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Entrevista com Francesco Tonnuci

Foto: Arquivo pessoal
Foto: Arquivo pessoal

"O elemento que considero mais importante e que sempre recomendo aos pais é a autonomia das crianças na sua experiência lúdica... Você não pode crescer sem brincar."

 

Psicopedagogo, desenhista sob o pseudônimo de Frato, criador do projeto A Cidade das Crianças, o pensador italiano Francesco Tonnuci é uma referência na área da educação e na formação de professores. Entre suas publicações estão os livros Com os olhos de um avô, Quando as crianças dizem: Basta!, Com os olhos de uma garota e Frato: 40 anos com os olhos de uma criança.

 

Mais 60 Começamos a entrevista pedindo à pessoa para falar um pouco sobre sua história de vida, suas origens, cidade em que nasceu...

Francesco Nasci em Fano, uma cidade às margens do Mar Adriático, em 5 de julho de 1940, 25 dias após a entrada da Itália na Segunda Guerra Mundial. Nasci em uma família humilde, meu pai era enfermeiro, o segundo de quatro irmãos, e minha mãe ficava em casa. A cidade de Fano, de origem romana e com monumentos antigos, possui duas almas que a dividem cultural e economicamente. Por um lado, olha para o mar, dedica-se à pesca e ao comércio de peixe, a outra metade olha para o campo e dedica-se ao cultivo e especialmente à horticultura. As duas partes da cidade também falam dois dialetos diferentes. As duas famílias de minha origem, a paterna e a materna, eram da cultura vegetal: minhas avós iam à praça vender as verduras que suas roças produziam.

Como foi a sua infância?

Minha primeira recordação de criança, quando tinha três anos, é o bombardeio da minha cidade. Lembro-me disso como um espetáculo pirotécnico, com as chamas que iluminavam a noite e as bombas que explodiam. Lembro-me da noite passada no abrigo como um acontecimento extraordinário. Lembro-me bem de alguns episódios da guerra e do pós-guerra. Minha cidade cheia de escombros, sem pontes e campanários. Lembro-me pouco da minha escola, uma experiência pouco significativa e certamente não amada. Ao contrário, foi muito forte a experiência do brincar, que mudava dependendo dos lugares, das condições climáticas, dos materiais utilizados. Quase sempre fora de casa, sem supervisão direta de um adulto. Não havia brinquedos e era nosso trabalho construi-los usando principalmente materiais naturais como junco, bolota (sementes ou frutos secos), argila, caixas. Mas também o papel que, com a tesoura, se transformou em personagens de histórias de ficção.

Você pode nos contar como foi a convivência com a sua família? Com base nessas experiências, o que você diria a cuidadores de crianças atualmente? E a cuidadores de idosos?

O elemento que considero mais importante e que sempre recomendo aos pais hoje é a autonomia das crianças, principalmente na sua experiência lúdica fundamental. Você não pode crescer sem brincar. Não tenho dúvidas de que a experiência de brincar é a mais importante de todas na vida de uma pessoa, muito mais do que a escola. Mas você não pode brincar acompanhado e supervisionado. Brincar é assunto de crianças e os adultos precisam dar um passo atrás e "deixá-las". Se a criança puder viver livremente suas experiências lúdicas, vivenciando a prova, o obstáculo, o risco e desenvolver as estratégias necessárias e úteis para superá- -lo, poderá enfrentar com menos problemas os complicados períodos da adolescência e juventude. Eu recomendo isso para os pais, mas também para os avós, que certamente viveram esta liberdade e devem defendê-la para seus netos.

Como você descobriu sua atração pelo desenho e, especialmente, como percebeu que os desenhos poderiam apresentar/comunicar seu pensamento como educador?

A pergunta é composta duas partes que devem ter duas respostas. Eu nunca descobri a minha atração, talvez seja mais apropriado chamá-la de uma vocação para a arte, o desenho, a pintura, porque eu sempre a tive comigo. Eu desenhei bem antes de aprender a escrever, desenhei por toda a minha vida e continuo a fazê-lo, infelizmente menos do que gostaria. A utilização do desenho para comunicar o meu pensamento, através das minhas charges e personagens, nasceu mais tarde, em 1968, na procura de um canal de comunicação mais direto e eficaz com o mundo da educação e da escola.

Com o heterônimo de Frato você elaborou vários desenhos, vinhetas, charges e tiras cômicas para abordar contextos escolares e estruturas familiares, aproximando-se sempre da perspectiva do olhar das crianças. Para você, quais são os principais assuntos presentes nessa produção?

Desde o início, o objetivo desses meus desenhos era "dar a palavra" às crianças. Não é fácil dar a palavra com um desenho, mas o objetivo dessas charges é explicitar o que as crianças pensam e não podem dizer para não criar problemas com os adultos, cujo apoio e carinho elas precisam. Eles tentam criar um "efeito de espelho", confrontando-nos com nossas contradições. Uma charge evidencia o comportamento incorreto e impróprio de uma menina ou de um menino contra o que se espera em casa ou na escola, e provoca um sorriso ou uma risada no leitor. Mas, logo percebemos que estamos rindo de nós mesmos, porque às vezes também temos esses comportamentos e isso pode ter um valor catártico e educacional. É interessante notar que, mais do que textos escritos, os desenhos suscitam fortes reações, recusas ofendidas ou acolhimento até a comoção. Nunca recebi censura em meus textos, mas várias vezes em minhas charges.

