Marcelo Aliche conta um pouco da sua experiência em 16 edições do In-Edit Brasil, festival de cinema voltado a documentários musicais
Marcelo Aliche é diretor artístico do In-Edit Brasil, Festival Internacional do Documentário Musical desde 2009. Formado em Publicidade e Propaganda pela Universidade Metodista de São Paulo 1992, viveu em Barcelona onde trabalhou em agências de publicidade, programas de rádio e televisão e desenvolveu diversos projetos.
ilustrações por Alexandre Calderero — designer e produtor gráfico do Selo Sesc
Em 2003, eu trabalhava numa agência de publicidade em Barcelona, quando um amigo me avisou que no fim de semana seguinte rolaria um festival de documentários musicais no bairro de Gràcia. A programação era generosa para apenas 3 dias de evento, com filmes sobre Joey Ramone, Nico e mais um monte de assuntos legais. Me interessei na hora, mas pensei: “Não vou poder ir. Tenho viagem marcada nesta data”.
Naquele momento, além de ser redator publicitário, eu participava do programa de rádio La Casa de Les Cultures na emissora COMRàdio (hoje La Xarxa) que anunciava a chegada do Fórum das Culturas 2004, um evento que aconteceu por 141 dias na capital da Catalunha com o objetivo de discutir o futuro do mundo. Artistas de todas as disciplinas, chefes de estado, ONGs e centenas de entidades internacionais circularam por ali entre shows, performances, palestras, debates e muito mais.
A programação do tal festival parecia ser uma boa fonte de informação para meu trabalho na rádio, que consistia em fazer a direção musical do programa e falar dos contextos históricos e sociais do que era tocado.
No ano seguinte, a mesma conversa: “Lembra daquele festival de documentários musicais? Vai rolar de novo!”. E mais uma vez não pude ir, porque precisava vir ao Brasil para o casamento da minha irmã.
E então chegou 2005. Na 3ª edição do festival, eu estava na cidade, sem planos de viagem e fazendo um programa de rádio que me permitia ter uma credencial plena para todas as sessões. Foi assim que eu conheci o In-Edit. Nesse primeiro contato, assisti a documentários sobre os Ramones, Bob Dylan, James Brown, entre outros, que me fizeram refletir sobre muitas coisas.
No ano seguinte, repeti a dose. Na abertura, Stewart Copeland, baterista do The Police, que estava pessoalmente distribuindo abraços e sorrisos, apresentou seu filme “Everyone Stares: The Police inside and out”. Dos títulos que acompanhei me chamaram a atenção “Sierra Leone’s Refugee All Stars” e “Metal: A headbanger’s journey”. Ambos reforçaram minha ideia de que aquele não era um evento para fãs e sim para quem vê o mundo através da música e da arte.
Os anos foram passando e, enquanto o In-Edit fazia edições cada vez mais interessantes, a minha paciência com o mundo publicitário ia se esgotando. Nesse tempo, acabei ficando próximo do pessoal da organização do festival que, além de produzir a mostra, também oferecia serviços de assessoria de imprensa para música e cinema.
Um dia, durante um festival de filmes brasileiros em que eles faziam a comunicação e eu ajudava na produção, abordei um dos sócios: “Vem cá. Vocês fazem o In-Edit no Chile há anos. Por que não no Brasil?”. A resposta foi na lata: “Ué, faz você”. Quem, eu?
Na edição seguinte, Don Letts apareceu em Barcelona para ser homenageado com vários de seus filmes exibidos no festival. Entre os títulos estava “The Clash: Westway to the World” (2000), que eu já tinha visto mas queria rever na telona. Antes de sair de casa, eu falava num chat com o Maurício Gaia – hoje figura central na produção do In-Edit Brasil – e mandei para ele um link com o festival e o filme que eu iria ver. Algumas horas depois, quando voltei para casa, ele ainda estava online e foi direto: “Legal esse festival, hein? Por que você não traz pra cá?”. Eu?
