
Produções audiovisuais servem como espelho da urgência climática e plataforma para reflexões e perspectivas de futuro (foto: Rafael Versíssimo)
Leia a edição de NOVEMBRO/25 na íntegra
POR LUNA D’ALAMA
Fundada em 1922, a rede de televisão britânica BBC se notabilizou por documentários sobre o planeta: os oceanos, a vida selvagem e a resiliência da natureza em condições extremas. Essas séries são produzidas até hoje e exportadas para o mundo inteiro – o Fantástico, da TV Globo, por exemplo, ainda exibe versões dubladas desses programas. Mas, a partir dos anos 2000, houve uma virada de chave: por pressão de grupos ambientalistas, as tradicionais imagens contemplativas de áreas intocadas deram lugar a cenários com alterações climáticas, poluição em rios e mares, ameaças à fauna, enchentes, conflitos, desmatamentos e contaminações, entre outras pautas urgentes.
Ao dedicar um capítulo do livro Planetary Cinema: Film, Media and the Earth (Amsterdam University Press, 2022) às séries da BBC, o pesquisador brasileiro Tiago de Luca, doutor e professor em estudos de cinema na Universidade de Warwick, na Inglaterra, percebeu que, na passagem para o século 21, começou uma conscientização coletiva, a partir de um consenso científico, de que uma crise climática em escala global estava em curso. “Analiso quais imagens são usadas em filmes e séries que têm a Terra como foco, e proponho uma comparação entre as duas últimas viradas de século. As regiões mais pobres e destruídas pelo colonialismo, no Sul Global, são as que mais sofreram e ainda sofrem, mas o problema é planetário. As recorrentes queimadas em regiões ricas de Los Angeles, nos Estados Unidos, estão aí para comprovar esse ponto. Meu objetivo, nessa obra, é entender como o cinema e o audiovisual têm encarado tudo isso”, destaca De Luca, que é autor e co-organizador de outros títulos sobre cinema.
O docente acrescenta que a temática do “fim do mundo” nunca esteve tão presente no imaginário cultural, como nas ficções científicas hollywoodianas centradas em cenários apocalípticos. Há, nesse sentido, o risco da “estetização da destruição” – chamada em inglês de toxic sublime –, ou seja, a possibilidade de uma devastação ambiental inevitável ser contemplada pelo espectador. “Vivemos bombardeados por imagens, e nossa capacidade de concentração tem sido cada vez menor. Tantos filmes e vídeos de destruição, infelizmente, podem banalizar o assunto e nos dessensibilizar”, analisa o pesquisador.
No entanto, De Luca acredita que o cinema tem a capacidade de encarar problemas, apresentá-los ao grande público, denunciá-los e propor soluções. “Não acho que o cinema, por si só, pode mudar o mundo. Mas pode transformar a nossa percepção de mundo. Se essa percepção vai se transformar em ação, depende de muitas variáveis”, avalia. Além disso, o especialista aponta que o formato documental, por sua ligação com a realidade, tem sido amplamente utilizado em filmes e séries sobre o meio ambiente. “Hoje, muita gente tem acesso a câmeras e celulares, que podem ser usados por indivíduos, coletivos e comunidades para fazer cinema e audiovisual. Indígenas, por exemplo, têm produzido obras incríveis com suas cosmologias. Assim como a crise é complexa e planetária, as ações de resistência também precisam ser feitas em conjunto, de forma sistêmica e organizada”, considera De Luca.

VOZES DA FLORESTA
Centrado em temáticas ambientais, o cinema indígena vem ganhando força no país, sobretudo após a criação, há quase quatro décadas, do projeto Vídeo nas Aldeias, idealizado pelo documentarista francês Vincent Carelli. Uma das vozes atuais dos povos da floresta é Juma Xipaia, liderança indígena da aldeia Kaarimã e primeira mulher a se tornar cacica no Médio Xingu, na Terra Indígena Xipaya (a cerca de 400 quilômetros de Altamira-PA). Juma é protagonista-produtora do documentário Yanuni (2025), dirigido e roteirizado pelo austríaco Richard Ladkani e coproduzido pelo ator estadunidense Leonardo DiCaprio. O filme mostra a luta de Juma e do marido, Hugo Loss, chefe da fiscalização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) na Amazônia, contra o garimpo ilegal.
“Nossa batalha diária está retratada na tela: antes, era contra a usina hidrelétrica de Belo Monte; agora, é contra a mineração em nossos territórios, que desmata a floresta, contamina a água e os peixes, adoece nosso povo e gera impactos em todo o planeta, pois estamos interconectados. A natureza é nossa mãe, nossa força, nossa farmácia e nossa cura”, pontua Juma, que é mãe de quatro filhos.
