Por Leda Maria Martins*
Em muitos âmbitos, as teatralidades negras constituem linhas poderosas de realização e de embates. As cenas pretas exploram os mais diversos aspectos da experiência histórica e da memória do negro no Brasil, como tema de elaboração, assim como de criações dramatúrgicas e cênicas. Elas evidenciam a busca estilística por distintas formas, processos e procedimentos, arranjados em partituras cênicas potentes e instigantes, que desafiam o modus operandi hegemônico, excludente e estereotípico, principalmente nos modos e protocolos de refiguração do negro e da negrura. As cenas negras exploram essa potente teatralidade, expandindo os focos da negrura, como possibilidade estética, invocação e episteme.**
Aqui impera uma voz postural possante que confronta as pedagogias da ausência e da exclusão sistemáticas, desvelando os engenhosos métodos, aparatos e sistemas estruturantes do racismo e suas interdições recorrentes. Mas que também alça as muitas realizações do povo negro como elemento formador constitutivo e fundamental da cultura e da sociedade brasileiras, reafirmando sua relevância histórica. Neste cenário, instala-se o contínuo exercício de uma memória cultural dialógica negra, que reatualiza os modos de percepção e fabulação de várias matrizes cognitivas e performáticas afro-brasileiras, sejam elas as advindas dos acervos das clássicas performances rituais, sejam as das periferias urbanas, como a estética hip-hop e os slams, e em sua intersecção com outras poéticas da cena.
Essa gesta é elaborada por poéticas cênicas inspiradas nas dramaturgias das visualidades, das espacialidades, das luminosidades, das sonoridades, nas dramaturgias que experimentam com as tecnologias, nas dramaturgias rituais, nas dramaturgias das subjetividades. A experimentação com linguagens transdisciplinares e transversais explora, muitas vezes, a corporeidade, que fecunda a cena, expandindo os escopos do corpo como lugar e ambiente de produção e inscrição de conhecimento, de memória, de afetos e de ações. O corpo, instituído e constituído pela performance, é acervo de um complexo de alusões e um acervo de estímulos e de argumentos, traduzindo uma certa geopolítica das corporeidades: o corpo das temporalidades, o corpo pólis, o corpo gentrificado, o corpo trans, o corpo testemunha e memória, historicamente conotado por meio de uma linguagem pulsante que denuncia os muitos itinerários de violências de nossa rotina cotidiana, mas que, sem tréguas, escava vias alternas para uma outra existência, mais plena e cidadã. Às interdições e aos sistemas e estruturas de exclusão, de invisibilidade e de indizibilidade, interpõe-se uma corporeidade que argui, postula, propõe, expressa, combate, mani- festa o seu pesar, mas também seu júbilo. Um compósito de afetos, ações, reflexões, migrações, risos, um corpo que se quer íntegro, criativo, complexo, poroso.
Nessas poéticas, constitutivas de um corpo-tela, a palavra, como gravuras da voz, encorpa o corpo, vibra na coreografia dos gestos, fazendo ecoar nos movimentos as rítmicas e formas da oralitura, compondo uma tessitura sinestésica que alia sons, musicalidades, gestos, cores, sabores e aromas, em relações de complementaridade e de interdependência, como nos ensinam os pensamentos e as cosmo-percepções negras. E nos modos de composição das personas observa-se uma certa recusa das representações fixas e estáveis, em favor de figurações mais fluidas e relacionais, particularmente as relativas às orientações afetivas e de gênero.
Seguindo uma tradição que tem no Teatro Experimental do Negro uma expressiva história de renovação da cena nacional, há mais de oitenta anos, e com todos os desafios que ainda se impõem, as teatralidades negras, com criatividade, instituem territórios estéticos que balizam o teatro brasileiro, instaurando renovados meios de inserção e de protagonismo da negrura, em seus múltiplos perfis.
** Para uma reflexão mais detalhada sobre o tema, confira as obras Performances do Tempo Espiralar, poéticas do corpo-tel (Leda Maria Martins, Editora Cobogó, 2021) e A Cena em Sombras (Leda Maria Martins, Perspectiva, 1995 e 2023).
*Leda Maria Martins é poeta, dramaturga e professora, com atuação no estudo das culturas afro-brasileiras. Doutora em literatura comparada, desenvolve conceitos sobre a memória e o tempo espiral, além de ser reconhecida por suas contribuições na área teatral.
>>> O Quintal das Teatralidades ocupa o Sesc 14 Bis.
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A segunda edição do Festival Sesc Culturas Negras acontece de 10 a 15 de junho de 2025 nas unidades 14 Bis, Campo Limpo, Casa Verde, Consolação, Interlagos, Pompeia, Santana e Vila Mariana. Cada uma delas se transforma em quintal simbólico celebrando a potência criativa das culturas negras, onde acontecem apresentações, vivências e rodas de conversa em torno das memórias, corporeidades, ensinagens, festejos, ofícios e teatralidades.
Acesse o site sescsp.org.br/culturasnegras para conhecer a programação completa.
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