Meses depois, a crise econômica de 2008 oficialmente chegou, o programa de rádio foi descontinuado, meus freelances pararam de aparecer, a agência onde eu trabalhava perdeu seus últimos clientes. Sem trabalho e sem economias, procurei emprego, mas o salário era baixíssimo para uma carga horária sem limites, o que me impediria de arrumar bicos para terminar de cobrir as despesas.
Procurando uma saída, me lembrei do In-Edit e pedi uma reunião com os sócios. No tempo que duram 2 cervejas long neck, me explicaram as condições, as limitações, as oportunidades e me deram 18 meses para realizar o festival no Brasil. Depois disso voltaríamos a conversar.
Maravilha! Mas como se faz um festival de cinema no Brasil?
Naquele momento eu estava havia 14 anos longe daqui. Não conhecia ninguém, além dos amigos de infância e juventude. Eu não tinha nem ideia de como conseguir um patrocinador nem informações concretas sobre a tal Lei Rouanet, de que tanto se falava e que parecia ser a única maneira de colocar um projeto cultural em andamento por aqui.
A resposta foi na lata: “Ué, faz você”.
Me juntei a um amigo de adolescência que já tinha morado em Barcelona, produzido alguns documentários musicais e na época fazia parte da ABCR, Associação Brasileira de Captadores de Recursos. Perfeito, né? Só que não. Fui convencido a começar a produção, enquanto ele agilizava a grana, coisa que nunca aconteceu. “Vai fazendo, que eu consigo o dinheiro”. Então tá.
O resultado da primeira edição do In-Edit Brasil 2009 foi uma dívida enorme, uma amizade arruinada, um estresse que eu jamais havia experimentado, a volta ao tabagismo e a decepção de ter sido enganado de diferentes formas.
A cereja do bolo do ano ficou por conta da abertura. O saguão do MIS-SP estava lotado e, entre abraços e tapinhas nas costas, dois jornalistas muito conhecidos vieram falar comigo. Eram Marcus Preto e Lauro Lisboa, com quem acabei estabelecendo contato nos anos seguintes. “Parabéns pela iniciativa. A programação é muito legal. A gente queria ficar, mas fomos avisados que o Michael Jackson acabou de morrer e precisamos voltar para a redação”. Perdemos o rei do pop e a cobertura jornalística do festival de uma vez só. Que fase!
Mas como tudo tem um lado positivo, vamos a ele: a imprensa gostou da programação, a produção funcionou, estreitamos laços com algumas instituições – principalmente com o Sesc que logo viu o potencial do festival – e o que eu considero a verdadeira virada de chave nesta história: ter conhecido o cara que realmente dá vida ao festival até hoje, o Leonardo Kehdi, que naquela situação entrou como parceiro na produção.
Depois do tombo, na manhã em que eu voltaria a Barcelona, passei na produtora e disse ao Leo: “Das duas, uma: devo, não nego, te pago quando puder, ou viramos sócios e tiramos esse carro do atoleiro”. Num ato de irresponsabilidade súbita, ele ficou com a segunda opção. A partir daí dividimos as tarefas: eu ficaria com a parte artística e de comunicação, e ele com a produção e administração.
Uma dívida enorme, uma amizade arruinada, um estresse que eu jamais havia experimentado, a volta ao tabagismo e a decepção de ter sido enganado de diferentes formas.
A diferença entre trabalhar com quem sabe do que está falando e com quem diz que sabe é enorme. Já no ano seguinte, 2010, ganhamos um edital da Natura com um valor que era praticamente o dobro do custo do ano anterior. Além disso, o projeto foi aprovado nas leis de incentivo, mas a captação só aconteceu no ano seguinte. Se fosse pelo Leo, teríamos gastado quase tudo no festival e pagaríamos a dívida pouco a pouco. Mas eu bati o pé e exigi que todo mundo fosse pago imediatamente: pais, amigos, o sócio anterior e principalmente o próprio Leo, que havia colocado uma bela grana naquela barca furada.
