Artigos de Clarice Cudischevitch e Natasha Felizi, do Instituto Serrapilheira, e do jornalista e professor Ricardo Alexino Ferreira aproximam a lupa sobre cenários históricos, desafios e objetivos da divulgação do conhecimento (ilustração: Rodrigo Visca )
Leia a edição de JULHO/25 da Revista E na íntegra
Inúmeros são os impactos históricos das diversas áreas do saber no desenvolvimento do mundo em que vivemos: vacinas e medicamentos aumentaram a longevidade e promoveram a qualidade de vida das populações ao redor do planeta; satélites nos auxiliaram a entender se fará chuva ou sol, e são grandes aliados na mitigação das mudanças climáticas; teorias e dados socioeconômicos nos ajudam na identificação dos nossos problemas sociais e apresentam caminhos para a construção de uma sociedade mais justa.
Apesar de tantas contribuições, para muitos a ciência ainda é um “bicho de sete cabeças”. Com o compromisso de mudar esse cenário, profissionais dedicaram-se à divulgação científica no meio editorial, em veículos de rádio e televisão, no cinema e na imprensa, democratizando o saber especializado. Nos últimos anos, foi a vez de criadores de podcasts, séries audiovisuais em plataformas de streaming e redes sociais construírem pontes para que pesquisas, resultados e novos questionamentos alcançassem mais pessoas.
Para a mestranda em divulgação científica pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Clarice Cudischevitch, gerente de comunicação no Instituto Serrapilheira, e Natasha Felizi, diretora do Programa de Jornalismo e Mídia do mesmo instituto, a divulgação científica pode assumir várias formas. Seja uma contação de histórias, relatos pessoais em blogs ou podcasts que associam literatura ao universo de grandes cientistas. Mas essa divulgação precisa dar conta de ser transmitida e compreendida por uma diversidade de públicos. “Você não precisa falar de quarks e glúons para falar de quarks e glúons. Você pode falar que, assim como uma casa é composta por vários pequenos tijolos, colados uns nos outros, o universo inteiro também é composto por partículas minúsculas que estão coladas umas nas outras. Falar de ciência pode ir além de ‘falar de ciência’ porque ela está em todo canto e atravessa outros temas de interesse público: saúde, política, economia, esporte, cultura”, ressaltam.
Mesmo que feita a partir da checagem de dados e fontes, a divulgação científica ainda demanda outros pré-requisitos para cumprir seu papel social, segundo o professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), Ricardo Alexino Ferreira: “A divulgação científica eficiente e com comprometimento social é bastante complexa e exige uma formação interdisciplinar e transdisciplinar do jornalista. Ela implica letramentos”. Além disso, complementa Ferreira, que apresenta o programa radiofônico de entrevistas Diversidade em Ciência, veiculado na Rádio USP, “a ciência deve ser vista como acúmulo e convergência de saberes de diversas culturas, dos povos originários à contemporaneidade”.
Neste Em Pauta, Cudischevitch e Felizi, junto a Ferreira, aproximam a lupa sobre cenários históricos, desafios e objetivos da divulgação do conhecimento.
O desafio de comunicar o maravilhoso caos da ciência
POR CLARICE CUDISCHEVITCH E NATASHA FELIZI
O ano era 2020. Todo mundo só falava de um assunto, a Covid-19, e cientistas buscavam por vacinas seguras e eficazes, medicamentos que combatessem a doença e métodos de proteção contra o vírus, tudo ao mesmo tempo. Enquanto eles publicavam o progresso dessas pesquisas, a imprensa do mundo inteiro enfrentava o desafio de comunicar o processo científico acontecendo em tempo real, sob os olhares atentos da sociedade.
Tanto jornalistas especializados em ciência, quanto os mais generalistas imergiram na cobertura da pandemia. Eles reportaram a pesquisa desenvolvida em regime de urgência, cobrindo não só artigos publicados em periódicos científicos, mas também “preprints” – estudos disponibilizados em repositórios online, antes de passar pela revisão por pares.
A pressa da sociedade, dos cientistas e da imprensa em ver resultados somada a um entendimento limitado de parte de alguns jornalistas de como o processo científico funciona levou a uma cobertura um tanto caótica. Repórteres ficaram confusos sobre o que valia a pena ou não noticiar, e pesquisas com resultados errados ou inconclusivos, que até foram retratadas depois, acabaram ganhando manchetes. Ora cloroquina funcionava, ora não. Ora máscaras preveniam a dispersão do vírus, ora não.