Yanuni já passou por festivais como o de Tribeca, em Nova York (EUA), e o Los Angeles Brazilian International Film Festival, também nos EUA, onde venceu o prêmio de Melhor Documentário, em outubro. Ainda em outubro, a obra conquistou dois dos maiores prêmios no Jackson Wild Media Awards, o Oscar do cinema ambiental, e foi exibida na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Para Juma Xipaia, Yanuni é mais que um filme: é um chamado à ação. De acordo com ela, levar discussões ambientais para o cinema é fundamental porque permite que mais pessoas se sensibilizem e compreendam outras realidades e reivindicações. ̋O cinema é um espaço de poder – assim como os espaços políticos de tomada de decisão – e queremos ocupá-lo”, complementa.
Na visão da líder indígena, integrantes de povos originários, para além do protagonismo nas telas, precisam trabalhar como diretores, produtores, roteiristas e em outras funções da cadeia do audiovisual – como na Rede Katahirine, formada exclusivamente por mulheres indígenas. “Quem vive a nossa realidade consegue traduzir, com verdade e sensibilidade, o que está em jogo: a floresta, os modos de vida tradicionais e o futuro do planeta. Acredito na força que o cinema tem para criar conexões profundas com as pessoas, comover e transformar”, afirma Juma.
OLHARES PARA A AMAZÔNIA
Mesmo entre realizadores(as) não indígenas, é praticamente impossível tratar de cinema ambiental no Brasil sem apontar as câmeras para a Amazônia. Há meio século, os diretores Jorge Bodanzky e Orlando Senna lançavam Iracema – Uma Transa Amazônica (1974). “Sempre tratei de questões sociais nos meus filmes e as ambientais vieram junto, como consequência. Acabaram se tornando um complemento do que eu faço”, destaca Jorge Bodanzky, membro da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos, com direito a voto na categoria de Melhor Documentário do Oscar.
Nos últimos anos, o cineasta lançou também a série Transamazônica: Uma estrada para o passado (2021), em parceria com Fabiano Maciel, para o canal de streaming HBO Max; e os documentários Amazônia, a nova Minamata? (2022) – que ganhou maior circulação comercial neste ano –e Um olhar inquieto – O cinema de Jorge Bodanzky (2025).
“Nesse filme de 2022, comparo a situação indígena com o que ocorreu, na década de 1950, na bacia de Minamata, no Japão. Uma indústria química derramou mercúrio numa vila de pescadores e, a partir da contaminação da água e dos peixes, surgiram problemas neurológicos terríveis e irreversíveis na população. Esse é considerado o primeiro grande desastre ecológico do mundo – e eu mostro registros históricos dele no documentário”, resume. Após décadas de luta, essa baía no Japão foi despoluída e já é possível pescar. As vítimas receberam indenização, mas as consequências dessa catástrofe ambiental permanecem. “Meu documentário é um alerta para que essa mesma tragédia não ocorra na Amazônia, tanto na parte brasileira quanto em mais oito países da América do Sul”, adverte Bodanzky. “Essas pautas estão muito presentes no audiovisual indígena porque eles são os primeiros a sofrer as consequências da destruição de biomas como a Amazônia”, reflete.

SÉRIES E FESTIVAIS
O audiovisual com foco no meio ambiente está presente também em séries como Amazônia, arqueologia da floresta (2022), dirigida por Tatiana Toffoli, realizada pelo SescTV e exibida pelo Sesc Digital. Seguindo o trabalho do arqueólogo Eduardo Góes Neves em Rondônia e no sul do Amazonas, a segunda temporada chegou em 2024 e venceu, em agosto deste ano, o prêmio de voto popular no 3º Festival Curta! Documentários. A diretora já está produzindo a terceira temporada da série, “A previsão é que estreie em 2027”, antecipa Toffoli.
Nos episódios já lançados, Amazônia, arqueologia da floresta mostra como a ocupação humana moldou a região. Vestígios preservados por milênios, entre camadas de terra e conchas, revelam restos de fauna, sementes de plantas, cerâmicas e ossos de povos que habitaram a floresta há cerca de seis mil anos. Precisamos reformular nossa maneira de viver, de produzir e consumir. O cinema e o audiovisual podem construir outras histórias, outros futuros, bem diferentes das ficções científicas que nos habituamos a ver”, pondera Tatiana Toffoli.
E é nos festivais e mostras de cinema e audiovisual que questões ambientais ganham ainda mais repercussão. O Brasil reúne hoje uma extensa lista de eventos concentrados nessa temática, Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (FICA, Goiás-GO) Mostra Ecofalante (São Paulo-SP, com itinerância nacional), Festival de Cinema da Amazônia – Olhar do Norte (Manaus-AM), Citronela Doc (Ilhabela-SP), Festival Internacional de Cinema Ambiental (Filmambiente, Rio de Janeiro-RJ), Bonito CineSur (Bonito-MS) e Mostra Cinema, Mineração e Meio Ambiente (São Paulo-SP).
