“Por que tu zombou de mim?”: João Gomes e a ars poetica do matuto moderno 

05/06/2025

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Já ouvisse issaqui?, mamãe me perguntou do nada, tirando a feira da sacola, sem perceber que estava falando um pouco alto demais, por cima dos fones de ouvido. Antes mermo de eu responder, ela já foi me mostrando a tela de seu celular velho, enorme, com um perfil do iutube. Eita que gatin, quem é?, respondi. E ela: Xô botar pa tu ouvir.   

Ela tira os fones, se escora no balcão com um antebraço, apoia a sola do pé direito no interior do joelho esquerdo e faz a pose pé de garça, patrimônio imaterial nordestino. Agora, cômoda na posição ancestral, ela bota “Mete um block nele” pra tocar no alto falante do celular, mermo.    

No mormaço do fim de tarde, típico dos verões de Recife, numa cozinha qualquer da zona Norte da cidade, sentada num tamborete enquanto tirava da outra sacola o resto da feira, eu ouvi João Gomes pela primeira vez – meu queixo caindo a cada verso da letra que passava.  

O mormaço podia até ser típico, mas esse verão não era – era a primeira vez que eu conseguia rever minha mãe em quase três anos. A última havia sido no comecinho do governo Bolsonaro. O patriarca do clã carioca havia ganhado as eleições presidenciais de 2018 com uma campanha eleitoral baseada, em grande parte, em xenofobia antinordeste. Sua vitória, horripilante para todas as regiões do país, foi particularmente assustadora para nordestinos, sobretudo os não-bolsonaristas. Pra gente era como se todo o preconceito proferido por ele durante a campanha fosse não somente uma demonstração de seu desprezo por nós, mas também uma ameaça do que ele seria capaz de fazer com nossa região, caso fosse eleito.  

O tempo provou que, de fato, o preconceito não era da boca pra fora – foi uma promessa de campanha. Eleito, Bolsonaro desmontou políticas públicas que diminuíam o impacto de problemas sociais que afetam o Nordeste de forma desproporcional, como o Minha Casa Minha Vida, o Bolsa Família, o programa de construção de cisternas, a expansão de unidades de ensino nas zonas rurais etc.  

Assim, quando eu e minha mãe voltamos a nos encontrar, nesse verão de 2021, o Brasil era outro – e não apenas por causa da gestão bolsonarista. Com um negacionista na presidência, a crise sanitária atingiu nosso país de forma particularmente dura. E é importante ressaltar que ela não afetou a todos igualmente: a pandemia abalou a renda de 59% da população nordestina e o Nordeste foi, segundo relatório do Instituto Tricontinental, a região mais negativamente impactada pela pandemia no Brasil.  

Como todos nós, também João Gomes viveu os impactos da crise sanitária – primeiro como o  estudante do campus rural do IFPE em Petrolina, que teve seu ano letivo abruptamente interrompido; e depois, como o cantor que viu seus vídeos viralizarem nas redes sociais, conquistando um público online que só fazia aumentar.  

Eu quero ser um véi que nem vovô  

Foi nesse contexto de luto, mas também de celebração dos reencontros de sobreviventes, que João Gomes apareceu nas nossas vidas, na segunda metade de 2021. E quando digo “nossas”, digo não só nas vidas de mamãe e da minha, mas da gente do Nordeste. É que depois de termos sido mal imitados, ridicularizados e “xingados” de pau-de-arara durante a campanha presidencial; e depois de maltratados e negligenciados durante o governo bolsonarista, JG surgiu como um clarão. Seu sucesso aconteceu não apenas por causa da deliciosidade da sua música, mas também por causa de seu carisma made in Serrita, e foi como uma revanche pra muitos e muitas de nós.  Pois o alívio existencial coletivo, oferecido por João, tem um componente que se diferencia da maioria dos grandes cantores do Brasil. E esse alívio é de cunho político.  


O poeta caribenho Derek Walcott disse certa vez que “originalidade” vem de “origem” – para ele, o artista se mantém original à medida em que se mantiver ligado à sua. É precisamente daí que vem o poder de João.


