Pessoas com vários tipos de deficiências relatam experiências sobre acessibilidade em viagens e lutam para que sejam incluídas e bem recebidas (foto: Rafael Tsuzuki)
Leia a edição de JULHO/25 da Revista E na íntegra
POR LUNA D’ALAMA
Aos cinco anos de idade, quando contraiu um vírus que inflamou sua medula e comprometeu as funções motoras das pernas, Laura Martins jamais pensou que chegaria tão longe. Formada em letras português-francês pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a servidora pública aposentada da Assembleia Legislativa de Minas Gerais apaixonou-se por viagens e, desde 2007, passou a aventurar-se mais a cada dia. Planejou passeios, montou roteiros e pesquisou muito para evitar “perrengues” – que sempre insistiam em acontecer. De feriados a férias por cidades históricas brasileiras e pelo Nordeste, Laura cruzou o Atlântico, em 2008, para conhecer a Suíça e a França.
“Fui sozinha, fiquei um ano me preparando para aquele momento. Acabei perdendo a conexão aérea, minha mala foi extraviada e, mesmo falando bem francês, tive dificuldade para conseguir informações”, lembra. À sua espera, em Genebra, estava um amigo, mas a parte francesa da viagem – que durou duas semanas – ela fez um trecho por conta própria. “Cruzei os dois países num trem de alta velocidade. Em Paris, subi na Torre Eiffel e fui quatro vezes ao Museu do Louvre. Conheci um castelo medieval no Vale do Loire, onde tomei chá e vi o amanhecer numa floresta”, conta Martins, que hoje mora em Lagoa Santa (MG). A partir dessas experiências, numa época em que a mineira utilizava muletas na maior parte do tempo (há cerca de uma década, passou a usar exclusivamente cadeira de rodas), ela constatou que lugares e equipamentos históricos, seja no Brasil ou no exterior, podem – e devem – ser acessíveis, diversos e inclusivos.
Em 2011, Martins criou o blog Cadeira Voadora, que mais tarde se expandiu para o Facebook, Instagram e YouTube. O projeto busca compartilhar experiências de viagens acessíveis para pessoas com deficiências, o que inclui dicas sobre: direitos, saúde e questões arquitetônicas, tutoriais sobre como preparar uma mala, o que pode despachar ou não, equipamentos, remédios e documentos para apresentar na imigração, avaliações de hospedagens e restaurantes, entre outros temas. “Minha logomarca mostra uma cadeirante viajando em um balão, algo que remete a voo, liberdade e alegria. Quero ajudar outras pessoas a bater asas. O que nasceu como algo despretensioso, logo virou uma missão de vida”, revela Martins.
Ativista em temas de acessibilidade há mais de 30 anos, Martins também participou, na década de 1990, da fundação do Centro de Vida Independente (CVI) de Belo Horizonte, criado para capacitar pessoas com deficiências a terem uma vida mais autônoma. “Antes da Constituição de 1988, não se falava muito nisso, havia mais políticas de assistencialismo. Só que turismo, lazer e cultura não são secundários, são direitos fundamentais. Outro marco para a acessibilidade e inclusão foi a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2009”, explica. É importante acrescentar, ainda, a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) ou Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), cujo objetivo é garantir e promover direitos fundamentais – como à cidadania e à inclusão social – das pessoas com deficiências.
Para Martins, uma viagem com acessibilidade deve estar ancorada no tripé autonomia, conforto e segurança. “O caminho é sair de casa. Não devemos ficar confinados. Se a gente não se expuser, os lugares vão continuar inacessíveis, com a desculpa de que são assim porque nenhuma pessoa com deficiência vai lá. A gente se forma no contato com os outros”, acredita.
OUVIR AS DEMANDAS
Segundo o Censo 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o país concentra 14,4 milhões de pessoas com deficiências, ou 7,3% da população acima dos dois anos de idade. Além disso, 2,4 milhões de brasileiros estão no Transtorno do Espectro Autista (TEA), necessitando diferentes níveis de suporte. Para a bióloga, acompanhante terapêutica e doutoranda em saúde pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Vanessa Giovana Vasques, as deficiências, em sua definição social, são barreiras que as pessoas enfrentam em relação à coletividade e aos ambientes que tentam acessar. “Elas não estão no sujeito, mas nos espaços e nas estruturas sociais. A humanidade é diversa, e isso inclui diferentes corpos, intelectos e modos de estar no mundo”, destaca.