Quando você se deparou com a importância da escuta das crianças? Foi no curso de pedagogia? Foi durante suas pesquisas na área da educação? Como foi esse encantamento?

Não, meus estudos, tanto quando criança quanto na universidade, tiveram pouco impacto em minhas escolhas de carreira. A única influência importante que reconheço em minha formação universitária na Universidade Católica do Sagrado Coração de Milão é uma forte formação filosófica que, acredito, sempre foi muito importante em minhas escolhas e em minhas opiniões. A importância de ouvir as crianças foi uma escolha radical desde o início da minha experiência profissional, e talvez até antes, desde minha experiência como pai. No meu último livro Perché l´infanzia? [Por que a infância?] conto que quando meu primeiro filho tinha três anos o ouvi dizer hoscoprito (nota: cojugação correta para ho scoperto). Refletindo sobre esse estranho engano, percebi que mesmo ele sendo tão jovem sabia conjugar verbos e, a partir daí, percebi como o ensino de leitura e escrita aos seis anos era um erro.

Conte para os leitores da Mais 60 sobre o livro A Cidade das Crianças.

Em suma, posso dizer que este livro apresenta a filosofia e as propostas de um projeto denominado A Cidade das Crianças, um projeto político que visa mudar as cidades, tendo meninos e meninas como parâmetros de mudança. A ideia básica é que se uma cidade é adequada para crianças, será melhor para todos e, se não for adequada para crianças, será injusta para a maioria de seus habitantes. Propõe principalmente três grandes ideias: a participação de crianças na prefeitura como consultores do prefeito; o direito das crianças de circularem com independência nos espaços públicos da cidade; e viverem, com essa autonomia, o seu direito de brincar onde, quando e com quem quiserem.

Como pedagogo de grande relevância, você critica a escola atual e propõe várias modificações tanto na escola como na sua forma de trabalhar. Quais são os principais desafios que se colocam para a escola que temos e aquela que queremos? Na sua opinião, quais são os principais papeis dos educadores na atualidade?

Não estou interessado em propor ou defender minha teoria pedagógica principalmente porque não a tenho, e as propostas que apresento derivam de exemplos de grandes mestres que tive a sorte de conhecer, e também porque a minha [teoria] sempre pode se opor a outras teorias ou outras propostas. Prefiro me referir ao direito internacional que vincula todos os nossos países: a Convenção sobre os Direitos da Criança. Por ser um tratado internacional, tem um valor jurídico superior ao da legislação ordinária, das reformas educacionais ou dos currículos escolares, e no Artigo 29 diz: “Os Estados-Partes concordam que a educação da criança deve ter como objetivo: promover o desenvolvimento da personalidade da criança, bem como o desenvolvimento das suas faculdades e das suas atitudes mentais e físicas, em todas as suas potencialidades”. Assim, a educação da família e da escola não deve ter como objetivo o cumprimento de objetivos pré-estabelecidos e com base nestes avaliar a promoção ou reprovação do aluno, mas a família e a escola devem ter dois objetivos fundamentais: o primeiro é ajudar a todos, as crianças, e os alunos a descobrirem as suas próprias aptidões, as suas vocações e, em segundo lugar, oferecer-lhes os instrumentos educativos adequados para desenvolver essas atitudes, repito, delas e não dos programas, em todas as suas potencialidades. Esta não é apenas a escola que a lei nos obriga a fazer, mas também aquela de que a nossa sociedade necessita e as nossas meninas e os nossos meninos precisam.

Por favor, fale mais sobre esse material Conojos de abuelo [Com olhos do avô]. Você é avô? Como é ser avô? Como é se ver nesse papel?

Eu sou avô há 31 anos. Tive três filhos, esperava ter o direito a nove netos, mas a vida me presenteou com dois, um de 31 anos e uma de 13 anos, mas estou feliz. Ser avô é um grande presente da vida. Deveria ser mais importante ser pai e ainda mais importante ser mãe, mas, quando assim nos tornarmos, somos jovens, cheios de preocupações, de objetivos a serem alcançados e corremos o risco de não desfrutar da extraordinária importância da chegada de uma nova vida. Mas nos tornamos avós quando envelhecemos, quando podemos desfrutar de todos os sabores da vida. E ser avô dá um novo sentido a tudo na vida, é como se tudo recomeçasse, pela terceira vez.

Como é envelhecer para você?

Até três anos atrás, envelhecer era uma experiência fascinante. Enquanto perdia várias habilidades físicas, minha sensibilidade e atenção às coisas importantes da vida aumentavam. Estávamos nos preparando, minha esposa e eu, para uma velhice tranquila. Então, de repente, ela me deixou e eu envelheci. Uma nova fase da minha vida começou, a da dor e da solidão. Acho que esse também é o motivo da minha hiperatividade nos últimos anos, para me sentir menos sozinho. Esse excesso de trabalho atingiu o pico nestes últimos meses de isolamento, durante os quais realizei dezenas de teleconferências, webinars [seminários online] e entrevistas, incluindo esta.