De acordo com o diretor da Mostra Ecofalante de Cinema, e fundador da ONG Ecofalante, Chico Guariba, existem hoje mais de 20 festivais do gênero no país. Criada em 2003, a Ecofalante é uma das mais longevas e reconhecidas. “Ao longo de 14 edições, muita coisa mudou. No início, a noção de meio ambiente era mais atrelada aos povos indígenas e às florestas. Hoje também tratamos muito de questões urbanas, falta de moradia, segregação espacial, desigualdade social, falta de água, racismo ambiental, tecnologias, contaminações, fake news. Tudo isso está relacionado aos recursos naturais e, portanto, ao meio ambiente”, explica Guariba. Um dos longas mais aclamados na edição deste ano da mostra foi A queda do céu (2024), de Eryk Rocha [filho dos cineastas Glauber Rocha (1939-1981) e Paula Gaitán] e Gabriela Carneiro da Cunha. Com estreia comercial prevista para o dia 20 deste mês, o filme é baseado no livro homônimo do antropólogo francês Bruce Albert, escrito a partir de relatos do líder indígena Davi Kopenawa.
Ao longo de duas décadas, os documentários e filmes de ficção selecionados pela Mostra Ecofalante evoluíram tanto esteticamente quanto em propostas de linguagem. Atualmente, a Ecofalante é realizada em junho (no período da Semana do Meio Ambiente) e dura 15 dias. Ao longo do ano, a mostra realiza itinerâncias pelo país, com seminários e ações paralelas. “Temos uma vocação formativa e educacional desde o início, trabalhamos muito com as novas gerações justamente para termos perspectivas de futuro. Nossa missão principal é democratizar o debate socioambiental”, finaliza Guariba, que em 2022 criou a plataforma de streaming Ecofalante Play.
Acredito na força que o cinema tem de criar conexões profundas com as pessoas, comover e transformar
Juma Xipaia, líder indígena e produtora do documentário Yanuni (2025)
Cine ambiente
Programação do Sesc São Paulo projeta filmes com temáticas ambientais, cine-concertos e debates para todos os públicos

O CineSesc, fundado em 1979, é um dos cinemas de rua mais tradicionais da cidade de São Paulo, e conta com uma sala de cinema com mais de 270 lugares, além de um projetor DCP e 35 mm. Outras unidades do Sesc São Paulo também exibem suas próprias programações audiovisuais, seja em auditórios, salas multiuso, teatros, espaços alternativos ou mesmo ao ar livre, já que a instituição trabalha com a proposta de cinema expandido. Nesse panorama, são realizadas sessões com trilha sonora ao vivo (cine-concertos), filmes em realidade virtual, projeções na piscina, no bosque, no solário e em vários outros lugares que a imaginação – e a infraestrutura – permitir.
As unidades do Sesc São Paulo promovem exibições semanais, que podem ser sessões únicas ou fazer parte de projetos. Somam-se a essas ações o catálogo do Sesc Digital, disponível no formato on demand, e a grade do SescTV.
A instituição também é parceira de eventos de cinema, como a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, Curta Kinoforum, comKids, É Tudo Verdade, Mostra Ecofalante, entre outros. “O Sesc compreende o cinema para além da exibição. Ele também pode ser trabalhado a partir de atividades formativas e de mediação, em debates, encontros, bate-papos, cursos, oficinas e seminários. Procuramos exibir filmes que tratem de questões que atravessam a sociedade, que dialoguem com a nossa diversidade cultural e respeitem os direitos humanos”, destaca Cecília de Nichile, especialista em cinema da Gerência de Ação Cultural do Sesc São Paulo.
Confira os destaques da programação:
Centro de Pesquisa e Formação
Cine Debate – O silêncio das ostras
O filme aborda a história da menina Kaylane, nascida numa vila de operários. Com o fim da mineração, a garota e seu cachorro são os únicos que não abandonam o lugar, até que ocorre o rompimento de uma barragem. A exibição é seguida por debate com o diretor e roteirista Marcos Pimentel. 29/11, sábado, das 15h às 18h. Grátis.
Birigui
Flow (2024)
Vencedor do Oscar de Melhor Animação em 2025, esse longa da Letônia apresenta um gato solitário que, após uma grande inundação, encontra refúgio em um barco habitado por diversas espécies. Direção de Gints Zilbalodis. 2/11, domingo, às 16h. Grátis.
Sorocaba
Mostra Meio ambiente [entre planos] – A queda do céu (2024)
Baseado nas palavras poderosas do xamã e líder indígena Davi Kopenawa Yanomami, o documentário retrata a comunidade Watoriki durante o ritual funerário reahu. Direção de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha. 11/11, terça, às 19h. Grátis.
Cine-concerto
Koyaanisqatsi (1982) – trilha sonora por Guilherme Chiappeta
Documentário sem atores nem diálogos mostra relações entre os seres humanos, a natureza, o tempo e a tecnologia. Direção de Godfrey Reggio. 18/11, terça, às 19h. Grátis.
Iracema – Uma Transa Amazônica (1974)
Um caminhoneiro trafegando pela rodovia Transamazônica conhece uma adolescente indígena prostituída e, aos poucos, percebe os problemas da região. Direção de Jorge Bodanzky e Orlando Senna. 25/11, terça, às 19h. Grátis.
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