João se tornou uma superestrela da cultura pop não somente pelo seu talento, nem apenas pela sua ética de trabalho (de humildade e disciplina!). O crucial foi o seguinte: num momento histórico de polarização política, com pitadas fortes de xenofobia antinordeste, João fez a opção ousada de se manter leal às suas raízes e ao seu povo – deixando claro que “humildade e disciplina” não é apenas ética de trabalho, é um compromisso com sua gente. João não quer ser um velho, quer ser um véi, e não um véi qualquer – ele quer ser um véi que nem o avô dele, Seu Marcos.  

Quando canta “vou botar na boiada/do jeito que ele [Seu Marcos] ensinou”, João está acenando pra sua comunidade, avisando que vai manter os costumes e as tradições do jeito que aprendeu com seus ancestrais. E, pelo menos até o dia de hoje, ele mantém esse compromisso. Em muito (muito mesmo!) ele me lembra o igualmente maravilhoso Bad Bunny, que também optou por ser desavergonhadamente portorriquenho!  

Mas tem mais – que é, aliás, o mais importante: compreendendo que showbusiness requer, sim, grandes palcos, aparições na Globo e pirotecnia, mas sem se tornar um fantoche dos negócios, João leva pros palcos uma verdade desconcertante: ele mesmo. João não mudou o sotaque, não abandonou o piseiro, não se afastou de Jeovanny e Pedro, não alisou o cabelo, não fez harmonização facial (zulivre), não se mudou pra Alphaville, não se casou com atriz global. Parece receita simples, mas quantas vezes não vimos artistas talentosos se perderem, e perderem sua originalidade, nas concessões que fazem ao showbusiness e às expectativas de público e críticos do sudeste?   

O poeta caribenho Derek Walcott disse certa vez que “originalidade” vem de “origem” – para ele, o artista se mantém original à medida em que se mantiver ligado à sua. É precisamente daí que vem o poder de João. Ao ser desavergonhadamente o que é, ele representa (e redime!) o sujeito talvez menos verdadeiramente conhecido, mas mais estigmatizado, do imaginário branco brasileiro: o assim-chamado matuto.   

Ilustração para o texto de Adelaide Ivánova sobre João Gomes

Caipira vs Matuto   

Não poderei continuar analisando a estigmatizacão do matuto sem emoldurar seu significado. Porque, ainda que, no senso comum, as palavras caipira e matuto sejam frequentemente consideradas sinônimas, são duas coisas diferentes.  Não é tarefa fácil de realizar em poucos parágrafos, mas vou tentar. Antes de começar, é preciso dizer o seguinte: nem toda pessoa nascida no interior é caipira ou matuta; e pessoas destes grupos não são iguais entre si, nem compartilham trajetórias e ideologias idênticas. Em outras palavras: ciente da sua diversidade, tentarei fazer apenas uma brevíssima delineação histórica destes grupos, e minha intenção não é a essencialização! 

Em sua tese de mestrado em história pela PUC-SP, Cristina de Lima Cardoso afirma que “o caipira é o morador do campo (…) fruto da evolução histórica de grupo social radicado em São Paulo”. E esse grupo eram os bandeirantes – os genocidas que ganharam o nome de Ka’pir ou Kaa-pira (cortador de mato, em Tupi) pelos indígenas Guaianás do Médio Tietê. Segundo Cardoso, o bandeirante vira caipira “quando se sedentariza, uns tornam-se fazendeiros, exportadores, gente que ganhou dinheiro nas cidades”, enquanto outros viram, nas palavras de Antonio Candido, o “bandeirante atrofiado” – o agricultor de subsistência, o caipira que habita o senso comum (Jeca Tatu sendo um exemplo estereotipado de sua representação na cultura).  

O matuto também é sujeito rural, mas é oooooutra coisa. Segundo Geraldo Irineo Jofilly, matuto é categoria laboral, eram os “trabalhadores de enxada nos brejos da Borburema (…), no mais baixo nível social, apenas um pouco acima dos escravos (sic)”. Se o caipira tem como ascendência primordial o bandeirante, e sua ancestralidade indígena é, quando muito, residual, para o matuto a relação com a ancestralidade indígena é central e se manifesta sobretudo na sua relação com bioma em que está inserido, e com o sagrado, sobretudo na margem esquerda do São Francisco.   

