Auto de Natal

22/12/2025

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Os festejos natalinos, sob o olhar da folclorista Inezita Barroso 

Em celebração ao centenário de nascimento de Inezita Barroso, o Sesc Memórias abriu em 2025 uma exposição que revisita momentos da vida e da carreira da artista a partir de registros captados no acervo institucional. 

Dentre esses documentos expostos, há o folheto de um evento de Natal, realizado em 2002, no Sesc Ipiranga. Uma das programações era um Auto de Natal com pesquisa e adaptação musical de Inezita, que apresentou o show “Natal Brasileiro” junto da Banda Flor do Mato. O repertório navegou por manifestações como pastoril, chegança, boi e reisado e mostrou a face nacional mais popular dos festejos natalinos. 

Como parte da curadoria do projeto, a cantora, que também era renomada folclorista, escreveu um texto para compor o material de divulgação do evento. Compartilhamos abaixo o folheto da programação e a íntegra do texto, que busca reaproximar o leitor das tradições brasileiras, em contraponto aos festejos com cara de Polo Norte, de neve e renas, e que impõe elementos distantes da nossa realidade de um Natal mais tropical. 

Auto de Natal
Inezita Barroso 

Sempre achei que estudar o folclore do Brasil implica também uma devolução ao povo do que se aprendeu com ele. Sendo assim, esta ideia de mostrar como acontece um “Natal brasileiro” vem de muitos anos; porém, só agora está sendo possível levar ao palco meu antigo sonho. 

Parece que essas manifestações populares estão cada vez mais deturpadas e são menos constantes, escondendo-se nos meios rurais, também invadidos por música sem sentido para nós, brancas neves de dezembro, Papai Noel, comidas e bebidas estranhas. Creio mesmo que a principal figura do Natal, o Menino Jesus, é quase desconhecida das crianças de hoje. 

Seria impossível fazer voltar uma tradição de Natal com o presépio, flores e frutos de dezembro e aquele Brasil que sabia se ajoelhar emocionado na Missa do Galo, mas, por outro lado, podemos e devemos nos lembrar dos costumes que já foram nossos. Lógico que as manifestações do povo também estão mudadas: o carnaval – tão urbano e tão importante – as festas juninas, as quermesses. Alguns acham que isso é progresso, é evolução, esquecendo-se de que folclore, tradição, também são fatos que se modificam, evoluem. Quem teria mudado, então? Nossos costumes ou nós mesmos? Por que não procurar saber como já fomos para explicar o que somos? 

Natal brasileiro é pastoril, bumba-meu-boi, chegança, folia de reis, muita criança e muita brincadeira. Alguns lugares conservam esses costumes, por meio da religiosidade. Outros já modificaram bastante coisa, trazendo para a rua um jeito de festejar o nascimento de Cristo, nem sempre de modo muito sagrado. Certas festas populares hoje são somente formas de cantar, brincar, beber e comer de graça, aproveitando-se da tradição que manda o dono da casa abrir as portas e oferecer aos grupos foliões comida e bebida e, às vezes, até dinheiro. 


Pastoril
O pastoril surgiu na Europa, mais precisamente em Portugal, onde o presépio já era representado desde o século XV. Consta de cantos, louvações, loas e, às vezes, declamações entoados por pastores e pastoras, diante do presépio, na noite de 24 de dezembro, antes da Missa do Galo. Antigamente, eram encenados dentro das igrejas e das casas mais abastadas, onde se armava o presépio coberto por um véu que era aberto somente depois da Missa do Galo. Atualmente o festejo só conta com as pastoras, que cantam e dançam em tablados armados ao ar livre. Elas se apresentam em duas filas paralelas, que são o cordão azul (representando Nosso Senhor e comandado pela contramestra) e o cordão encarnado (representando Nossa Senhora e comandado pela mestra). Há uma figura vestida de azul e encarnado que não toma partido, a Diana. Os dois cordões têm suas torcidas e, geralmente, a festa acaba em briga. Os figurinos são compostos por roupas brancas, enfeitadas com fitas das cores dos cordões. Os sapatos, sem salto, também são trançados com as fitas. Na cabeça, flores ou lenços. Os instrumentos que acompanham os cantos são, principalmente, chocalhos, maracas e pandeiros, mas pode haver também zabumba e até violão, cavaquinho, bombardino, pistão e trombone. Embora as figuras de destaque sejam as pastoras, outras foram incorporadas ao festejo como o velho, o soldado, o palhaço e o vilão. O pastoril fixou-se mais no Nordeste, onde ainda é realizado no Natal, prolongando-se até o Dia de Reis. 


