantor lírico Paulo Szot e o pianista Nahim Marun, o projeto traz as canções de Claudio Santoro intercaladas por peças para piano solo.

O álbum chega ao Sesc Digital no dia 7 de agosto e nas demais plataformas de streaming em 12 de agosto e através do texto de Camila Fresca, que você pode ler a seguir, compreendemos a dimensão da raridade e complexidade dessas obras até então inéditas ao público.

 

      


As canções e a música para piano de Claudio Santoro: diálogos entre arte e política

por Camila Fresca

 

Afirmar que Claudio Santoro (1919-1989) é um dos maiores compositores brasileiros não é algo que surpreenda. No entanto, apesar da importância de sua produção e do prestígio internacional que ele desfrutou em vida, hoje pouco de suas obras encontram-se em circulação. Esse cenário parece estar mudando por conta de seu centenário, em 2019.

Santoro deixou mais de 500 composições em quase todos os gêneros. Deixou também uma expressiva produção de canções, que soma mais de 60 títulos, presentes ao longo de todo seu período produtivo. A partir delas, é possível acompanhar as diferentes fases criativas pelas quais o compositor passou.

Com exceção dos dois ciclos feitos em parceria com Vinícius de Moraes, no entanto, as demais canções nunca haviam sido gravadas. Esse disco traz, além das 13 canções em parceria com o poeta, outras 11 em primeira gravação mundial.

Após um período de aprendizado de forte influência francesa, o início da década de 1940 é marcado por experiências com o atonalismo e o dodecafonismo, reforçadas a partir do contato com Koellreutter, com quem Santoro estuda os métodos de composição de Hindemith e Schoenberg, além de estética e contraponto.

As primeiras canções de seu catálogo datam dessa época, feitas em parceria com Oneyda Alvarenga (1911-1984), jornalista, ensaísta e folclorista brasileira. No final da década de 1940, Claudio Santoro abandona o dodecafonismo em favor de uma linguagem tradicional, buscando uma comunicação direta com o público. A mudança estética decorria de sua visão política, ligada aos ideais comunistas – após participar do II Congresso Internacional de Compositores Progressistas de Praga, em 1948, Santoro abraça de vez os princípios do realismo socialista.

Uma das implicações desse envolvimento foi não poder desfrutar de uma bolsa concedida pela Fundação Guggenheim – seu visto foi negado pelo governo dos EUA. No entanto, Santoro acaba agraciado por uma bolsa do governo francês, por recomendação do regente Charles Münch. Segue para Paris em 8 de setembro de 1947, onde estuda composição com Nadia Boulanger e regência com Eugène Bigot. É nesse mesmo ano que compõe Não te digo adeus, primeira canção da chamada fase nacionalista e uma parceria com outro comunista notório, o escritor Jorge Amado (1912-2001). Também são dessa mesma fase, mas já na década de 1950, as canções feitas com o jornalista Ary de Andrade (1913-2002) e com o escritor e político mineiro Celso Brant (1920-2004).

Todos esses autores compartilhavam ideias semelhantes. Segundo Alessandro Santoro, seu pai se reunia com artistas de diferentes áreas ligados aos ideais socialistas e ao PCB. “As peças nacionalistas desse período são quase música de conjuntura”, afirma. A canção, aqui, se revela um gênero ideal: música e texto transmitindo a mensagem de maneira direta. Conforme nota José Maria Neves, “por coerência, Santoro simplifica sua linguagem, com vistas a torna-la mais imediatamente inteligível e atuante”.

A temática das canções da fase nacionalista se divide basicamente em duas: o amor (quase sempre malsucedido, envolvendo dor e solidão) e, em menor escala, a luta política. “Levavas a madrugada, o pão, a rosa e o lutar / Eras simples camarada, como o vento de alto-mar / Sabias que a rubra estrela já não tarda: aí está / Luz que venceu a procela nosso povo guiará”, dizem os versos iniciais de Levavas a madrugada (parceria com Ary de Andrade).

 

Lia
Lia | Acervo Pessoal Claudio Santoro

 

“Pour Lia”
No final da década de 1950, Santoro escreveria aquelas que se tornariam suas canções mais célebres. Em 1957, ele estava em Moscou para participar do II Congresso de Compositores. Também teve compromissos regendo obras e acertando a edição das sinfonias n. 4 e n. 5. Em maio escreve, na então Leningrado (São Petersburgo), os dois primeiros prelúdios para piano solo da Segunda série/ Primeiro caderno. Originalmente, as obras tinham o subtítulo de Tes yeux (teus olhos) n.1 e n.2. O Prelúdio n.3 da mesma série, escrito em Moscou em março de 1958, levou o nome de Tes yeux n.5 e ainda “Adieux” (adeus) no manuscrito.