A definição que o Michaelis traz do uso coloquial do termo, no Nordeste, é poeticamente reveladora: “Matuto: Reg (N.E.) Diz-se de ou indivíduo de atitude reservada, que é dado a desconfiar de tudo e de todos, mostrando-se geralmente tímido e retraído no seu convívio com os demais”. A definição dialoga com um dos possíveis significados da palavra “kariri”: do tupi, “silencioso”. Kariri, por sua vez, é a principal família de línguas indígenas do sertão do Nordeste. E, encerrando o ciclo, o sertanejo emigrado que narra o poema Lamento sertanejo, de Gilberto Gil, se autodescreve assim: “Eu quase não falo”.  

Franklin Távora (1842-1888) deve ter sido o primeiro autor que tentou explicar o matuto em seu livro homônimo de 1878, projeto que se inseria em seu programa político-literário, de busca pelo reconhecimento da literatura não-sulista. Para ele, a aproximação com a corte no Rio corrompia os sulistas e fazia deles um grupo que poderia até ser “civilizado”, mas que não merecia confiança. Enquanto isso, o matuto nortista seria aquele que poderia até ser “selvagem”, mas ao menos era transparente na sua comunicação. E mais importante: o matuto, para Távora, é o sujeito profundamente ligado ao seu território, ao contrário dos sulistas que, para o autor, frequentemente queriam ser algo que não poderiam ser nunca (a saber: europeus). 

Pois bem. Com essa diferenciação feita, sigamos.   

O protesto dos matutos contra os doutores  

Em certo momento de Orientalismo, o escritor palestino Edward Said diz que, nos veículos de comunicação, “o árabe é sempre mostrado em multidões. Nenhuma individualidade, nenhuma característica ou experiência pessoal. A maioria das fotos representa raiva e miséria em massa, ou gestos irracionais”.    

Imitando Said, troque “árabe” por “nordestino” e pense comigo na imagem do pau-de-arara, meio de transporte que levava sujeitos rurais aos grandes centros urbanos, e que virou símbolo da desigualdade regional do Brasil. Na boca do xenófobo Jair Messias, pau-de-arara virou xingamento. Num gesto tipicamente desumanizante, Bolsonaro reduz o Nordestino a uma multidão sem “nenhuma individualidade, característica ou experiência pessoal”, palavras de Said. A partir desse momento, todo Nordestino não será nada a não ser a mesma coisa, um bololô sem nuances, sem humanidade.  

Em outras palavras: na boca do xenófobo, todo Nordestino é um matuto. E o matuto, para o preconceituoso, seria o sujeito não-urbano “atrasado” por ser incapaz de analisar a vida e ter agência sobre ela. Mas nessa assunção há três grandes erros.  

Primeiro: apesar do Brasil rural ser nordestino, nem todo nordestino é rural, pois 78% da população do Nordeste vive em cidades, segundo o Censo de 2022. 

O segundo erro é atribuir defeito ao ser-matuto, e esse erro é reflexo do paradigma de progresso vigente. Nele, a medida da civilização é nossa capacidade de produzir brebotes e consumi-los (ou descartá-los) com velocidade cada vez maior, em cidades cada vez mais horríveis de se viver. Mas a essa altura do campeonato já devia estar claro que é precisamente a lógica ocidental, de ruptura com a natureza, que é irracional: será ela a responsável pelo fim da vida na Terra. As metodologias de convivência dos matutos com o bioma Caatinga, além das tecnologias sociais, baseadas em laços de solidariedade, reciprocidade e respeito aos mais velhos, que vemos no interior do Nordeste afora (as comunidades de fundo de pasto sendo um excelente exemplo, mas nem de longe o único!), em muito ainda refletem as formas de socialização comunal dos indígenas da região.  São precisamente estas tecnologias sociais e ambientais, inventadas pelos povos originários e vivida pelos matutos, quem podem salvar a vida na Terra. 

O último problema tem a ver com igualar o matuto com alguém incapaz de analisar corretamente a própria realidade, e sem agência para transformá-la. Segundo Renan Porto, pesquisador do sertão da Bahia e doutor em Direito pela Universidade de Westminster, “Isso é o que está na base do racismo: a negação das capacidades racionais e intelectuais de alguém”. Essa incapacitação do matuto/sertanejo/nordestino é violenta, e se expressa de diversos modos, sendo o uso da linguagem apenas uma delas: Bolsonaro dizendo, em julho de 2024, que o Nordeste é a pior região do Brasil, por exemplo, é apenas a versão mais óbvia do orientalismo à brasileira.   


