Sesc SP

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Aos Leitores

Apresentação
Danilo Santos de Miranda


“Onde há destroços, vemos o brilho da purpurina”
Claudia Wonder

“Onde restou o homem sobreviveu semente, sonho a engravidar o tempo”.
Mia Couto

Poetas narram histórias e testemunham o que muitas vezes não encontrou caminho pelos discursos oficiais, acadêmicos ou institucionais. Se Mia Couto evoca esperança num período pós-guerras em Moçambique, a
artista Claudia Wonder aponta para uma resistência ativa e purpurinada frente às brutalidades cotidianas que vivem homens e mulheres transexuais e travestis, estas envolvendo estigmatização, discriminação, exclusão, violência e até morte.

Michael Pollak, ao apontar para os ditos e não ditos no campo da memória e da coletividade, lança olhar para as disputas neste campo, sendo ponto primordial para compreender as implicações do presente na
narrativa do passado. Se toda memória pressupõe um esquecimento, decerto que é necessário nos questionarmos por onde emudecem nossas histórias, ultrapassando perspectivas coloniais unilaterais e prezando pela
diversidade de vozes subalternizadas ou mesmo apagadas.

Como reflete o historiador austríaco, são “memórias subterrâneas que prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio”:
O problema que se coloca a longo prazo para as memórias clandestinas e inaudíveis é o de sua transmissão intacta até o dia em que elas possam aproveitar uma ocasião para invadir o espaço público e passar do “não-dito” à contestação e à reivindicação (...). (POLLAK, 1984)

Diante de um cenário em que noções como a de pós-verdade vem ganhando espaço e revelando indiferença frente a fatos históricos, em contraponto à valorização de crenças pessoais, coloca-se como ponto fundamental repensar o papel e a importância da memória no espectro mais amplo da vida social, uma vez que o deslocamento dos seus fundamentos pode apagar histórias, silenciar sujeitos e produzir injustiças.

Deste modo, torna-se imprescindível refletir sobre o significado político e histórico da memória como instrumento para a compreensão das múltiplas narrativas em disputa e das relações de poder projetadas sobre aquelas, que podem cindir ou difundir horizontes. Assim, é também indispensável a consolidação de reflexões que tornem visível o que fora silenciado, reprimido ou oprimido, e que estimulem o reconhecimento de referências plurais e inclusivas capazes de contribuir com as propostas conceituais de museus, assim como com a dinâmica de patrimônios e intervenções culturais nas cidades, a fim de ampliar o nosso olhar para o reconhecimento e a valorização da diversidade sociocultural existente.

A partir de um conjunto diverso de reflexões, o tema do dossiê deste número é Memória, Cidade e Museu: entre silêncios e mobilizações, no qual se alumbra a luta por existir na geografia das cidades. Onde estão as narrativas das minorias na geografia das cidades?

O semiólogo argentino Walter Mignolo - um dos protagonistas do pensamento decolonial - nos provoca sobre a necessidade de “re-surgir, de re-emergir, do re-existir de culturas e memórias desprestigiadas”4 na América Latina. Utilizando uma metáfora do sociólogo peruano, Anibal Quijano: se o “espelho” 5 pelo qual nos vemos é “distorcido”, como é possível construirmos imagens mais próprias, sem antes reconhecer a diversidade de narrativas presentes pelo espaço-tempo que chamamos Brasil?

Os artigos do dossiê se debruçam tanto sobre contextos em espaços museais, como sobre cidade como espaço de representação e disputas simbólicas no campo da memória.

Em “Itinerários para memórias da arte transformista paulistana”, Remom Bortolozzi aponta, para além do apagamento sistemático da memória LGBT, para o apagamento de travestis e transexuais no espaço público.
Propõe uma “historiografia das subalternas” e desenha uma cartografia pela cidade de São Paulo, em um movimento de re-existência desta memória para o tempo presente e para geração futura.

Em “Mobilizações da memória em lugares de morte em São Paulo: Flávio Sant’anna, Edson Neris e Andrea de Mayo”, Renato Cymbalista analisa o tema a partir de três casos, nos dois primeiros, parte do que é provavelmente o apagamento em seu grau mais violento, e no terceiro, do processo para reconhecimento de nome social pós-morte. O autor reflete deste modo sobre a potência desses lugares, seja no sentido de reparação histórica, seja como instrumento pedagógico para movimentos e sociedade em geral.