Acontece que a pesquisa científica é assim mesmo, um caminho tortuoso – a pandemia só fez com que todo mundo prestasse atenção. Demanda tempo e dinheiro para ser bem-feita e é permeada por erros e acertos antes de chegar a conclusões robustas, que embasam tomadas de decisão. Até lá, cientistas questionam, duvidam, checam os trabalhos uns dos outros, refazem. Ciência, afinal, é uma atividade humana.
Consensos científicos se constroem a muitas mãos e geralmente ao longo de décadas, e um artigo científico, por si só, não pode cravar muita coisa. Só conseguimos desenvolver as vacinas contra a Covid-19 tão rapidamente devido a anos de pesquisas. Só que pouca gente sabe que é assim que a ciência funciona. Que é desse caldo denso de perguntas, erros e controvérsias que surgem grandes avanços – dos tratamentos contra o câncer à inteligência artificial.
Mal-entendidos têm o potencial de despertar desconfianças em uma sociedade como a brasileira que, embora tenha interesse e confie na ciência, ainda a conhece pouco. Apenas 17,9% dos brasileiros conseguem citar alguma instituição de pesquisa, e 9,6% lembram-se do nome de algum cientista brasileiro, de acordo com o estudo Percepção pública da C&T no Brasil – 2023, do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE). Tudo isso em meio a um cenário crítico de desinformação: 50,8% do público da pesquisa relata se deparar frequentemente com notícias que parecem falsas; 29,2% se deparam ocasionalmente. E 36,5% admitem já ter compartilhado informações falsas com amigos, parentes ou na internet.
Por isso, a divulgação científica é tão importante. Ela tem um papel social, porque contribui para que as pessoas tomem decisões mais informadas e baseadas em consensos científicos. E também por isso ela não pode se resumir à comunicação de resultados e das grandes descobertas – como se a ciência fosse composta apenas por achados que revolucionam o mundo. Falar sobre o processo científico – incluindo seus vieses, erros e limitações – é fundamental para que as pessoas confiem nele.
A “culpa” dos mal-entendidos, vale dizer, não é exatamente dos jornalistas. A própria lógica da cobertura da imprensa por vezes dificulta uma produção acurada. A pressão por publicar logo – ainda mais na internet, onde notícias circulam rápido – frequentemente conflita com uma apuração rigorosa e com a checagem dos fatos. Soma-se a isso a precarização da profissão: nos últimos anos, cada vez menos profissionais são responsáveis por um número crescente de tarefas.
Cobrir ciência nem sempre é fácil, e são poucos os profissionais especializados. Um levantamento feito em 2020 pela Agência Bori e I’Max, um dos maiores serviços de mailing do país, constatou que o Brasil teria, àquela época, cerca de 35 mil jornalistas atuantes em redações. Desses, só uns 280 cobriam a área. Então, como comunicar ciência em meio a esses desafios? Como falar de quarks e glúons com o tão almejado “público geral”?
Em primeiro lugar, é preciso entender que isso não vai acontecer. Quem quer que seja o divulgador de ciência – um repórter de jornal, um criador de conteúdo nas redes sociais com milhões de seguidores, um podcaster ou um blogueiro –, ele não conseguirá se comunicar com “todo mundo”. Não há um canal único, nem uma mensagem única que dê conta de toda a sociedade – crianças e adultos, mulheres e homens. É melhor pensar em públicos segmentados, que demandam estratégias diferentes para serem alcançados.
Em segundo lugar, você não precisa falar de quarks e glúons para falar de quarks e glúons. Você pode falar que, assim como uma casa é composta por vários pequenos tijolos, colados uns nos outros, o universo inteiro também é composto por partículas minúsculas que estão coladas umas nas outras. Falar de ciência pode ir além de “falar de ciência”, porque ela está em todo canto e atravessa outros temas de interesse público: saúde, política, economia, esporte, cultura.
Em terceiro lugar, a divulgação científica pode ter várias formas. Pode ser uma contação de história, como o episódio 30 – “Deise e Doroteia” – do podcast Rádio Novelo Apresenta. Pode ser o relato pessoal de uma cientista em uma viagem de campo, contemplando seus medos, frustrações e alegrias, tal qual o texto “Como eu coletei cérebros de baleia no Brasil”, da neurocientista Kamilla Souza, publicado no blog Ciência Fundamental, no jornal Folha de S.Paulo. Pode até ser um “exposed” da ciência, com uma cobertura de seus problemas e fraudes e não de suas grandes conquistas, como faz o podcast Ciência Suja. Ou mesmo um mergulho literário no universo científico, a exemplo do podcast Vinte mil léguas, que narra relatos de Charles Darwin (1809-1882), Alexander von Humboldt (1769-1859) e Galileu Galilei (1564-1642).
