Por Fabiana Cozza*
O quintal da minha infância era cimentado de caquinhos vermelhos. Pedacinhos de azulejos quebrados aleatoriamente, feito mosaicos de bolacha que desenhavam no chão mapas, fogos, nascentes imaginárias, caules, espumas de mar, pontes. Nos espaços em branco, era possível sublinhar trajetos, inventar ruas, pintar linhas, fazer tranças com o giz de lousa colorido unindo sonhos, pequenos saberes e memórias breves, de cristal. Fato é que o quintal parecia pêssego de casca aveludada, pele extensa e macia aos pés nus, outras vezes emborrachados. Noutras ainda, pés que se firmavam na ponta, equilibrando-se em saltos de sandálias e calçados que adornavam o tornozelo das mulheres.
Essas, entoavam coros como se acarinhassem argila, alinhavando conchas ao entardecer. Juntas, faziam “laraiás”, murmuravam coisas antigas, ferviam água para borrar o café no algodão cru. Augusta, com vistas no horizonte, balançava acadeira entalhada em madeira pitando fumaça encantada. Na mente, ouvia:
“hoje mamãe me falou de vovó só de vovó disse que no tempo dela era bem melhor”**
O quintal da minha infância também era uma espécie de berço com penduricalhos. Deitada sobre seu ladrilho cor de maçã, avistei nuvens de elefante, bicicletas de algodão, olhos de coruja, jacas pontudas, guerreiros de barbante, flautas carameliza- das, asas de unicórnio, mangas de confete num grande pomar.
Era um lugar povoado de vozes. Havia a voz do ar que envergava a goiabeira e as folhas da jabuticabeira quando esta nos presenteava com seus frutos, próximo da primavera. Vozes de gatos boêmios que amavam a madrugada, amavam outros gatos, amavam muros, latas de lixo e restos de alimentos, e com grande frequência, eram comparsas da confusão e da valentia. Vozes que deixavam o rádio de minha avó Sebastiana – sempre em cima do pequeno armário amarelo da lavanderia – e, como se tivessem fios invisíveis, espalhavam modas de viola, gentes do interior, notí- cias de longe e de perto e a Ave-Maria religiosamente glorificada às seis da tarde.
Falava-se muito no quintal da minha infância: aprendia-se receitas, desprendiam-se dores, pedia-se ajuda, libertavam-se gritos de mães e seus filhos, sabia-se da vida e intimidade dos outros, datas de aniversários, bodas de prata, ouro, a produção dos quitutes para a ceia de Natal, a visita de tios distantes, o nascimento de um rebento na família.
A jabuticabeira plantada nesse quintal tinha 30 anos quando nasci. Fez 40, 50, 60 aniversários e alimentou a todos de um negro-esperança-azeviche.
No meu quintal soaram tambores, cuícas, tamborins, tan-tans, embriões de gente. O miudinho de quem samba e reza debulhou folhas, cerziu coros impossíveis de se reproduzir.
Quintais são herança do tempo. Perfumado de cheiro-verde, toucinho, carnes, alho, cebola e laranja, o lugar da minha menina exalava feijão preto na panela de alumínio. Desde sempre, aqueles poucos metros foram canoa e atlântico flutuando outros terreiros igualmente grávidos de consoantes, cetins, chegadas, lábios e crochês. Nestes tempos, tenho aprendido que quintais podem ser cantorias, sacudimentos e caquinhos de aguar mundos.
(**) citação da canção “Coisa da Antiga” (Wilson Moreira e Nei Lopes)
*Fabiana Cozza é paulistana, cantora e jornalista. Graduou-se em comunicação social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e estudou canto popular, teoria musical e prática de conjunto na Universidade Livre de Música Tom Jobim (atual Emesp).
>>> O Quintal do Samba ocupa o Sesc Pompeia.
>>>>> Leia mais sobre os outros quintais do festival aqui.
A segunda edição do Festival Sesc Culturas Negras acontece de 10 a 15 de junho de 2025 nas unidades 14 Bis, Campo Limpo, Casa Verde, Consolação, Interlagos, Pompeia, Santana e Vila Mariana. Cada uma delas se transforma em quintal simbólico celebrando a potência criativa das culturas negras, onde acontecem apresentações, vivências e rodas de conversa em torno das memórias, corporeidades, ensinagens, festejos, ofícios e teatralidades.
Acesse o site sescsp.org.br/culturasnegras para conhecer a programação completa.
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