A 2ª edição do In-Edit Brasil já foi bem diferente. A Natura exigia que pelo menos metade da programação fosse brasileira, mas a indústria nacional não produzia tantos filmes bons para isso. Os documentários internacionais estavam muito à frente dos brasileiros, não só quanto à produção, mas também quanto ao enfoque, roteiro, arquivo, montagem, e eram a cara do festival em Barcelona e Santiago. Não poderíamos descartá-los. A saída foi caprichar numa retrospectiva nacional. Deu certo. O público compareceu, a imprensa também e os atropelos de antes foram substituídos por cautela.
E então chegou 2011, o ano que, de alguma forma, definiu o modelo que adotamos até hoje. Naquele ano, a Natura repetiu o patrocínio e teve a chegada da Petrobras, o que nos deu margem para crescer. As inscrições de filmes nacionais cresceram exponencialmente, os títulos internacionais eram ótimos e, para a nossa alegria, o Pai do documentário direto, Albert Maysles, aceitou vir ao festival. A sessão de “What ‘s Happening! The Beatles in the USA”, no CineSesc, foi histórica.
Segundo nos contou Albert, o filme foi captado na primeira visita do quarteto aos Estados Unidos, e ele fez uma montagem que nunca foi comercializada. A banda acabou comprando o material anos depois e lançou o que veio a ser “The First U.S. Visit” com uma montagem bem água-com-açúcar. O diretor apresentou o filme, foi aplaudido e fomos comer uma pizza ali perto, enquanto a fita rolava. Cinco minutos depois recebo uma ligação dizendo que a tradução – que estava sendo projetada em legenda eletrônica – não batia com filme. Ali mesmo indaguei a produtora Laura Coxson, que acompanhava Albert (então com 84 anos), sobre a lista de diálogos. Nesse momento, ele se vira para ela e diz “qual versão do filme nós mandamos?”. Em resumo, como o filme nunca tinha sido lançado, não havia uma versão oficial e definitiva. Ele pegou a primeira fita que viu e mandou. O documentário foi exibido sem legenda naquela sessão e apenas 2 pessoas deixaram a sala lotada.
O público compareceu, a imprensa também e os atropelos de antes foram substituídos por cautela.
Do lado brasileiro, para satisfazer novamente as exigências da Natura, voltamos a apresentar uma retrospectiva nacional e uma mostra com os trabalhos de Andrucha Waddington, que infelizmente não veio por problemas pessoais. Carlos Saura também desmarcou a viagem uma semana antes por questões de trabalho, desperdiçando uma passagem paga pelo Instituto Cervantes, órgão ligado ao governo da Espanha que, desde o ano anterior, nos ajudava no transporte de fitas e rolos de Barcelona para São Paulo, sem a necessidade de passar pela burocracia alfandegária.
Depois de 3 edições bem recebidas pelos profissionais da música e do cinema, o In-Edit Brasil começou a se estabelecer pouco a pouco como uma referência nas indústrias cinematográfica e musical. Mas para que isso acontecesse foi preciso estabelecer certas práticas como participar regularmente dos editais, estar sempre em dia com as leis de incentivo para buscar patrocínio (com tudo o que isso significa do ponto de vista burocrático e marqueteiro), manter contato com instituições parceiras, produtoras, distribuidoras, diretores, músicos, meios de comunicação, outros festivais, ver documentários musicais constantemente, ler sites, revistas, livros e tantas outras atividades que fazem parte do nosso dia a dia.
Na nossa 16ª edição, sabemos que o festival hoje serve de plataforma para o trabalho de muitos cineastas e de parâmetro de qualidade para milhares de espectadores.
Mesmo mais experientes, de lá para cá tomamos bons sustos e algumas quedas. Mas o que posso dizer com sinceridade é que a única coisa que eu aprendi nesses anos todos é que o jogo nunca está ganho. Todas as edições começam do zero: do orçamento até a programação final, por isso o trabalho é constante.
Falando nisso, preciso me despedir porque tem um festival pela frente e muita coisa para ser feita. Nos vemos lá. Obrigado.
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