Vasques tem mobilidade reduzida por conta de uma condição genética rara chamada XLH (sigla em inglês para hipofosfatemia ligada ao cromossomo X). Foi diagnosticada aos quatro anos, já fez 13 cirurgias, usou cadeira de rodas por um período e reaprendeu a andar muitas vezes. No caso da acessibilidade no turismo e lazer, a bióloga defende que é preciso ouvir essas pessoas e suas demandas, além de entender que a acessibilidade é um conceito muito amplo, pois envolve uma gama extensa de indivíduos e de deficiências. “Há surdos ou ensurdecidos, por exemplo, que utilizam implante coclear e ouvem bem; outros se comunicam por Libras ou usam legendas descritivas. Da mesma forma, nem todo cego ou pessoa com baixa visão lê em Braille”, explica. Além da acessibilidade arquitetônica (em banheiros, rampas, pisos táteis etc.), Vasques ressalta a importância da acessibilidade atitudinal e comunicacional, sem falar nas políticas públicas e de acesso (como meia-entrada e estacionamento grátis) para que as pessoas com deficiências possam, de fato, viajar, passear e transitar pelas cidades.
A humanidade é diversa, e isso inclui diferentes corpos, intelectos e modos de estar no mundo
AR RAREFEITO
Apaixonado por esportes de aventura, o educador físico Eduardo “Morcego” Soares nasceu com deficiência visual, por conta de um exame de raio-X que sua mãe fez durante a gravidez. Sempre em movimento, lutou judô por quase uma década e já participou de uma maratona. Tem como meta de vida escalar as sete montanhas mais altas dos continentes, e já subiu o monte Kilimanjaro (Tanzânia), o Elbrus (Rússia) e o Aconcágua (Argentina). “Gosto de desafios. Quero me tornar a primeira pessoa com deficiência visual da América Latina a escalar os sete cumes, que incluem ainda o Kosciuszko (Austrália), o Vinson (Antártida), o Denali ou McKinley (Alasca, EUA) e o Everest (Nepal e Tibete), a cereja do bolo”, almeja.
Enquanto se prepara e busca patrocínio para as próximas aventuras pelo planeta, Soares – que tem 10% de visão em ambos os olhos e usa bengala para se guiar – treina em trilhas e montanhas brasileiras. Para se exercitar com segurança, há cinco anos, o atleta conta com o auxílio do educador físico e guia de turismo Diego Diniz, do projeto Aventura Inclusiva. “Vou na frente dele, com um bastão de caminhada, seguro em uma ponta e o Edu, na outra. Vou orientando-o, descrevendo o caminho e avisando-o sobre galhos e pedras, para onde virar, se é preciso se abaixar etc.”, conta Diniz.
O educador físico deseja que outras pessoas com deficiências tenham as mesmas oportunidades que ele, mas entende que os esportes de aventura envolvem custos altos (com roupas térmicas, equipamentos, transporte e guias) e falta de apoio. “Participo de um projeto na ONG Natureza de Criança, na região central da capital paulista, que atende crianças com e sem deficiências. Já fizemos um dia de remo, e tento mostrar para os pequenos e suas famílias que o mundo é para todos, só precisamos de incentivo e condições favoráveis”, reflete Soares.
