Fernando Guifer fala sobre a experiência de ser pai da Laís, que tem paralisia cerebral

01/02/2022

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Fernando e Laís | Foto: acervo pessoal

Fernando Guifer tem 35 anos e é pai da Laís de 7, que tem paralisia cerebral. É jornalista, autor de três livros e fundador do podcast Paternidade.doc.

Aos 24 anos, o sonho de Fernando era ser pai. Mas a companheira havia tido trombose depois da primeira gestação e, como os dois sabiam que engravidar geraria um novo risco, o assunto foi descartado pelo casal. “A minha vontade de ficar com a Fabi era muito maior do que a de ter um filho”.

Quando fizeram o teste de gravidez e deu positivo, a mãe chorou muito. Havia medo da condição física para levar a gestação até o fim. Fernando conta que começou a pesquisar na internet sobre trombose, trombofilia, embolia pulmonar e relata ter vivido um paradoxo de sentimentos. “Eu estava muito feliz por ser pai, mas ao mesmo tempo muito apreensivo pela saúde da minha mulher, que era quem eu mais amava e que era, sem dúvida, a minha prioridade naquele momento”. Ora estava pesquisando nomes para a filha, ora estava pesquisando tratamentos de saúde para a esposa.

Na sequência da consulta com o ginecologista, foram ao médico vascular, que pediu diversos exames. Os resultados foram bons naquele momento e a gravidez correu muito bem até o sexto mês, quando o inchaço e as dores nas pernas apareceram. “Era noite de Natal e ela começou a passar muito mal, teve falta de ar e uma sensação enorme de cansaço. No dia seguinte, foram ao hospital e o médico disse que era uma situação comum para uma gestante”. Voltaram para casa e Fabiana continuou com o inchaço e muitas dores durante os dias seguintes. Antes do réveillon foi internada na UTI por conta de uma trombose no pulmão. Dia 4 de janeiro, o médico anunciou a urgência do parto e no dia seguinte Laís nasceu. “Foram a noite e o dia mais longos da minha vida, fui dormir tendo minha esposa e minha filha, mas sabendo que no dia seguinte poderia acordar sem nenhuma delas”.

Fernando recorda que foi para o hospital bem cedinho e quando chegou na UTI neonatal se deparou com uma fila enorme de pais que viviam o que seria sua realidade pelos próximos 80 dias.

Precariedade de informações
Ao longo de todo período em que Laís ficou na UTI, Fernando pesquisou muito sobre bebês prematuros e relata que no hospital teve poucas informações da equipe médica e de enfermagem. Segundo o pai, as informações que vinham do hospital eram genéricas e se limitavam a riscos de não sobrevivência. O maior respaldo que teve foi da ONG Prematuridade.com. “Através desse canal pude saber sobre as complicações que cada criança prematura pode ter, de acordo com a semana gestacional em que ela nasce”.

Complicações
No quinto dia de vida da Laís, houve complicações na UTI neonatal. Ela teve hemorragia intracraniana grau 3, que é uma espécie de AVC. Na mesma noite, hemorragia pulmonar e convulsão. A única explicação que os pais tiveram veio da médica, de que era comum acontecer com prematuro extremo.

Idade corrigida e idade cronológica
Ainda no hospital, a equipe médica orientou sobre o “atraso” no desenvolvimento que Laís poderia vir a ter, mas que não passaria de 3 meses, relacionado ao tempo gestacional reduzido, e que aos 2 anos de idade a diferença entre ela e outras crianças desapareceria. Mas não foi o que aconteceu. Após a alta da mãe e da filha, conforme o tempo passava, ficava mais nítido o fato de ela não acompanhar o desenvolvimento esperado para a idade. Na UTI neonatal, os pais são alertados sobre os riscos que a criança prematura pode apresentar, mas, para Fernando, ao dar alta para o bebê, a equipe médica deveria ter uma prática mais incisiva nas orientações sobre o que pode acontecer, a quais fatores os pais devem ficar atentos e para quais especialistas aquela família deverá recorrer.

Os sinais que vêm dos movimentos
O AVC que Laís teve nos primeiros dias de UTI atingiu o lado esquerdo do cérebro, portanto, o comprometimento físico dela se dá no lado direito. Os pais começaram a perceber que o braço direito ficava o tempo todo para cima, enquanto o esquerdo tinha movimentos livres. Quando começou a se equilibrar verticalmente, o pé direito também apresentou um detalhe que chamou atenção: a marcha de bailarina, que é quando a pessoa apoia no chão só a ponta do pé ao andar.

