A livreira que não desiste de contar a História do Brasil 

01/05/2023

Compartilhe:

Integrante da exposição “A Parábola do Progresso”, a fotógrafa e editora Arlete Soares trabalhou incansavelmente para publicar em português os registros do etnólogo francês Pierre Verger. Em sua passagem pelo Sesc Pompeia, ela também relembra como foi trabalhar ao lado de Verger e da arquiteta Lina Bo Bardi, durante a concepção da Casa do Benin, em Salvador.

Uma das discussões presentes na exposição “A Parábola do Progresso” é a questão da diáspora africana e como ela se desdobrou na constituição do Brasil como uma República. A história negra que a história “oficial” sempre tentou invisibilizar só não foi completamente apagada e esquecida pelo empenho de muita gente. Impossível nomear todas, mas certamente a fotógrafa e editora Arlete Soares foi uma delas. 

Ela transportou de Paris para Salvador mais de 130 quilos de negativos do etnólogo francês, Pierre Verger, que fotografou exaustivamente a Bahia. Na época em que conheceu o trabalho do francês, ela não se conformou que não havia traduções para o português e prometeu que faria isso. E fez. 

Depois, ao lado de Pierre Verger e Lina Bo Bardi, o trio elaborou uma série de eventos para celebrar o centenário da abolição da escravatura no Brasil. E um dos marcos foi o intercâmbio Bahia – Benin que culminou com a construção da Casa do Benin no Pelourinho, em Salvador. “Meu phD foi trabalhar de perto com Lina [Bo Bardi] e [Pierre] Verger”.

Acompanhe a conversa que tivemos com a fotógrafa, durante sua passagem pelo Sesc Pompeia. 

[SESC] A editora Corrupio começa a partir da sua vontade de publicar o trabalho do Pierre Verger. Gostaria que você falasse sobre a importância de publicar Verger no Brasil, na época.

[Arlete Soares] Olha, eu nunca tive a ideia de publicar ninguém. Em verdade, quando fui pra Paris fazer o doutorado, meu professor me deu dez livros para ler e o primeiro deles era de Verger, Flux et reflux. Não tinha à venda e eu tinha que ler dentro da biblioteca, todo dia, um livro de 796 páginas, em francês, eu não dominava a língua ainda. 

Logo depois chegaram Jorge Amado e Zélia Gattai, ao exílio em Paris, e eles eram meus amigos. Contei sobre a dificuldade de ir todo dia naquele frio para a biblioteca pública. Dias depois, eles me convidaram pra tomar um café. Quando cheguei, lá estava Verger, que reconheci na hora. Foi ali que começou minha relação com ele. Em seguida, ele me enviou um exemplar da obra e eu observei que o livro estava bem marcado, era o livro dele mesmo. Daí, começou a correspondência, e quando ele vinha a Paris, me procurava, íamos para restaurantes africanos. 

Desisti do doutorado, e voltei a Salvador já com a ideia de ser fotógrafa. Formei o grupo Zais. Alguns anos depois, resolvi encerrar o trabalho do grupo para ir para a Índia. 

Enquanto isso, a gente continuou se correspondendo. Ele me contou que tinha muitos filmes, guardados em uma cave [porão] de um ex-laboratorista dele, muito velhinho, e ele disse que tinha medo que aquilo se perdesse. Enquanto eu lia o livro, eu ficava me perguntando ‘como esse livro não foi traduzido para o português ainda se é uma coisa sobre a nossa cultura?’. Então, prometi a ele que quando voltasse da Índia, eu ia procurar um editor pra publicar aquela obra e que, se ele me autorizasse, eu poderia pegar os negativos dele em Paris. 130 quilos de negativos! E eu trouxe para o Brasil! 

Ao voltar para o Brasil vim pra São Paulo e Rio de Janeiro já com o boneco do livro pronto. Lembro-me que um editor no Rio me disse: ‘Arlete, livro de negro não vende’. Voltei pra Salvador desolada, pensando em como eu daria essa notícia a Verger. Como meu pai dizia ‘se você deu a palavra tem que cumprir’, então eu decidi editar esse livro. 

Entrei nessa história da editora como uma aventura, não imaginava que ia editar o segundo, terceiro livro dele… 

[SESC] Como foi a repercussão?

[Arlete Soares] O lançamento foi um tremendo sucesso. Dias depois, Carlos Drummond de Andrade publica no Jornal do Brasil o ‘Bilhete a Pierre Verger’, falando do livro, um texto muito bonito. Logo depois, Verger já chegou com outro boneco de livro Orixás e não dava mais pra recuar. A Corrupio durou 43 anos. 

[SESC] Como foi encontrar esse desinteresse das editoras e olhar para o Brasil que tem pouco interesse pela própria história?

[Arlete Soares] Se você tem raiz, é uma coisa, se você tem antena, é outra. Mas antena sozinha não faz grande coisa, raiz sozinha também não. Quando se conjuga antena e raiz é uma maravilha, entende? É assim que eu vejo essa história da recusa dos grandes editores do Brasil daquela época. 

O livro continua repercutindo muito, porque o futuro não pode esquecer o passado. Inclusive, um desses editores quando viu o sucesso do livro, o texto do Drummond, pegou um avião do Rio para Salvador para convidar Verger para mudar de editora. Disse que o publicaria em vários países. Verger se recusou. 

[SESC] Você se transformou numa especialista em Salvador, da cultura baiana?