Outra dupla aficionada pelas altitudes e pelo ar rarefeito das montanhas é o casal Juliana Tozzi e Guilherme Simões Cordeiro, engenheiros civis e moradores de Caçapava (SP). Há uma década, após enfrentar um câncer de mama, Juliana – então grávida de Benjamin, hoje com nove anos – teve um tumor agressivo na axila direita, o que a deixou com sequelas neurológicas que comprometeram sua fala e os movimentos das pernas. Após um diagnóstico inicial de três meses a um ano de vida, a empresária passou por cirurgia e sessões de químio e radioterapia. “Nós sempre gostamos muito da natureza, é a nossa válvula de escape. Começamos escalando rochas, daí fomos para desafios maiores em trilhas e travessias. Viajamos mais de 600 quilômetros pedalando, além e de carro e motorhome. Quando a Ju adoeceu, perguntei o que ela mais gostava de fazer na vida. A resposta foi: ‘Viajar e subir montanhas’. Ali, entendi que iria batalhar para que isso continuasse por toda a nossa história”, conta Cordeiro.
Após meses de pesquisa, Cordeiro terminou de projetar uma cadeira adaptada, batizada de Julietti, para que pudesse seguir escalando montanhas pelo Brasil (como o Monte Roraima) e pelo mundo ao lado da esposa. A história de união e superação deles virou o curta-metragem Julietti: Uma vida nas montanhas (2019), dirigido por Wiland Pinsdorf e disponível na plataforma de streaming Globoplay. O filme mostra o casal e alguns amigos tentando subir o vulcão inativo Acotango, na fronteira da Bolívia com o Chile. O dia a dia de Juliana e Guilherme também está presente no projeto Montanha para Todos, que eles mantêm no Instagram e YouTube. “Achei que eu nunca mais fosse escalar uma montanha novamente. Quando consegui, foi uma sensação indescritível, surreal”, conta a engenheira.
Hoje, Cordeiro se orgulha por já ter comercializado mais de 1,5 mil cadeiras Julietti em todo o Brasil, além de Portugal, Estados Unidos e Japão. O casal planeja lançar, em breve, um livro e uma cinebiografia em longa-metragem contando sua trajetória. “Um dos maiores gargalos para viajar, sem dúvida, é a hospedagem, por isso temos um motorhome. Já passamos muito aperto. Cada lugar é de um jeito, não existe padrão. É mais fácil levar um cadeirante para acampar do que arrumar um hotel ou pousada que atenda a todos os pré-requisitos”, conta Cordeiro, que indica a cidade de Socorro (SP), destino de turismo de aventura, como a “meca da acessibilidade”. “Esse deveria ser um modelo para outras cidades, ganhou até prêmio internacional, tem hotel com 100% dos quartos adaptados e 90% de lotação o ano inteiro”, finaliza.
PORTAS ABERTAS
Em abril, o Senado aprovou, por unanimidade, o Projeto de Lei 2.199/2022, que determina a substituição do Símbolo Internacional de Acesso (imagem da cadeira de rodas) pelo Símbolo Internacional de Acessibilidade (uma pessoa dentro de um círculo, representando as diversas deficiências), criado pela ONU em 2015. Isso reforça que a acessibilidade precisa incluir também pessoas neurodivergentes, com as diversas deficiências. Essa é a batalha diária da administradora, pedagoga e empreendedora Amanda Ribeiro, mãe de Arthur, de nove anos, com nível dois de suporte de Transtorno do Espectro Autista (TEA). Desde 2019, a paulistana percorre hotéis, resorts, parques e atrações turísticas pelo Brasil para capacitar funcionários a receberem da melhor forma pessoas com autismo e com deficiências diversas.
“Meu trabalho surgiu a partir de uma indignação durante uma viagem de férias em família, para Caldas Novas (GO). Preenchi uma ficha informando que meu filho tinha autismo. O hotel respondeu que não sabia lidar com o Arthur, que ele não conseguiria brincar com as demais crianças, e que eu teria que ficar ao lado dele o tempo inteiro”, recorda.
Desde então, a paulistana já treinou cerca de 100 hotéis e 150 parques e atrações em todo o país, que receberam o selo Empresa Amiga do Autista. “Também presto consultoria a espaços que ainda estão na planta, sendo projetados, para que já nasçam acessíveis. É mais barato e sustentável do que uma reforma ou adaptação”, conta. Em seis anos de atividade, Amanda identificou que muitos espaços não sabem nem o básico sobre pessoas com deficiências, inclusive os termos corretos a serem usados. “Somos consumidores e também queremos viajar, mas só poderemos ir se os lugares estiverem bem-preparados”, resume.