Diagnóstico em processo
A deficiência de Laís vem sendo descoberta aos poucos. Até o primeiro ano de vida, não era claro que ela tivesse alguma característica neurodiversa. Conforme o tempo foi passando, percebeu-se também a questão da fala. Fernando diz que Laís sempre se comunicou, pois a ensinaram a demonstrar necessidades básicas como fome, vontade de ir ao banheiro, dor. Aos 5 anos, ela começou a falar algumas palavras e a criar seu próprio dialeto. A mãe levantou mais rapidamente a questão da neurodiversidade, porque já havia tido a experiência de acompanhar o desenvolvimento neurotípico do filho mais velho, Eduardo, hoje com 19 anos de idade. Além da paralisia cerebral, Laís também tem epilepsia, e os dois diagnósticos foram fechados ao mesmo tempo, também aos 5 anos, depois de sua primeira crise epiléptica. Até então, as pessoas perguntavam o que ela tinha e os pais não sabiam responder. A partir dali, perceberam que não daria para prever o que viria pela frente, que, conforme os sintomas fossem aparecendo, buscariam respostas e os diagnósticos também surgiriam. “Estamos investigando o autismo também, até os 10 anos manteremos a psicoterapia para que o comportamento dela continue sendo observado. Por se tratar de uma hipótese que depende de interpretação, não tem como fazer um teste e fechar o diagnóstico, só com o tempo é que saberemos”.

Epilepsia
O único medicamento que toma é um anticonvulsivante para evitar novas crises de epilepsia. Fernando conta que o primeiro episódio que Laís viveu foi na forma de crise de ausência. “Nós já estávamos deitados na cama para dormir quando percebi Laís com os olhos abertos e vidrados, emitindo sons que pareciam gemidinhos fraquinhos. Quando acendi a luz, vi minha filha com a boca espumando. E eu não sabia que aquilo era uma convulsão”. Depois desse dia, a família foi fazer um curso de primeiros socorros e orientou familiares, escola, amigos, todas as pessoas do convívio. “Passei um ano sem dormir. Todos os barulhos da casa, da rua ou de algum vizinho, me faziam acordar preocupado com a minha filha”.

Atenção ao desenvolvimento e às redes de cuidado
“Não vire as costas para qualquer sinal de deficiência e para sinais diferentes ou situação atípica que seu filho possa apresentar, porque isso pode custar muito caro lá na frente. Quanto mais precoce o diagnóstico chegar e o tratamento correto for iniciado, maior a chance de um melhor desenvolvimento”, conta Fernando, e explica que isso se deve à neuroplasticidade do cérebro, que é a capacidade de regeneração cerebral da criança. “Muitas vezes o pai, para não confessar que o filho tem deficiência e evitar o próprio sofrimento, acaba sendo omisso ao invés de evitar um sofrimento permanente do filho na fase adulta”.

No momento em que Laís teve alta hospitalar e pode ir para casa, Fernando e a esposa acordaram entre si que iriam em busca de ajuda e tratamento caso houvesse qualquer sinal de que algo não estava bem. E se chegasse o diagnóstico de alguma deficiência, sabiam que ia doer muito, mas que preferiam sentir essa dor agora para aliviar o sofrimento da filha mais tarde. “Se eu fingir que não está acontecendo nada e tapar o sol com a peneira, quando ela for adulta e precisar muito de mim, talvez eu não esteja mais aqui para dar esse suporte. É preciso trabalhar muito agora para que no futuro ela possa ter sua autonomia e ser uma pessoa independente, que tenha capacidade de se cuidar e dar conta das atividades no dia a dia”.

Dependendo do grau da deficiência, não existem sinais na criança. “Mas quando passa a ser nítido, os pais devem correr atrás de um tratamento interdisciplinar”. Ele conta que é comum os pais perceberem traços de paralisia cerebral no filho e acharem que ter um bom psicólogo basta. Além da psicoterapia, o tratamento se estende ao trabalho de terapia ocupacional, de fonoaudiologia e de fisioterapia, além do acompanhamento constante com médicos especialistas.

Quem disse que é fácil? 
“Um dos grandes problemas é a romantização de situações que são muito duras. O fato de amarmos a nossa filha, por exemplo, não quer dizer que a nossa vida seja um mar de rosas. É claro que amamos a Laís, mas a rotina de ter que cuidar de uma criança com deficiência é exaustiva e muito dolorida. Se você tem uma criança com deficiência em casa, a aprendizagem e a compreensão sobre as coisas que ela tem é diferente. Se uma criança neurotípica precisa de ajuda para fazer a lição de casa, o pai vai gastar vinte minutos na atividade. Se é uma criança com paralisia cerebral, o pai pode levar seis horas na função e ao final não ter conseguido terminar. Isso é exaustivo e não tem relação com falta de amor, tem relação com realidade”.

Fernando exemplifica que, além do desgaste dos tratamentos médicos da Laís, ainda tem a sobrecarga emocional que vem do olhar da sociedade para a pessoa com deficiência. “Laís é uma criança doce, cumprimenta todo mundo, se interessa pelas pessoas. Se ela vê o gari na rua, já quer abraçar. Quando vê uma criança, ela corre para perto e inúmeras vezes as mães afastam os filhos, como se fossem ‘protegê-los’ de alguma doença contagiosa transmitida pela minha filha.”