Os três eram dedicados a Lia – na partitura autógrafa constava, simplesmente, “pour Lia”. Mas quem seria tal dedicatária? Lia (cujo sobrenome permanece desconhecido) era a intérprete de Santoro durante seu período na Rússia. Cabia a ela estar sempre ao lado do compositor como tradutora. Do convívio entre ambos nasceu uma paixão, que ao ser descoberta fez com que as autoridades soviéticas convidassem Santoro a se retirar do país. (Pouco se sabe de Lia ate hoje, mas tudo indica que ela fosse esposa de um funcionário da KGB, a polícia secreta soviética).

Claudio Santoro deixa a URSS e vai para Paris, onde espera inutilmente que Lia consiga fugir para se juntar a ele. Trocam cartas apaixonadas, mas o plano não dá certo. Enquanto aguarda, angustiado, a possível chegada de Lia, ele escrevia as tocantes Canções de amor em parceria com o poeta e diplomata Vinícius de Moraes (1913-1980), que também se encontrava na cidade. Além das dez canções, divididas em dois volumes, a dupla também comporia as Três canções populares, igualmente tratando de amor.

A junção entre a angústia amorosa de Santoro e o sempre apaixonado Vinícius resultou em algumas das mais bonitas canções do repertório brasileiro de câmara. Diversas delas não apenas se inspiram nos prelúdios do Segundo caderno como são versões das peças originais para piano. É o caso, por exemplo, de Ouve o silêncio, versão do Prelúdio n.1, e Em algum lugar, versão do Prelúdio n.2. Todas as Canções de amor do primeiro volume são dedicadas a Lia. Do segundo, são igualmente “pour Lia” Alma perdida e A mais dolorosa das histórias (Silêncio, façam silêncio / Quero dizer-vos minha tristeza,/ Minha saudade e a dor, a dor que há no meu canto).

Uma aproximação possível, e já algumas vezes apontada, é entre esses conjuntos de canções e a Bossa Nova. O elo musical mais evidente entre as canções de Santoro e o movimento iniciado em 1958 no Rio de Janeiro é Vinícius de Moraes, mas não só. Musicalmente, a harmonia dessas canções aproxima-se das inovações da Bossa Nova, embora tenham sido compostas alguns anos antes. Além disso, Santoro orientou seu amigo, o pianista Heitor Alimonda, no sentido de que os prelúdios da Segunda Série eram peças “singelas”, que “devem ser tocadas bem à vontade dando toda a alma. Nada quadrado [...] Elas devem ser bem cantabiles [...] São pequenos improvisos que partiram espontaneamente do coração”. Por sua vez, a escassa indicação de dinâmica na maioria das canções desses dois ciclos corrobora essa característica, aproximando-as da liberdade de execução característica da música popular.

Claudio Santoro
Claudio Santoro | Acervo Pessoal Claudio Santoro

 

Do nacional ao universal

É em 1960 que Claudio Santoro conhece a bailarina Gisèle, com quem se casaria dali a três anos e que seria sua companheira até o final da vida. A empatia, no entanto, parece ter sido imediata, já que é do mesmo ano uma canção de ambos: Meu amor me disse adeus (o compositor usaria essa mesma música na ópera Alma, de 1985).

Musicalmente, Meu amor me disse adeus ainda se insere no universo tonal, no que pode ser considerado o final de sua fase nacionalista. Cronologicamente, a canção seguinte do disco é Eu não sei, de 1966, parceria com o jurista e escritor Ribeiro da Costa (1897-1967). Mas, nesse momento, o compositor já caminha claramente em outra direção.

Já em 1960, a convite do governo da República Federal da Alemanha, Santoro passa uma temporada em Berlim Oriental pesquisando música eletroacústica. No ano seguinte, ele volta à cidade para participar do Congresso de Compositores Alemães. E, em 1966, depois de abandonar a Universidade de Brasília em solidariedade à demissão de centenas de docentes, aceita o convite da Ford Foundation e do governo da Alemanha para atuar como artista residente do Küenstler Programm em Berlim. A partir daí, vai aprofundar suas pesquisas em música aleatória e eletrônica, que se prolongarão década de 1970 adentro.