A luta de Ribeiro encontra ressonância no casal Luciana Barros e Raphael Rosa, paulistanos que vivem em Florianópolis (SC), pais de Danilo, 17 anos, e Lara, nove anos – ambos neurodiversos. O garoto recebeu diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), com indicativo de altas habilidades, e a menina tem autismo, com nível um de suporte. Barros, que é servidora pública, e o marido, que cursa psicologia e atua como assistente terapêutico de pessoas com autismo, resolveram, então, criar o perfil nas redes sociais, Atípicos Viajantes, em 2021. Lançaram também um aplicativo de celular homônimo, com dicas e avaliações de hotéis, restaurantes, serviços, parques, eventos e espaços públicos, entre outros. Os dois fazem, ainda, capacitação de empresas do setor de turismo e lazer na capital catarinense.
O casal sempre gostou de viajar, mas, com o diagnóstico dos filhos, algumas pessoas lhes perguntavam: “Vocês vão ter coragem de viajar com eles?”. Para Rosa, a questão deveria ser: “Como deixá-los presos dentro de casa? A partir daí, nasceu o nosso projeto, com o intuito de incentivar outras famílias a passear e viajar também”. Barros complementa: “Dizem que agora todo mundo tem TEA, TDAH. Não é verdade, não se pode banalizar isso. Pessoas com autismo, em geral, têm comprometimentos de comunicação e socialização, com atrasos e prejuízos reais durante a vida. O que tem aumentado é o número de pessoas neurodivergentes e com deficiências sendo diagnosticadas e saindo de casa”. O casal, que já percorreu vários destinos no Sul e no Nordeste com os filhos, deseja criá-los com autonomia, para que um dia, quem sabe, eles possam fazer intercâmbio no exterior. “Na verdade, o mundo é deficiente para essas pessoas, e não elas que têm deficiências”, conclui Rosa.
para ver no sesc / turismo social
Acesso, diversidade e participação
Sesc Bertioga e sua Reserva Natural são referências em turismo acessível
O Centro de Férias Sesc Bertioga recebe turistas de todo o país e preza pela acessibilidade em seus espaços de hospedagem e áreas externas. Oferece quartos acessíveis para pessoas em cadeira de rodas, com deficiência visual, que utilizam cão-guia etc. A unidade também vem ampliando o acesso por meio da implantação de passarelas cobertas entre os conjuntos de quartos e as áreas comuns, faz empréstimo de cadeira de rodas, possui rampas e plataformas elevatórias para transporte acessível, e coloca à disposição cadeiras anfíbias que dão acesso à praia e para banhos de mar.
O Sesc Bertioga se dedica, ainda, à acessibilidade comunicacional a seus diferentes públicos, razão pela qual divulga vídeos com informações em Libras e audiodescrição, por exemplo. Segundo Juarez Michelotti, responsável pela área de Educação para Sustentabilidade no Sesc Bertioga, a Reserva Natural Sesc Bertioga se destaca ao dispor de dois percursos (Trilha do Sentir e Trilha do Tucum) que atendem pessoas com deficiências, além de ter cadeiras de roda anfíbias para empréstimo. No local, há placas de relevo em resina, trazendo uma amostra de espécies da fauna e flora locais, que podem ser manuseadas por pessoas com e sem deficiências. “São 60 hectares de floresta urbana protegida, planejada de acordo com o conceito arquitetônico de desenho universal, capaz de receber as pessoas mais diversas. Além da caminhada pelas trilhas, oferecemos cursos, oficinas, vivências, atividades físico-esportivas e socioambientais”, explica Michelotti, que também responde pela coordenação da Reserva Natural.
BERTIOGA
Reserva Natural Sesc Bertioga
De terça a domingo, das 8h30 às 17h30, para visitação livre.
Visitas mediadas: de quarta a domingo, às 9h, 11h e 14h (inscrições no local, com 15 minutos de antecedência).
Grátis. Informações em sescsp.org.br/bertioga
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