O curioso é que a própria música de João revela, inúmeras vezes, que ele está inserido na vida contemporânea globalizada, cujos códigos urbanos-tecnológicos ele conhece e domina


Mas essa violência também acontece de forma sutil e, portanto, mais perversa. Um exemplo disso é a maneira como se conta a história – e como, através dela, se desqualifica os eventos políticos no Nordeste (inclusive o cangaço!). Uma amostra contemporânea dessa incapacitação coletiva é a irracionalização do voto nordestino nas esquerdas. Já um bom exemplo histórico é a forma como se explicava, até recentemente, a Rebelião dos Quebra-Quilos – conhecida como “a revolta dos matutos contra os doutores” – que aconteceu entre 1874 e 1875 em vários estados do Nordeste.  

Desde seus contemporâneos no século 19, passando por Elio Gaspari num artigo vergonhosamente xenofóbico no século 20, chegando ao detestável Vargas Llosa mangando da Quebra-Quilos no século 21, a revolta já foi ridicularizada por um sem-número de intelectuais. Para eles, os matutos eram “ignorantes” que se rebelavam contra a nova lei de pesos e medidas porque não tinham capacidades cognitivas para entender a importância da chegada do progresso nos interiores do Brasil.  

Porém pesquisas recentes, sobretudo as feita nas universidades do Nordeste, mostram que a Quebra-quilos tinha caráter crítico e emancipatório. A implementação do sistema métrico francês foi apenas o estopim para pautar uma série de outras insatisfações anteriores. Na ordem do dia dos revoltosos, estavam desde impostos abusivos e aumento do custo de vida, até a arbitrariedade do recrutamento militar (que era feito, basicamente, via sequestro da população matuta). E isso só pra citar uma única revolta – porque existem centenas de outras, quase que totalmente ignoradas pela historiografia oficial brasileira, mesmo quando vitoriosa, como a Guerra dos Marimbondos

Obviamente que a irracionalização do matuto também se manifesta contra indivíduos. Eu merma já perdi as contas de quantas vezes já fui tratada como abilolada, pela “intelligentsia” sudestina. Para João Gomes não poderia ser diferente.   

Nos seus quatro anos de fama, já botaram JG pra se fantasiar de cacto, já corrigiram o sotaque dele, já se impressionaram que ele conhece Cartola, Racionais MCs e Machado de Assis, já chamaram Serrita de cu do mundo, já acharam que aboio tem tambor, já desconfiaram que ele sabia o que era videogame e já disseram que foi uma cantora sudestina com alguns milhares de seguidores, quem abriu portas da fama pra JG (com seus mais de 16 milhões). Kkk.  

Tal subestimação é expressão do defeituoso paradigma moderno, que iguala matuto a abilolado, e da xenofobia made in Brasil, no qual o nordestino será sempre um matuto. O resultado dessa equação é que, se todo nordestino é um matuto, todo nordestino é abilolado.   

No bojo desse paradigma destrutivo, o matuto não poderia jamais ter acesso aos mesmos códigos culturais e bens de consumo que o não-matuto, o pseudo-ocidental do sudeste. O curioso é que a própria música de João revela, inúmeras vezes, que ele está inserido na vida contemporânea globalizada, cujos códigos urbanos-tecnológicos ele conhece e domina, como meter um block, a bóizinha que ele vê online e não responde às mensagens dele (que lembra, novamente, Bad Bunny em KLOuFRENS) ou a menina que liga pra ele atordoada pedindo foto de agora. Talvez abilolado seja justamente quem, cego pelo próprio preconceito, não consiga ver a ars poetica do matuto moderno. 

Ilustração para o texto de Adelaide Ivánova sobre João Gomes

Dodecassílabo, caldinho e litrão  

Quando Mete um block nele terminou, mamãe disse “Agora, tu vai morrer mermo é com essa aqui”, e botou uma outra música pra tocar que, depois de um solinho pop de sanfona, começava assim:  

Levanta cedo pra labuta que eu tô pronto  
Eu muito conto com meu Deus que tá no céu  

João abre Eu tenho a senha metendo dois dodecassílabos na cabeça do ouvinte, na melhor escola Luiz Gonzaga de trímetro peônico. Para além do uso de métrica clássica, me emociona ainda mais o significado da letra, que faz o narrador do poema transcender o eu-lírico e virar um eu-político. Já no primeiro verso, João avisa a qual classe pertence. Ele não diz “acordei no meu latifúndio e tô aqui desfrutando de meus privilégios de classe” (algo, aliás, frequente no “sertanejo” sudestino). Ele diz que acorda cedo pra ganhar o pão via trabalho. Ou seja: já na primeira linha, fica claro de onde João fala. Mas não pára por aí.  