A ciência, em meio ao seu maravilhoso caos, tem muitas histórias boas para serem contadas. E elas vão além dos resultados grandiosos ou das crises mundiais – nos detalhes cotidianos dos cientistas está boa parte de seu charme. Que a gente não espere a próxima pandemia para dar-lhe a visibilidade que ela merece.
Clarice Cudischevitch, gerente de comunicação no Instituto Serrapilheira, instituição privada, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil. Mestranda em divulgação científica pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Natasha Felizi, diretora do Programa de Jornalismo e Mídia no Instituto Serrapilheira, mestre em literatura russa e portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Por isso, a divulgação científica é tão importante. Ela tem um papel social, porque contribui para que as pessoas tomem decisões mais informadas e baseadas em consensos científicos.
Letramento midiático, cultural e científico
POR RICARDO ALEXINO FERREIRA
Desde a segunda metade do século 19, jornais brasileiros criaram as Secções Scientíficas, que no português contemporâneo seriam as editorias de ciências nas atuais publicações. Naquele momento, a ciência nos jornais não tinha uma preocupação com o desenvolvimento do conhecimento. A elite brasileira, ávida para não ser confundida com o popular ou aquilo que ela designava como sendo “selvagem”, elevava a ciência como elemento simbólico para diferenciar ricos de pobres, brancos de não brancos. Tendo como parâmetro o pensamento da elite europeia, a elite brasileira percebia que focar sua atenção na ciência poderia garantir o seu status de “civilidade”.
As matérias jornalísticas daquela época traziam em suas Secções Scientíficas paradigmas já bastantes difundidos na Europa como o positivismo, de Augusto Comte (1798-1857); o evolucionismo, de Charles Darwin (1809-1882); a germanofilia; eugenia; antropometria e outros estudos de então. Os jornais davam destaques, também, para as teorias raciais e para pensadores como o médico legista e psiquiatra brasileiro Raymundo Nina Rodrigues (1862-1906); a antropometria, na perspectiva da criminalística, de Cesare Lombroso (1835-1909), entre outros. Todas essas correntes teóricas se apresentavam nos jornais como justificativas para a escravização e o argumento da superioridade racial de brancos sobre negros. Até mesmo as peças publicitárias dos jornais do século 19 firmavam a credibilidade dos seus produtos, principalmente tônicos capilares e remédios, com o lema: “comprovado cientificamente”.
A educação, também no século 19, era destinada à elite com vieses eurocentrados e destinados às formações, principalmente, nas áreas da medicina e do direito. Na maior parte das vezes, o ensino não se voltava às diferentes realidades brasileiras, agravando ainda mais as diferenças sociais. Um texto jornalístico publicado pelo Província de São Paulo, em 1884, dá essa dimensão. Intitulado “Do exercício da medicina e o novo regulamento da higiene”, diz: “Contra os curandeiros para que os regulamentos possam ser postos em ‘execussão’ sem injustiça, a probidade ‘scientífica’ exige que previamente se prove que os curandeiros erram sempre e que os médicos diplomados sempre acertam”.
Esses tipos de construções ideológicas percorrem boa parte do século 20, quando o pensamento subliminar da colonialidade perpassa a educação, a mídia e, até mesmo, a ciência. Em relação à educação, o flagrante está nos currículos escolares, do ensino fundamental ao universitário. Existe presença preponderante de autores eurocentrados e a quase ausência de autores latino-americanos, africanos e asiáticos na educação escolar, com ênfase no norte global.
No campo da ciência, teorias como The Bell Curve (Curva do sino), apresentada em 1994 pelos estadunidenses Charles Murray, sociólogo, e Richard Herrnstein (1930-1994), psicólogo e professor de Harvard, atribui a inteligência à genética. Eles defendem que, em média, asiáticos e brancos têm o QI superior ao dos negros e que isso se deve a fatores genéticos. A obra Curva do sino, de Murray e Herrnstein, com fortes componentes colonialistas, faz lembrar as matérias jornalísticas da segunda metade do século 19, como é o caso de um texto publicado no jornal Província de São Paulo, de 28 de janeiro de 1878, que afirma: “Pesam mais os cérebros dos alemães, seguem-se ingleses, ‘suissos’, italianos, suecos. O cérebro ‘francez’ entra apenas entre muitos outros povos como lapões, ‘chinezes’, ‘japonezes’ etc.”.
