Um coro de Zés

30/06/2025

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Dois anos após sua morte, diretor teatral e dramaturgo José Celso Martinez Corrêa ganha nova biografia e seu canto ainda ecoa (foto: Lenise Pinheiro)

Leia a edição de JULHO/25 da Revista E na íntegra

POR MARCEL VERRUMO

Vozes ecoam há décadas da rua Jaceguai, número 520, no bairro do Bixiga. O endereço, no Centro da capital paulista, foi o local escolhido pelo diretor teatral e dramaturgo José Celso Martinez Corrêa (1937-2023) para abrigar o Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona. Seria a casa de uma das companhias teatrais mais longevas do país, em atuação desde 1958; palco eleito por gerações de artistas para criar e viver entre mentes e corpos em ebulição, numa espécie de comunidade; destino onde milhares de pessoas foram atraídas pela arte, pela história e até pela curiosidade de presenciar uma nova teatralidade. 

O epicentro da dramaturgia de Zé Celso é o Brasil. Nascido em Araraquara (São Paulo), em 1937, desde a infância viveu em um ambiente familiar de discussões sobre os rumos da sociedade brasileira. Embora tenha se mudado para São Paulo para cursar direito na Universidade de São Paulo (USP), logo alterou sua rota e passou a fazer do tablado um espaço para pensar seu tempo e território. Na capital, criou o próprio grupo, a Cia. de Teatro Oficina (1958-1973), que passaria a ser Oficina Samba (1973-1979), 5º Tempo (1979-1983) e, finalmente, Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona (a partir de 1984). 

Já nos primeiros anos como diretor, em 1967, o encontro com a obra de Oswald de Andrade (1890-1954) foi definidor de sua trajetória, aproximando-o das ideias do escritor modernista, sobretudo do Manifesto Antropófago (1928). “Oswald seria incorporado em definitivo ao repertório do Oficina e elevado por Zé Celso a mito pessoal e combustível de seu pensamento descolonizador (…). A antropofagia, que propugnava a deglutição do hemisfério norte na expressividade brasileira, se somou ao vento renovador do grupo”, escreveu o jornalista Claudio Leal, organizador da recém-lançada biografia colaborativa O devorador: Zé Celso, vida e arte (Edições Sesc São Paulo). Ao mesmo tempo em que elegeu Oswald como um farol, o diretor dialogou com movimentos e artistas contemporâneos, como o cantor e compositor Caetano Veloso, representante do Tropicalismo, e o cineasta Glauber Rocha (1939-1981), do Cinema Novo. 

No palco montado por Zé Celso, há um coro de artistas com quem ele trabalhava e de espectadores. “Quando Zé dirigiu Roda Viva, em 1968, um coro invadiu o espetáculo. Eram vozes de pessoas que estavam nas passeatas contra a ditadura. Esse foi o primeiro momento de integração do Oficina com a realidade das ruas. A partir daí, o grupo começou a aprofundar a coletividade dentro de cena e a passar por um processo de se entender como uma comunidade”, conta o biógrafo. A abertura do coletivo para as ruas foi assimilada na dramaturgia, em obras que rompiam os limites entre o palco e a plateia, e na concepção arquitetônica do edifício que abriga a companhia, uma construção integrada ao território que o circunda, e cortada por uma rua. 

Tal qual o coro das ruas, a subjetividade do diretor também se expressou em sua teatralidade. “No contexto da ditadura, Zé Celso foi torturado, uma experiência que transformou e aprofundou a sua reflexão sobre o corpo. Em sua teatralidade, o corpo passou a ser tratado como um templo”, observa Leal. Outro ponto de inflexão em sua jornada foi a morte violenta de seu irmão, Luís Antônio Martinez Corrêa (1950-1987), assassinado com 107 facadas. “Nesse momento, Zé Celso diz que a vida é trágica e não há mais espaço para o drama. A partir daí, ele estabelece uma teatralidade baseada na tragicomédia-orgia”, acrescenta. 

Ao longo dos seus 65 anos de carreira (1958 a 2023), inspirando-se na antropofagia, Zé Celso criou uma comunidade de artistas e públicos unida pela ânsia de devorar o colonialismo a partir de referências do Brasil, que vomitava uma cultura nacional. Tal qual o manifesto oswaldiano propunha, aglutinou gente unida social, econômica e filosoficamente – um coro de Zés que sobreviveria à morte do seu próprio criador, faminta para abocanhar o imperialismo cultural e, então, forjar novas dramaturgias brasileiras.  

para ver no sesc / gráfica 
Faces do devorador 
Ensaios e depoimentos de mais de 40 artistas e pesquisadores costuram nova biografia de Zé Celso, lançada pelas Edições Sesc São Paulo  

Nova biografia apresenta diretor teatral e dramaturgo a partir de múltiplas vozes (foto: Lenise Pinheiro)

Se o teatro do diretor e dramaturgo José Celso Martinez Corrêa (1937-2023) é permeado pelo coletivo, traço identificado no coro que compõe muitas de suas obras, sua nova biografia também assimila essa característica. Em O devorador: Zé Celso, vida e arte (Edições Sesc São Paulo, 2025), o jornalista Claudio Leal reúne textos de mais de 40 artistas e pesquisadores a respeito da trajetória e do teatro do diretor. Há depoimentos de Caetano Veloso, Gerald Thomas, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Marieta Severo, Renato Borghi, Tom Zé, entre outros. 

Organizado de forma cronológica, o livro contempla desde a infância em Araraquara (SP) até as últimas intervenções do biografado, desvelando suas complexidades e contradições. “Ao acompanhar a vida e a arte de Zé Celso pela voz dele próprio e de quem esteve ao seu lado, a obra revela suas contribuições para a cultura brasileira, não só para o teatro. Também adensa as interpretações sobre a sua linguagem e sobre a sua experiência poética em cada tempo”, conta Leal. 

A obra enseja reflexões a respeito de uma figura e de um grupo com uma história que, há décadas, se cruza com a do Sesc São Paulo em diversas ocasiões – em temporadas, circulações, ações formativas, dentre outras atividades. “Com a publicação desta biografia, as Edições Sesc homenageiam um artista brasileiro dos mais brilhantes, colocando em perspectiva crítica as diversas fases de sua antropofagia, que extrapolou os limites do palco e das fronteiras nacionais”, escreveu o diretor do Sesc São Paulo, Luiz Deoclecio Massaro Galina, na apresentação da obra. 

EDIÇÕES SESC SÃO PAULO
O devorador: Zé Celso, vida e arte
Organização: Claudio Leal 
Edições Sesc São Paulo, 2025. 520 páginas
sescsp.org.br/edicoes

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