Em “O patrimônio contra a gentrificação: a experiência do Inventário Participativo de Referências Culturais no Minhocão”, Mariana Kimie e Simone Scifone chamam atenção para o uso do inventariado como instrumento de resistência frente a processos de expulsão dos mais pobres de áreas de interesse imobiliário na cidade. Narram um processo ainda em curso, no qual o processo educativo é central.

Em “Povos indígenas no Brasil, museus e memória: questões emergentes”, João Paulo Vieira e Eliete Pereira apontam para a crescente reivindicação dos museus como espaço de articulação política, afirmação étnica e visibilidade por povos indígenas, na qual protagonizam suas próprias narrativas sobre patrimônios, memórias e histórias, ultrapassando versões unificantes, universalizantes e subalternizadas oferecidas por instituições tradicionais.

Em “Museologia – substantivo feminino: reflexões sobre museologia e gênero no Brasil”, Ana Audebert e Marijara Souza realizam uma reflexão de gênero, tomando o termo como ponto de partida para não naturalizar uma lógica historicamente androcêntrica e, desse modo, possibilitar ações afirmativas.

Em “Museus, Memórias e Culturas afro-brasileiras”, Marcelo Bernardo da Cunha apresenta reflexões e questões relativas às presenças e ausências da memória africana e afro-brasileira em espações museais e no patrimônio em geral.

Em “Museu do samba carioca: samba, gingado e movimento”, Mario Chagas e Rondelly Cavulla debruçam o olhar para o caminho que constituiu o Museu do Samba no Rio de Janeiro, revelando especialmente o exercício de novas imaginações museais, por Nilcemar Nogueira, neta de Dona Zica e Cartola.

Em “Memória e Esquecimento LGBT nos Museus, Patrimônios e Espaços de Memória no Brasil”, Jean Baptista e Tony Boita realizam um mapeamento das ações relacionadas à memória de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais em espaços patrimoniais e de memória no Brasil, apontando para os mesmos como instrumentos estratégicos de afirmação e resistência e convidando a produções nesse sentido.

Na seção Gestão Cultural são apresentados quatro artigos inéditos produzidos por ex-alunos do Curso Sesc de Gestão Cultural, cujos temas referem-se respectivamente: ao processo de formação e aperfeiçoamento profissional do campo museal em Santa Catarina; às práticas de gestão, acesso e direitos culturais a partir da experiência do Centro Cultural da Juventude, na zona norte de São Paulo; às ações e projetos desenvolvidos pelo Museu Paulista durante o fechamento para obras; e, por fim, à reflexão de inspiração etnográfica sobre as diferentes formas de apropriações do espaço do Sesc Itaquera por praticantes de voleibol e futsal.

O arquiteto Fernando Atique apresenta a resenha do livro Economia do Patrimônio Cultural, de Françoise Benhamou (Edições Sesc, 2016), que analisa a economia do patrimônio cultural e reflete sobre os processos de mercantilização e consumo no campo da cultura.

A artista visual, pesquisadora e educadora Rosana Paulino é a entrevistada desta edição da revista e compartilha a sua visão sobre questões relacionadas à sua trajetória no campo da arte brasileira, além de comentar
as referências estéticas e políticas que moldaram a definição da forma e concepção de suas obras. Angélica Freitas contribui com o poema Mulher Casa, com ilustração da artista plástica Karine Guerra.

A reflexão sobre a questão do patrimônio se encerra com as imagens produzidas pelo fotógrafo Fábio H. Mendes, que documentou a visita dos alunos à Vila Itororó durante o curso “Bixiga: história, memória e desafios de um bairro paulistano”, realizado em maio de 2015 no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo.

Que as palavras de Mia Couto, que vislumbram esperança fertilizada no tempo, junto à poética que incita à resistência como forma de sobrevivência, proferida por Claudia Wonder, sigam instigando o florescimento de um engajamento a um só tempo poético, sensível e político – cada vez mais necessário e urgente no campo da cultura.