Os desafios e potências da direção de espetáculos circenses hoje 

28/07/2025

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Por Ronaldo Aguiar

Atuo como diretor circense há mais de quinze anos. Nesse período, dirigi mais de vinte espetáculos e produções, trabalhando com famílias circenses tradicionais, artistas solos, palhaços, palhaças, palhaces e com várias trupes em todo o território nacional. Antes de falar sobre o processo de direção circense, preciso contextualizar alguns pontos históricos do circo, porque isso interfere diretamente no modo de criação.  

O circo brasileiro tem uma influência europeia muito forte. Essa influência se dá pelas famílias circenses que aportaram no Brasil entre os séculos 18 e 19 — desde ciganos, famílias circenses e pequenas trupes que foram se espalhando pelo território latino-americano. No entanto, nos últimos quinze anos, vêm surgindo companhias e trupes circenses que trazem em seus repertórios uma busca por ancestralidade, nacionalidade e reparação histórica no picadeiro. Elas trazem para a cena uma identidade brasileira, sem cópias estereotipadas da Europa.  

Espaços como a Escola Pernambucana de Circo, que é uma referência de circo social no Brasil, ou, em São Paulo, grupos como Prot{Agô}nistas, Trupe Catappum, Circo Di SóLadies/Nem SóLadies e Cia Fundo Mundo (uma companhia de pessoas trans, travestis e não binárias), apresentam em suas narrativas o protagonismo de pessoas que por séculos ficaram à margem da sociedade. Essa mudança começa a borbulhar no comportamento circense já no início dos anos 1980 de uma forma bem discreta, quando surgem as escolas de circo no Brasil, democratizando saberes que antes estavam centralizados nas famílias que viviam em circos itinerantes. Noto que os movimentos identitários têm trazido novos caminhos para o fazer circense. Surgem novas narrativas, novos protagonistas e outras formas de existir no picadeiro.  

Esse movimento deu base para o surgimento de trupes que não estão ligadas às lonas de circo itinerante. Começa, nesse momento, uma busca por espaços alternativos, como teatros, ruas e praças. Isso muda o modo de produção. Eu mesmo sou um circense oriundo das escolas de circo social. Isso foi um avanço, mas ainda há resistência por parte de instituições que fomentam a cultura e ainda colocam o circo em uma caixinha de mero entretenimento. 

O entretenimento faz parte da produção artística, mas o circo também é resistência. Foi uma das últimas artes a ser fomentada por políticas públicas. O Prêmio Carequinha, lançado pela Funarte em 2003, foi o primeiro edital público exclusivo para artistas circenses. 

A produção circense enfrenta muitos desafios. Um deles é o espaço físico: a arte circense necessita de uma estrutura técnica onde se possa pendurar um trapézio, uma lira, um tecido, entre tantos outros aparelhos. Até hoje, artistas sofrem com a ausência de infraestrutura adequada para seu trabalho. 

Além disso, há desafios estéticos. Considerando que o Brasil foi colonizado pela Europa, o olhar das curadorias e de boa parte da sociedade tende a ser mais receptivo a tudo que remete a uma estética eurocentrada. Tudo que foge disso — como as expressões da população negra e dos povos originários, historicamente marginalizados — é frequentemente colocado como “exótico” e até já foi proibido por lei. Atualmente elas não são consideradas crime, hoje existem leis que garantem a existência de manifestações culturais de matriz africana e de povos originários no Brasil. Capoeira, frevo, samba, entre tantas outras manifestações que foram perseguidas, hoje ocupam os picadeiros e palcos brasileiros, reivindicando o direito de serem reconhecidas como uma arte estruturada e legitimadas socialmente. Para que uma transformação aconteça de forma sistemática, é preciso virar a chave, abrir espaços para novas narrativas na cena. 

O espetáculo Circo Science, da Escola Pernambucana de Circo, é um exemplo disso: coloca a periferia do Recife em evidência, sem clichês, com diversidade de gênero, de classe social e com a luta antirracista. Esse é um lugar que me inspira artisticamente — um protagonismo de outras narrativas. 

Outro exemplo é a Cia. Beira Serra, para a qual dirigi dois espetáculos: Acorda, Januário! e Circo da Cuesta. Esse grupo tem como objeto de pesquisa o cotidiano da vida rural paulista, seus modos de produção e as relações sociais daquele território. A vida rural como objeto de investigação interfere diretamente na estética do grupo — a música, a poesia, as vestimentas — e é a forma como eles se comunicam com o mundo. 

A direção circense no Brasil é desafiadora justamente por esses fatores apontados acima. Vivemos em um país continental, em que cada região tem suas particularidades, o que resulta em diferentes formas de atuação em cada encontro com companhias circenses. 

Um ponto importante é que a formação de um diretor ou diretora se dá no aprendizado diário, com cada novo espetáculo. No Brasil, não existe um curso específico de direção circense. Existem profissionais que ministram workshops e oficinas pontuais, mas curso regular não há. Esse é um ofício que se constrói ao longo do percurso de cada artista e de seu interesse em pesquisar esse modo de fazer artístico. 

Ao longo do tempo, fui criando alguns tópicos que me ajudam no meu processo de criação quando estou na sala de ensaio: 

  1. Conhecimento histórico do circo; 
  1. Conhecimento técnico sobre o fazer acrobático circense; 
  1. Conhecimento sobre os aparelhos circenses; 
  1. A importância do espaço de treinamento técnico do artista circense; 
  1. A dramaturgia, a coreografia, a música, os figurinos e o cenário estão a serviço da linguagem circense; 
  1. Ser um grande mediador do processo criativo; 
  1. Ser um provocador de novas possibilidades e caminhos artísticos no fazer criativo do artista circense;​     ​ 
  1. Pesquisar profundamente o objeto, aquilo que queremos falar, traduzir para o público de uma forma compreensível. Criar esse espaço de reflexão entre a arte circense e o público.  

Esses são alguns princípios básicos do processo de direção — que não se resume a essa lista. Há muita complexidade em dirigir um espetáculo circense, mas esses eixos facilitam o percurso da criação. A direção circense é uma forma de colaborar com a qualidade dos espetáculos que chegam à sociedade, mas também é um ofício vivo. A sociedade evolui constantemente e apresenta novos assuntos o tempo todo. Por isso, um(a) diretor(a) deve estar sempre com os sentidos abertos, para não criar receitas prontas e datadas sobre o fazer. 

Vivemos uma época de revoluções tecnológicas e de lutas identitárias, e ter um posicionamento político faz parte desse ofício. 

Desejo que esse pequeno texto alimente algumas inquietações, estimule diálogos e pesquisas. 

Muito obrigado ao Sesc por esse convite! 

Ronaldo Aguiar é diretor circense, palhaço, coreógrafo e bailarino, um pernambucano radicado na cidade de São Paulo. 

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