Com o enfraquecimento da ditadura militar, Claudio Santoro decide voltar ao Brasil em 1978, para retomar seu trabalho no Departamento de Música da Universidade de Brasília. Coincide com esse retorno um abandono da música eletroacústica e uma nova fase, considerada seu último período criativo, que seria uma espécie de sublimação de todos os anteriores.

Novamente, as canções têm um papel proeminente – entre 1980 e 89, ano de sua morte, foram compostas cerca de 20 canções para voz e piano, incluindo o hino oficial do estado do Amazonas.

Fantasia Sul América é uma canção sem texto. Trata-se, na verdade, de um conjunto de obras escrito em 1983 por Santoro para diferentes instrumentos solo, por encomenda do Concurso Sul América de Jovens Instrumentistas (posteriormente, ele criou partes orquestrais). A versão de canto é acompanhada por piano.

Poeta, diplomata e historiador, Alberto da Costa e Silva foi parceiro de Claudio Santoro no Tríptico, de 1985. As três canções – Vigília, Fragmento para um réquiem e O amante – tratam de amor e morte. Musicalmente, todas essas canções do último período são densas, escuras, e mesmo pesadas. Não estamos mais no terreno da tonalidade – é possível falar em um pós-tonalismo, uma estética madura e de grande originalidade.

A última composição de Claudio Santoro foi também uma canção. O poema Wanderers Nachtlied, de Goethe, é um dos mais conhecidos do autor alemão e foi também musicado por Schubert e outros autores. Conforme relato de Alessandro Santoro, seu pai estava em férias na Alemanha no início de 1989. Ao retornar ao Brasil, parou em diferentes cidades para visitar amigos – uma espécie de despedida inconsciente. Em fevereiro, escreveu uma canção que fala de uma quietude consoladora, e afirma a seu interlocutor que “em breve, ele também descansará”. Em 27 de março de 1989, no pódio do Teatro Nacional de Brasília, onde conduzia a Orquestra Nacional de Brasília no primeiro ensaio da temporada daquele ano, Claudio Santoro sofreu um infarto fulminante.

 

O piano de Claudio Santoro

Além de canções inéditas, a presente gravação traz algumas peças para piano solo gravadas pela primeira vez: Dança Rústica, Batucada (No morro das duas bicas), Imitando Chopin e o Estudo n.2.

Cronologicamente, a Dança rústica (Prelúdio n.4 da Primeira série) é a obra para piano mais antiga desse disco. Escrita em Paris em janeiro de 1948, é uma peça dodecafônica, como a maioria dos prelúdios dessa série. O ano marca a virada do compositor em direção ao nacionalismo e, assim como nas canções, a transição é também explicitada em algumas de suas peças para piano. É o caso de Batucada (No morro das duas bicas), escrita igualmente em Paris, em junho de 1948.

Todas as obras das décadas de 1950 e 1960 aqui presentes são exemplares do período nacionalista do compositor: as Danças brasileiras n.1 e n.2, datadas de maio de 1951; as Paulistanas n.1, 2 e 6, de 1953; Frevo, do mesmo ano; o Prelúdio n.2, da Segunda série/ Primeiro caderno, escrito em Milão em 1958; e os estudos n.1 (escrito em Viena, 1959) e n.2 (Teresópolis, 1960).

A busca da essência brasileira, por meio da utilização do tonalismo, do modalismo e de ritmos folclóricos marcam a produção dessa época. A simples observação dos títulos da maioria dessas obras já deixa a questão evidente. Ao adotar um estilo nacionalista Santoro também visava uma linguagem de fácil acesso ao público, porém não menos idiossincrática que a anterior, e nunca simplória. Basta olharmos, entre os exemplos aqui presentes, o impressionante Estudo n.2.

As duas outras obras para piano do disco, compostas na década de 1980, exemplificam a última fase criativa do compositor. O período é marcado por um certo ecletismo, mesclando linguagens musicais desenvolvidas anteriormente. A monumental Toccata teve sua segunda versão finalizada em 1984 (a primeira é de 1954) e guarda algo do espírito das obras da década de 1950. Finalmente, da graciosa Imitando Chopin não se sabe a data exata de composição. Alessandro Santoro esclarece que ela foi escrita entre 1982 e 1986: “na época eu tocava e estudava muito Chopin em casa, e papai resolveu fazer esta brincadeira”.

 

Camila Fresca, jornalista e pesquisadora musical