É sempre desde lá que você falará, mesmo que seu corpo esteja longe 


No segundo verso, ele sai do mundo do trabalho, do mundo material, e entra na metafísica. Pra quem não tem muito, às vezes é a religião a única fonte de conforto existencial – e, considerando que o Nordeste foi negligenciado por séculos, e só passou a receber os cuidados que merece a partir do primeiro mandato de Lula, pode-se dizer que durante muito tempo a fé (seja em Deus, seja na revolução!) era a única coisa com que os nordestinos contavam. Por isso, quando JG diz que muito conta com Deus, ele se aproxima de uma tradição poética que se vê desde Fabião das Queimadas ao maravilhoso Clã Nordestino, tradição essa que bebe no misticismo do Nordeste – e que, por sua vez, mescla elementos do catolicismo popular e das crenças afro-indígenas únicas da região, como a Jurema e o Catimbó.  

Nas linhas seguintes, JG usa versos livres (inclusive no que diz respeito à flexão de número, aceno iconoclasta que eu absolutamente amo!), onde vai assegurar sua street credibility (gesto típico do rap, gênero pelo qual JG também é influenciado!), avisando: “Eu tenho a senha pra correr em todo canto”, estabelecendo assim uma conexão legítima com o território sertanejo, ao fazer referência à senha da vaquejada. Com os versos seguintes, “Humildade e disciplina dos sermão que mãe me deu”, JG explica que a ética ensinada pelos seus antepassados é a herança que importa, já que é justamente essa ética que lhe dá licença pra ir circular por onde ele quiser.  

Assim, depois de deixar claro pro ouvinte de qual classe vem e em que ele crê, João estabelece uma autoridade via pertencimento – e o faz de forma muito profunda. Qualquer pessoa que conheça o sertão de verdade, sabe que humildade e disciplina é ethos sertanejo. Se você olhar a literatura dos etnógrafos europeus do século 19, como Spix e Martius, ou a de Manuel Correia de Andrade e Câmara Cascudo (entre outros!) no século 20, você vê várias vezes referência a esse ethos (que, vale ressaltar, não tem relação direta com subserviência).  

Por fim, a estrofe se encerra reiterando que ele tem a senha, que seu cavalo tá pronto, e que em cima da sela ele mostra merecer reconhecimento pelos seus esforços. E quais seriam esses esforços? O cavalo, aqui, é fundamental pra responder essa pergunta: ele é alegoria que se refere tanto à profissão de vaqueiro, quanto à parte lúdica, de fruição coletiva da vida, vivenciada na pega de boi. Já o troféu poderia ser tanto o prêmio recebido no fim da vaquejada, quanto a recompensa financeira, pelo trabalho de vaqueiro prestado.  

Eu tenho a senha é o hino do ethos do matuto – é a culminância do poeta que escreve a partir do e imerso em seu território, mesmo quando à distância. Como bem disse Bad Bunny recentemente sobre Porto Rico, seu corpo pode até ir morar em outro lugar, mas você nunca sai de seu local de origem. E é sempre desde lá que você falará, mesmo que seu corpo esteja longe.  

Isso me devolve a Recife, onde não moro mais há tantos anos, me devolve à cozinha de mamãe, uma matuta de Gravatá do Jaburu que emigrou, como toda sua família, do Agreste de dentro pro Agreste de fora (Caruaru), e de Caruaru para o litoral, tendo chegado em Recife no fim dos anos 70. Lá, ela trabalhou como babá, atendente e vendedora, até conseguir entrar, quase aos 30 anos, na universidade. Virou professora de História. Fast forward 40 e tantos anos, ela é apresentada a João Gomes pelos alunos dela, uma gurizada de 19, 20, 21 anos, muitos deles também matutos, vindos do interior pra estudar em Recife. É essa matuta que se emocionou com o feito poético de João Gomes e, vendo-se a si própria nas letras do jovem matuto, o cantor com voz de véi, repassou essa paixão para mim, que sou sua filha e, como ela, também neta, bisneta e tataraneta de matutos nordestinos. Essa é a senha.  

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