Folia de reis ou reisado
O reisado ou folia de reis começa no dia de Natal e se estende até 6 de janeiro. Consta de um grupo de pessoas que vai de casa em casa, tocando e cantando em homenagem aos reis magos Gaspar, Belquior e Baltazar, ou mesmo representando os três a caminho da estrebaria, guiados pela estrela. Nas casas eles pedem esmola ou mantimentos. O dono recebe o grupo que vem “tirar o Reis” ou “pedir Reis”. A folia é dividida em partes: chegada, cumprimentos aos presentes, louvação ao dono da casa e ao Menino Jesus, pedido de esmola, agradecimento e despedida. A folia de reis existe ainda entre o Brasil central e o Sul do país. Os instrumentos utilizados são viola, violão, pandeiro, cavaquinho, rabeca, e, por vezes, sanfona. Dois cantadores cantam em terças, ao que o coro lhes responde. A bandeira da folia com os três reis, São José, Maria e o Menino Jesus acompanha o grupo. Na frente, dois palhaços fazem micagens, dando cambalhotas e correndo atrás das crianças. Eles representam soldados de Herodes que, sob o disfarce de máscaras, contrariam a ordem do rei, desviando a atenção do povo para facilitar a fuga da Sagrada Família. De tradição mais nordestina, o reisado, apesar de ser apresentado no ciclo de Natal, nem sempre trata da louvação ao Menino. Por vezes, são pequenos autos que retratam acontecimentos locais, fatos importantes ou eventos ridículos da região, constituindo um verdadeiro teatro popular. 


Chegança 
A chegança é um auto que celebra as aventuras marítimas de Portugal e Espanha, representadas e cantadas geralmente só por homens. A chegança de marujos louva o navegador português, já a chegança de mouros representa um combate em alto-mar entre mouros e cristãos. Na primeira, as figuras são o capitão, o contramestre, o piloto, o gajeiro e os marinheiros, que carregam ou empurram sobre rodas o navio, que vai parando de casa em casa para a representação. Nela se inclui a “Nau catarineta”, um auto independente sobre uma embarcação perdida no mar que, após muitas aventuras, encontra terra à vista. Na chegança de mouros, os versos são cantados e respondidos pelo coro, enquanto se desenvolve a cena do combate ao som de violas, chocalhos, flautins, tambores, caixa, às vezes, metais. No auge da batalha, em alguns lugares, descarregam-se bacamartes e soltam-se bombas. Vem, então, a abordagem e acontece uma luta de espadas, que termina com a vitória dos cristãos e o batismo do rei mouro. 


Bumba-meu-boi 
Nem bem termina a chegança, já entra a burrinha dando pinotes e corcoveios, ao som de palmas e bate-pés, anunciando o bumba-meu-boi. Em seguida, entra o cavalo marinho (restos de um reisado passados ao bumba-meu-boi) que representa o fazendeiro dono do boi. O bumba-meu-boi gira em torno do seguinte enredo: dois vaqueiros tomam conta de um boi, quando aparece Catirina, uma negra irreverente e desbocada que pede a eles que matem o animal, porque ela está com vontade de comer fígado de boi. O pedido é negado e ela, por meio de versos pesados, reclama agora a língua do boi. Um dos vaqueiros finalmente cede, matando o animal. Seu Antonio Geraldo é chamado para fazer a partilha do bicho, cabendo as piores partes a pessoas muito conhecidas da cidade. Tudo é festa e o bumba-meu-boi acaba com muita risada. Chega, enfim, o Dia de Reis e os grupos se despedem prometendo voltar no ano seguinte. Os presépios são desmanchados nas casas particulares. Às sete horas, reúnem-se todos e cantam-se as despedidas com as pastorinhas. As palhas e restos do presépio são queimados, guardando-se apenas a figuras de barro para o próximo ano. Encerram-se os festejos com uma ceia para os participantes. Os temas deste programa foram todos recolhidos do folclore de diferentes regiões brasileiras e procuram dar uma ideia do grande valor de nossas festas populares, infelizmente tão esquecidas nos dias de hoje. 


Serviço: 
A mostra “Presenças no Acervo – 1ª edição: Inezita Barroso” foi prorrogada até 6/3/26. Segunda a sexta, das 10h às 19h  
Sesc Memórias – Rua Plínio Barreto, 285, 3º andar  
Para visitar, agende pelo e-mail sescmemorias@sescsp.org.br   


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