Por Rose Maria de Souza*
Me peguei aqui pensando na minha infância, em especial, na minha casa. Impossível não me emocionar com as sensações que me atravessam neste momento…
Antes de seguir na escrita, é fundamental compartilhar com vocês que ninguém “do meu povo” reconhecia aquele lugar como quintal. Era Terreiro, o Terreiro da casa. Vivi e cresci no terreiro da minha casa, e, só muito tempo depois, na escola, é que tive acesso ao vocábulo “quintal”.
O Terreiro de terra batida era muito bem varrido por Dona Celestina (minha mãe). Lá, aprendi a conviver primeiro com as pessoas da minha família, e depois, a desenvolver intimidade, afeto e responsabilidade com a família das galinhas, dos cães e com cinco gatinhos órfãos numa tremenda festa interespécies.
Foi no Terreiro-Quintal da minha casa que vi minha vó Francisca trançar seus cabelos e contar histórias sobre “várias gentes”. Também testemunhei muitas vezes o seu olhar bonito perdido no tempo e seu silêncio revelador.
Naquele Terreiro-Quintal, aprendi a respeitar a transformação do milho em pipoca. Numa dança barulhenta na panela, aprendi a comer e a partilhá-la. Aprendi a importância e o tempo da roda, de ouvir, esperar a vez para falar, correr ou se sentar.
Foi no meu Terreiro-Quintal que nos dias ordinários pude voar, inventar, dançar, cair, levantar, gargalhar, chorar, sentir cada parte minha pulsar livre no tempo, num corpo ativo e criativo. Já nos dias extraordinários, o Terreiro-Quintal carecia de mais atenção e preparação, pois receberia outras pessoas, famílias, histórias e costumes, diferentes dos nossos. Era quando nossa família se preparava para receber quem e o que estava por vir. Foi no Terreiro-Quintal da minha casa que aprendi a acolher e não escolher, e viver grandes encontros.
Hoje, quando revivo o meu Terreiro e reflito sobre o Quintal, arrisco defini-lo como uma lacuna, uma fresta essencial, porque ele é um ESPAÇO VAZIO a ser sentido, percebido e preenchido pela vontade, e, exatamente por isso, é tão necessário. Porque ele pode se encher daquilo que nem se imagina precisar. Porque vivemos cotidianamente num espaço-tempo abarrotado, saturado de pensamentos hegemônicos, conceitos e pré-conceitos que muitas vezes nos sufocam…
Precisamos de espaço!!!
Carecemos de Quintais!!!
E, com esse compromisso, nasceu o Quintal das Corporeidades, gestado e preparado por muitas mãos, pensamentos, sentimentos, coragem, ousadia e muito amor.
A coragem e a ousadia são essenciais para enfatizar o compromisso com o reconhecimento, a valorização e a difusão das culturas afrodiaspóricas. Assim, a condição de Quintal é atribuída ao Sesc Vila Mariana enquanto espaço acolhedor repleto de cores, sabores, sons, imagens e movimentos que propiciam sensações, experiências e informações para que cada pessoa possa sentir, perceber-se e, finalmente, reconhecer-se.
O Quintal das Corporeidades é um espaço privilegiado para o encontro de PESSOAS em seus múltiplos corpos potenciais, na construção de uma cidadania plena.
ASÈ!
*Rose Maria de Souza é artista, brincante, dança-educadora, coreógrafa e dançarina. Mestra em ciências da religião e graduada em educação física, é docente universitária, professora colaboradora em cursos de pós-graduação e palestrante.
>>> O Quintal das Corporeidades do Festival Sesc Culturas Negras 2025 acontece no Sesc Vila Mariana.
>>>>> Leia mais sobre os outros quintais do festival aqui.
A segunda edição do Festival Sesc Culturas Negras acontece de 10 a 15 de junho de 2025 nas unidades 14 Bis, Campo Limpo, Casa Verde, Consolação, Interlagos, Pompeia, Santana e Vila Mariana. Cada uma delas se transforma em quintal simbólico celebrando a potência criativa das culturas negras, onde acontecem apresentações, vivências e rodas de conversa em torno das memórias, corporeidades, ensinagens, festejos, ofícios e teatralidades.
Acesse o site sescsp.org.br/culturasnegras para conhecer a programação completa.
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