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A escuta na era digital


Ilustração: Marcos Garuti

 

Não é fácil entender as mudanças que a música sofreu desde os anos 2000, com o Napster e toda a cultura da internet. O século 21 tem corrido rápido, e qualquer tentativa de apreendê--lo carrega o risco de soar datada. Eu me arrisco aqui em alguns palpites.

O que exatamente mudou? É comum ouvirmos que a mudança se deu na troca do suporte CD para o MP3 e na disseminação da pirataria, mas tendo a discordar dessa visão. Trocas de suporte são parte indissociável da história da indústria fonográfica. E é só no entendimento da pirataria como uma forma de compartilhamento de gostos e hábitos que nos aproximamos da verdadeira revolução, que, apesar de desencadeada pela tecnologia, sempre foi muito mais comportamental.


Hoje, quando a pirataria parece finalmente estar diminuindo, é possível enxergar essas mudanças comportamentais claramente: o que mudou na verdade foi a maneira como nos relacionamos com a música, ou, ainda, mudou o papel da música nas novas relações sociais.

Na época em que mais se ouve música na história da humanidade, pesquisas indicam que a escuta segue novos caminhos, pautada pelas novas formas de interação social. Via celular pela manhã e no final da tarde, sendo substituído pelo desktop no horário comercial. Isso sugere que as pessoas passam os dias, seja nos deslocamentos, seja nas atividades diárias, ouvindo música. A música funciona como trilha sonora, pano de fundo para as atividades individuais. Sendo trilha sonora, o conceito de álbum perde o sentido. O que se ouve são faixas, em uma sequência criada por você, por um desconhecido ou mesmo pelo serviço de streaming, dispostas em playlists.

Mas, se a escuta é individual, virtualmente ela é coletiva, e por isso a música ainda cumpre uma função social importante. É por meio da música que as pessoas demonstram seu estado de espírito e as playlists acabam sendo a forma de expressão para isso. Com nomes como Melancolia, Good Vibes e Felling Good, fazem sucesso e são seguidas por milhares de ouvidos, alcançando mais sucesso do que muitos artistas. Vem daí também a tendência de compartilhar via redes sociais o que você está ouvindo naquele momento. Também é pelas redes sociais, muito mais do que pelo palco ou disco, que se estabelece a relação artista/fã. Para utilizar uma palavra atual, o artista precisa “engajar” os fãs com notícias, fotos e vídeos de seu dia a dia. Por mais paradoxal que pareça, o músico precisa expor sua persona privada para reforçar o sucesso de sua persona artística.

Por fim, talvez pela volatilidade das relações sociais mediadas pela rede, que acabam pautando a escuta musical, apesar de haver muito espaço para o novo, ele quase nunca perdura. Daí a predominância do pop, gênero efêmero por excelência, sobre os outros, e a permanência de nomes de clássicos, como Beatles, Michael Jackson, Nina Simone ou Metallica na lista dos artistas mais tocados via streaming em pleno 2017.

Porém, esse é apenas um lado da moeda. Como explicar então a volta do vinil, com um crescimento nas vendas de 191% em 10 anos. Novamente essa é uma mudança comportamental. Descontentes com os rumos da escuta, uma parte considerável de pessoas encontra no vinil uma forma de distinção, e a adoção da prática de ouvir um disco inteiro adquire contornos de resistência cultural. Além, é claro, da sensação de pertencimento a um grupo social específico.

Assim, qual será, então, o futuro da nossa relação com a música? Difícil afirmar, já que essas mudanças – além de dizerem respeito a uma parcela restrita da população mundial, com acesso a computadores e banda larga – são frutos de tendências criadas com base nas novas formas de interação social. Talvez a criação ou a expansão de alguns nichos, como a volta da fita K7 (sim, é sério!), sejam de fato uma nova realidade, principalmente como formas de sociabilização e pertencimento. Em uma sociedade dinâmica e em constante movimento, novas formas de sociabilidade serão construídas e, com elas, novas formas de nos relacionarmos com a música.
 

Wagner Palazzi é graduado em Relações Públicas e coordenador do Selo Sesc.