[Arlete Soares] Eu trabalhei com Verger durante 17 anos, tempo em que eu já era fotógrafa. Mas a prioridade era a obra dele, quando eu o via já bem velho e sem reconhecimento, eu me achava no dever de publicá-lo. Registrei muita coisa legal, nas minhas viagens, Índia, África, na Bahia, as festas populares que eu adorava – e ainda adoro-, mas nunca tive um tema definido. 

[SESC] Mas tinha algum tema que você gostava de fotografar mais? Pessoas, festas ou paisagens?

Eu gosto da luz. Pra mim, a foto boa é quando tem uma luz bacana. Eu acordava de manhã muito cedo e saía com a câmera na mão. A luz é muito importante. A luz e o olhar, não é a máquina, o tema, se você tem uma luz bacana, a foto vai ser boa e era isso que eu buscava. 

Mas a nossa relação com a fotografia mudou muito. Era difícil o acesso a filmes, hoje fotografamos tudo, o tempo todo. Tem um abismo entre o mundo digital e o analógico. Pra Índia, levei cerca de 100 filmes, porque era caro. Então tinha que ter um olhar decisivo para os cliques. O olhar do fotógrafo era mais adestrado, não podia perder uma foto. 

[SESC] Você queria ter mais filmes, sentiu falta disso?

[Arlete Soares] Não, eu tinha vontade de ficar mais esperta [risos]. Quando via uma pessoa debaixo de uma luz maravilhosa, pensava ‘pô, se ela virasse pra cá’, e ficava esperando que acontecesse, não ficava ‘sentando o dedo’, porque custava caro. Hoje em dia, as pessoas fotografam tudo. 

[SESC] Como foi a sua relação com a Lina Bo Bardi e Pierre Verger?

[Arlete Soares] Quando falo da Lina, sinto muita saudades. Verger e a Lina foram meu phD. Conheci os dois quando eles já tinham completado a obra deles. Eu era diretora da fundação Gregório de Mattos, ia se comemorar o centenário da abolição (1988). A fundação foi criada pela prefeitura de Salvador, em 1986. Tivemos muitas ideias para celebrar essa data, como a Casa do Benin na Bahia. Trabalhamos dois anos juntos, não tinha internet, celular, para falar com o Benin era por rádio amador. Foi bastante intenso. Hoje, olhando pra trás, acredito que só deu certo porque estava todo mundo muito comprometido. 

Verger era muito didático e a Lina era aquela criatividade solta. Eles tinham muito respeito um pelo outro, mas discordavam em quase tudo. Eu ficava para desempatar quando a opinião dos dois era divergente e eu sempre concordava com a Lina [risos]. Então, sempre que ela ia organizar as exposições, perguntava se eu já havia chegado, porque senão Verger ia querer fazer uma coisa muito careta. 

[SESC] Como funciona a Casa do Benin hoje?

[Arlete Soares] É um museu e tem vários eventos. Não chegou a realizar todos os projetos da Lina, como residência artística, mas se mantém bastante ativa, com debates, exposições e shows. 

[SESC] A Parábola do Progresso quer contar outras histórias do Brasil, apresentando outros vieses, com obras de mulheres, de artistas periféricos, negros. Gostaria de saber a sua opinião sobre essa proposta de poder contar outra história de Brasil.

[Arlete Soares] Isso é fundamental. Mas sempre fico com um pé atrás, porque quando você fala em exposição as pessoas pensam em museu, galeria de arte.  

O povo brasileiro não tem a cultura de ir para esses espaços. Quando a Lina esteve na Bahia pra fazer a reforma do Unhão ela expôs muitas peças fora do teatro, e era lotado de gente. Acho importante esse modelo de exposição no Sesc, por ser um espaço aberto, todo mundo pode entrar e ver. 

[SESC] Como é fotografar Salvador há mais de 50 anos? O que mudou? 

[Arlete Soares] Quando vejo essas fotos de quase 50 anos, me parece outro país, porque quando o mundo já preservava, a gente começou a destruir as coisas aqui. A Bahia, a força dela, era a construção, a arquitetura. A Lina, por exemplo, fez uma casa maravilhosa em Salvador que botaram abaixo pra construir um prédio horroroso. 

O Rio de Janeiro, por exemplo, se você quiser saber como era 500 anos atrás, coloca uma bomba nos edifícios e você continua tendo os morros, o mar, coincide com as pinturas feitas pelos franceses que estiveram aqui no tempo do Império, mas a Bahia não. A Bahia tinha um destaque arquitetônico que foi destruído pra dar lugar a prédios horrorosos. 


Arlete Soares é fundadora da Editora Corrupio (Salvador, 1979). Como editora, publicou obras fotográficas do etnólogo francês Pierre Verger, contando com detalhes a história da diáspora africana na Bahia. Para a exposição, ela traz retratos da construção da Casa do Benin, e dos eventos relacionados à celebração do centenário da abolição da escravatura (1986 – 1988). Publicou seis livros de fotografia: Caminhos da Índia (1991), Israel Shalom! (1994), Bahia Tatuagens (1997), Bahia 2000 (1998), Salvador da Bahia – Cidade Plural (2004) e Anônimos (2010), além de participações em outros livros como Tempero da Dadá (1998), A Invenção do Brasil (1997). 

++ A Parábola do Progresso – mostra inédita que discute aspectos de nação, identidade e “país do futuro”. De 27/10/22 a 2/4/23. Saiba mais em sescsp.org.br/aparaboladoprogresso

Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.