Ao questionar a imagem fantasiosa de um Brasil livre de racismos, sexismos e etnocentrismos, livro põe em xeque as estratégias persuasivas que sustentam o imaginário criado pelo turismo contemporâneo
Fruto da tese de doutorado do educador, filósofo e pesquisador Helio Hintze, Turismo legitimado: espetáculos e invisibilidades é um convite à reflexão crítica sobre a indústria do turismo inserida na ótica do capitalismo. A obra faz uma crítica contundente à atividade turística como mecanismo de produção de subjetividade do capitalismo, convida a refletir sobre a adoção de posturas baseadas na busca pela solidariedade e pela sustentabilidade e inclui capítulo que analisa o turismo frente à pandemia de Covid-19.
“A motivação para elaborar essa tese que agora chega ao mercado como um livro surgiu da observação de que o Brasil é um lugar que está sendo construído como um paraíso turístico, mas essa construção esconde muitas mazelas”, diz Hintze. “À época do meu estudo sobre o turismo, percebi que a bibliografia brasileira estava pouco preocupada em fazer uma crítica radical, pois a esmagadora maioria dos estudiosos entende que, ‘bem planejado, o turismo é a oitava maravilha do mundo’. Na verdade, a coisa não é bem assim. Aliás, a ideia de ‘se bem planejado’ é um discurso tipicamente neoliberal. Então, eu quis fazer uma contribuição crítica radical. As pessoas têm medo da palavra radical e a confundem com extremista. Meu trabalho é radical, uma vez que busca as raízes, as origens e as fundações do turismo como máquina de produção de subjetividade capitalista”, explica.
Para Hintze, o tema da subjetividade capitalista que permeia sua obra pode ser facilmente exemplificado. “O turismo é uma indústria que movimenta bilhões de dólares ao redor do mundo. É uma atividade capitalista por excelência. E o que quer o capital? Produzir mais capital. Nessa lógica, tem no turismo a máquina perfeita para a produção de mais capital em razão de um aspecto importante do setor: a produção se dá ao mesmo tempo que o consumo. Diferentemente de um celular que ainda precisa demorar, por exemplo, seis meses para estragar ou ficar obsoleto quanto ao design, o consumo no turismo termina assim que o avião pousa, a diária do hotel vence, o pacote turístico acaba. Aí o cliente já está pronto para consumir de novo, mas se ele pode, é outra questão. Portanto, o caráter de consumo (e descarte) imediato do turismo é um grande atrativo para que o capital invista fortemente nele”, afirma. Mas, e a memória afetiva que não se apaga – esse bem imaterial –, decorrente de uma experiência de viagem? “Esse é o ponto em que se dá a subjetivação capitalista, com a mescla entre a produção de lembranças afetivas (válidas, bonitas e necessárias), porém resultantes de um ato de consumo fortemente subjetivador. Dessa forma, quanto mais profunda e afetiva for a memória, tão mais fundo terá ido o capital”, pondera.
Vista do Rio de Janeiro, um dos destinos turísticos mais procurados do Brasil. Foto: divulgação – Pxhere
Além disso, diz o autor: “Tudo o que o turismo-capital toca torna-se atrativo-mercadoria. Até mesmo os turistas, que são estimulados a acreditar que são consumidores de um outro tipo (consumidores não consumistas). Nesse prisma, produz-se a figura de turistas e servidores /comunidade local tocados em seu mais íntimo pelo capital e os contatos com as pessoas tornam-se hierarquizados (consumidores superiores e consumidos inferiores). Em outras palavras, é o comportamento capitalista aplicado às suas próprias vivências. O turista faz contato com os locais? Sim, mas na forma de servidores ou de atrativos turísticos (se forem atrativos europeus, são os que devem ser vistos; se são países pobres, se as pessoas são negras ou periféricas, são os exóticos a serem contemplados pelos consumidores (brancos, centrais, cristãos, de bem, bem-sucedidos e homens – em geral, heterossexuais)”, avalia.
Quanto à espetacularização do turismo por meio da reafirmação de clichês, Flávia Roberta Cortez Lombardo Costa, mestre em Ciências da Comunicação – Turismo pela Escola de Comunicações e Artes da USP, e coordenadora de Turismo Social do Sesc SP, afirma na orelha do livro: “Nesta obra fica evidente que essa espetacularização torna invisíveis as graves adversidades que as dinâmicas do mercado impõem, como a fabricação e a manutenção de desigualdades sociais, a conversão de pessoas, culturas e ambientes em recursos a serem explorados pelo capital, além da descartabilidade de destinos turísticos nos quais estas e outras malversações já se impuseram. Quanto mais se espetaculariza o turismo, mais os problemas na atividade são tornados invisíveis, como lutas de poder, racismo e sexismo”, avalia.
Toda a reflexão de Hintze tem por proposta, segundo ele, estimular o olhar crítico de todos os que se interessam pelo turismo, que, para ele, não é apenas desejo, sonho, entretenimento, lazer ou fonte de emprego. “Mais do que isso, é partícipe da grande estrutura capitalista, que tem como fim inequívoco o lucro, que produz e reproduz relações de poder em diversos níveis e influencia a vida de milhões de pessoas, alterando seus ambientes naturais e construídos, servindo-se das mais diversas culturas para transformá-las em produtos turísticos”, analisa.
Elitista e discriminatório: os riscos do turismo na pós-pandemia. Foto: divulgação – Pxhere
“Qual será o futuro do turismo no pós-pandemia da Covid-19?”. A resposta desta pergunta, feita pelo autor no título do posfácio, não é conclusiva, mas parece bastante previsível. No mundo em que o turismo opera como máquina de produção e reprodução de subjetividade capitalista – como Hintze tenta mostrar ao longo do livro – somente uma pequena parcela da população continuará desfrutando de viagens inesquecíveis, enquanto a maior parte das pessoas ficará de fora da tão aguardada ‘retomada’ do turismo. Hintze é temeroso em sua conclusão: o turismo pode “se tornar ainda mais elitista e discriminatório”.
Com Turismo legitimado, Helio Hintze busca apresentar ideias sobre caminhos possíveis (na pesquisa, no estudo, no ensino, no planejamento e na vivência/fruição do turismo) que levem a novas posturas. “Precisamos de mudanças em todos os níveis e sabemos que o grande capital [Conselho Mundial de Viagens e Turismo (WTTC) e Organização Mundial de Turismo das Nações Unidas (OMT)] não vai abrir mão da grandiosa indústria do turismo e dos ‘benefícios’ que eles tanto alegam que a atividade gera. No aspecto mais pontual, acredito na formação de pessoas, no planejamento de atividades turísticas que possam gerar encontros não hierarquizados (em que o turista é enganosamente colocado na posição de sujeito, consumidor, cliente e, para alguns mais empolgados, de rei) e as pessoas (trabalhadores e moradores locais) não sejam observadas como mercadorias. É isso que tem que mudar. Precisamos produzir encontros que sejam baseados na busca pela solidariedade e pela sustentabilidade como horizonte de possibilidades”.
:: Trecho do livro
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