É interessante observar que a grande imprensa acaba por reproduzir, desde a segunda metade do século 19, teorias raciais e outras produções científicas sem uma visão reflexiva ou crítica. Tanto é assim que, durante os séculos posteriores, o jornalista, na cobertura de ciências, se autodefine como intérprete dos pesquisadores e cientistas, quando não, criando uma espécie de identidade de assessores de marketing. Do final do século 20 até o momento, as pautas daquilo que é considerado ciência para o jornalista ainda estão muito calcadas nas áreas de exatas, biológicas e biomédicas. As áreas de humanas e ciências sociais aplicadas ainda são vistas como não ciências. E isso acaba por refletir nas verbas destinadas para esses campos.
Somente nas últimas décadas, as epistemologias da descolonialidade e, posteriormente, da decolonialidade, começam a ser inseridas de forma mais abrangente no processo educativo. Como a Lei nº 10.639/2003, que versa sobre as inclusões da história e da cultura afro-brasileira. Mesmo com essas novas perspectivas paradigmáticas, a divulgação científica (jornalismo científico) ainda está em descompasso. A imprensa ainda coloca como “ciência verdadeira” aquela marcada por uma visão demasiadamente eurocentrada e com características do norte global. Ainda coloca o conhecimento ancestral como sendo não ciência ou não conhecimento e, por isso, não validado. Essas demonstrações midiáticas se dão na escolha de fontes repetidas e viciadas, legitimadas por suas instituições, de preferência, ranqueadas.
Percebe-se ainda que as matérias jornalísticas de divulgação científica perpetuam o consenso, sem contestação do que se é apresentado. A maior parte das matérias não é dialética, fazendo pouco esforço para apresentar o contraditório. Também se observa que não faz parte do conteúdo dessas matérias a apresentação dos métodos ou metodologias. As reportagens de cobertura de ciências quase sempre apresentam apenas o resultado, como se fossem realizadas instantaneamente. Muitas vezes, os títulos são ostensivos e transformam pesquisas, ainda em andamento, em resultados sensacionalistas, absolutos e mágicos.
A cobertura das ciências por parte da imprensa, por si só, não representa desenvolvimento social. A ciência também está sujeita a padrões morais e pode ser reificada, voltada para o lucro, favorecendo alguns segmentos sociais. Isso se observa nas indústrias farmacêuticas, de alimentação, tecnológicas, entre outras. A divulgação científica eficiente e com comprometimento social é bastante complexa e exige uma formação interdisciplinar e transdisciplinar do jornalista. Ela implica letramentos.
O primeiro deles é entender, de fato, o que é a complexidade científica e livrá-la das editorias de ciências. O conhecimento científico deve ser entendido em todo o processo de elaboração jornalística. Aliás, o pensamento científico deve estar na percepção do mundo como forma de construção do conhecimento em perspectiva decolonial. Essa perspectiva implica em que a ciência deve ser vista como acúmulo e convergência de saberes de diversas culturas, dos povos originários à contemporaneidade.
Torna-se necessário também criar o letramento midiático em que o público deixa de ser uma identidade mercadológica para se tornar um sujeito pensante, reflexivo e crítico. Na década de 1970, o teórico Hans Magnus Enzensberger (1929-2022) já colocava a necessidade de uma mídia mais comprometida com o social e o conhecimento, agregando, principalmente, os movimentos sociais naquilo que seria a corrente teórica Nova Esquerda Alemã.
Portanto, muito mais do que atrelada apenas a um conceito conservador de ciência, a divulgação científica implica, de fato, a capacidade de sujeitos que ressignifiquem constantemente as inúmeras realidades. As ciências, nesse caso, são algo dinâmico que intersecciona camadas de diferentes épocas e origens, possibilitando diversos contextos e conexões.
Ricardo Alexino Ferreira é jornalista, professor associado (livre-docente) da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP); professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades da USP; diretor, produtor e apresentador do programa radiofônico de entrevistas Diversidade em Ciência, veiculado na Rádio USP.
A divulgação científica implica, de fato, a capacidade de sujeitos que ressignifiquem constantemente as inúmeras realidades
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