Sentimento de luto
Fernando e Fabiana nunca tiveram sentimento de frustração em relação à expectativa de ter um filho sem deficiência, mas não julgam outros pais. “É legítimo o sentimento de tristeza de um pai que sempre sonhou brincar de cavalinho com o filho, tendo uma criança com paralisia cerebral severa, por exemplo, que não pode sair da cadeira de rodas e só mexe os olhos”. Laís brinca, sorri, interage bem, a comunicação funciona. Para a família, o mais difícil foi a aceitação de que não seria fácil e principalmente ter que lidar com o medo do mundo. “Eu não tenho medo da deficiência, eu tenho medo das pessoas. A deficiência a gente consegue tratar e conviver, mas a sociedade não é acolhedora e nem aceita os diferentes com respeito e integridade que merecem. A sociedade é deficiente de compaixão, de alteridade, de amor, de altruísmo, de empatia. Eu conheço uma lista de pessoas sem deficiência que é muito mais deficiente que a minha filha. As pessoas não se permitem olhar o outro de forma amorosa, é sempre a partir da concorrência, do pré-julgamento, da desconfiança e da reprovação”.

A empatia é a única coisa que pode mudar o mundo
O mundo não foi feito para o deficiente e em 2021 continua não sendo. Empresas que não têm rampas, que dão palestras sem incluir intérpretes de Libras, que não tornam seus conteúdos e espaços acessíveis para todos. “Pessoas sem deficiência também têm que lutar para que esses espaços existam, porque muitas pessoas com deficiência não têm condições físicas ou intelectuais para brigarem pelos seus direitos ou pela discussão de projetos de leis que garantam o mínimo de respeito que a sociedade lhes deve”. As pessoas com deficiência querem o que todos já têm. Vias públicas acessíveis, o direito de atuar em todas as áreas, ter os salários equiparados e tratamento de saúde adequado às necessidades de cada grau de comprometimento.

SUS
O CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), que é o órgão que presta serviço público por meio do SUS (Sistema Único de Saúde) de forma completamente gratuita, tem um papel importante na questão dos cuidados às pessoas com deficiência. Existe um trabalho coletivo e integrado entre vários especialistas e profissionais. “O único problema é que deveria ter um CAPS a cada esquina para suprir a alta demanda. Depois da primeira marcação de consulta no posto de saúde, a pessoa tem que esperar muito tempo para ser chamada e ter o tratamento iniciado. E, principalmente no caso das crianças, é fundamental tratar o quanto antes por conta da neuroplasticidade, que possibilita a diminuição da gravidade da deficiência”.

Políticas Públicas
Na opinião do pai, devia haver investimento em campanhas de conscientização para o acolhimento. Quanto mais informação, mais as pessoas vão ter um olhar de cuidado e menos vão segregar, fazer bullying e agir com preconceito. Toda criança merece e precisa de condições igualitárias para se desenvolver.

Escola
Laís está no segundo ano do ensino fundamental a contragosto dos pais, que pediram para que a escola a retivesse no primeiro ano, por conta das aulas terem sido totalmente on-line. “Se nesse tempo de pandemia é difícil para as crianças sem deficiência absorver os conteúdos dados virtualmente, imagina como é para uma criança que tem essas dificuldades e mais outras tantas. Não pode existir regra de o que vale para um vale para todos. Minha filha não está incluída no padrão de aprendizagem das crianças da idade dela, mas o MEC atual não reconhece isso e não possibilita que a escola permita que Laís reveja o mesmo conteúdo por mais um ano”.

Convívio com outras crianças
Na escola, as professoras contribuem para que não façam diferenciação com Laís por ter deficiência, mas para o pai as maiores responsáveis pela inclusão são as próprias crianças. “As pessoas vêm ao mundo com o ‘hd’ zerado, os pais e a sociedade que vão instalando os programas ou os vírus”.

O que é cuidar?
“Um abraço genuíno em meio aos perigos iminentes que a vida nos apresenta todos os dias. O abraço verdadeiro é uma forma de oferecer segurança, carinho, inclusão, tolerância, ombro. Cuidar é um ato de amor ao próximo, é acessível a todos e de graça”.

Afinal, qual cuidar é ideal?
Acompanhe nossos posts sobre neurodiversidade durante o mês de abril de 2021, aqui.


Entrevista por Tatit Brandão – formada em Jornalismo, tem licenciatura em Artes Visuais e pós-graduação em Arte na Educação. Ministra oficinas e cursos nas áreas de fotografia, trabalhos manuais, escrita criativa e narrativas audiovisuais.

Veja mais sobre o assunto aqui.

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