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Ética do cuidado

Fernando Rabelo
Fernando Rabelo

EM MEIO AOS DESAFIOS DE SOBREVIVÊNCIA EXPOSTOS PELA PANDEMIA, O FILÓSOFO ACREDITA NUMA SAÍDA PELO CAMINHO DA DEDICAÇÃO, DO AMOR E DA SOLIDARIEDADE

Aos 82 anos, dos quais dedicou a maior parte a uma visão crítica da realidade, como teólogo, filósofo, ecologista e escritor de mais de 100 livros, Leonardo Boff encontra forças para acreditar que, somada à ciência, a ferramenta de combate ao coronavírus está no cuidado (leia matéria Bem me Quero, na Revista E nº 291, janeiro de 2021). E, para além da vitória sobre a Covid-19, essa atenção especial, segundo Boff, ainda é essencial para uma nova forma de ser e de estar da humanidade no planeta. “O que conta não é o indivíduo, mas a interdependência de todos com todos. O que conta não é a concorrência, mas a colaboração. O que conta não é a exploração da natureza, mas o cuidado da natureza”, disse o autor de Covid-19: A Mãe Terra Contra-Ataca a Humanidade (Vozes, 2020), no Sesc Ideias Saber Cuidar: do Pensamento à Ação, durante a programação do Sesc Verão. Afinal, de que forma saber zelar por si e pelos outros se revela uma necessidade urgente no mundo? Quais impactos a falta de cuidado gera e como reverter essas consequências?

 

Seres interdependentes

Um dos temas fundamentais dessa pandemia é o tema do cuidado. Todos falam da ciência, da técnica, da busca desenfreada da vacina. Isso tudo é muito importante. Mas quase ninguém fala da natureza. Qual é o contexto do vírus? Não dá para pensar nesse vírus isolado nele mesmo. Ele tem um contexto, e ele veio como consequência da ação depredadora dos seres humanos sobre a natureza. O coronavírus quer significar uma lição para a Terra: ele caiu como um raio em cima do nosso modo de habitar o planeta, destruindo, desflorestando, fazendo com que os seres só tivessem valor na medida em que servissem a nós e aos valores básicos desse sistema, que é a cultura do capital, do lucro, da concorrência, do individualismo, da exploração suprema da natureza. O que conta não é o indivíduo, mas a interdependência de todos com todos. O que conta não é a concorrência, mas a colaboração. O que conta não é a exploração da natureza, mas o cuidado da natureza. Então, nós estamos vivendo e nos salvando por aqueles valores que estavam ausentes, ou apenas vividos de forma subjetiva e individual: estamos vendo que o que nos salva é o cuidado.

 

Sobre reciprocidade

O cuidado de uns para com os outros, o cuidado para si mesmo, porque se não cuidarmos somos ameaçados por esse vírus. Hoje, especialmente, o cuidado é fundamental para a questão de higiene, de saúde, e para o cuidado da Terra. Estamos percebendo que a falta de cuidado está levando à morte muitas pessoas. A falta de cuidado de jovens, que entendo estarem cansados do isolamento social, que saem às ruas, querem encontrar os amigos, mas estão sem máscara, não evitam aglomeração. Eles correm o risco de, por falta de cuidado, serem contaminados ou contaminarem. O cuidado é fundamental neste contexto e tem outro contexto que evoca o cuidado: a crise ecológica. Nós sabemos que a Terra está sob uma ameaça muito grande do aquecimento global, da exaustão dos seus bens não renováveis e do desequilíbrio especialmente dos climas que produzem os eventos extremos: grandes nevascas, inundações, terremotos, tsunamis, imensas secas.

A biodiversidade está sofrendo um dano fantástico porque, em função da agressividade dos seres humanos sobre a natureza, todo ano estão desaparecendo entre 70 mil e 100 mil seres vivos, depois de viverem milhões e milhões de anos sobre a Terra – por nossa culpa. Então, não temos tido cuidado com a natureza. Por isso, o Papa escreveu sobre o cuidado com a casa, com o mundo.

 

O CUIDADO É UMA URGÊNCIA HUMANITÁRIA E PLANETÁRIA

 

Essência humana

Há grandes filósofos, como Martin Heidegger (1889-1976), que disse que a essência do ser humano é o cuidado. Porque o cuidado é aquele conjunto de fatores que devem juntos se articular para que surja o ser humano. Se não houver essa combinação prévia, não aparece o ser humano. E os grandes cosmólogos, que estudam a história do universo, dizem que cuidado é uma constante cosmológica, uma lei universal, porque se as quatro energias básicas que fizeram o universo – a energia gravitacional, a eletromagnética, a nuclear fraca e a nuclear forte – não tivessem trabalhado de forma sutilmente cuidadosa, não haveria universo, e nós não estaríamos aqui para falar disso tudo. Então, o próprio universo se rege pelo cuidado para que todos os elementos se combinem, se equilibrem e para que ele continue se expandindo e as estrelas não caiam sobre nossas cabeças.

 

Cuidar de quem cuida

E quem cuida dos cuidadores? Porque todos nós somos frágeis, e quem está na linha de frente (profissionais da saúde) tem estafa, sofre de desânimo, e está cuidando. Há um grande psicanalista inglês que cuidava das crianças órfãs das bombas nazistas, Winnicott [Donald Woods Winnicott, 1896-1971]. Todos os professores da área de Pedagogia o conhecem porque a categoria principal de toda a psicologia dele é o cuidado: cuidar das crianças para que elas cresçam bem, se eduquem etc. E ele diz mais: todos nós somos filhos e filhas do cuidado. Todos os seres têm um órgão especializado que garante a sua subsistência, um patinho nasce e já sai nadando. O ser humano é um ser biologicamente deficiente, nós não temos nenhum órgão especializado. Se nossas mães não nos tivessem acolhido com infinito cuidado ou se nos tivessem abandonado no berço, em um ou dois dias teríamos morrido, porque não saberíamos como deixar o berço e procurar comida. Então, nós somos todos filhos e filhas do cuidado.

 

Estado de alerta

O que a gente constata é que mais ou menos tudo está descuidado. Basta andar pelas ruas do Centro da cidade [de São Paulo], há lixo para todo lado, povos que dormem na rua, famílias pedindo esmola. Nós nem cuidamos da própria natureza. Então, o que predomina é o descuido. Por isso há tanto sofrimento, há tantos sacrifícios de vidas humanas que não precisavam ser sacrificadas, e isso nos leva a dizer que o cuidado é uma urgência humanitária e planetária. Porque, perdendo o cuidado, nós perdemos a humanidade. Ficamos embrutecidos. Basta acompanhar as palavras que surgem nas redes sociais: como as pessoas ofendem os outros sem ter cuidado algum, sem se dar conta do sofrimento que produzem.

 

Amor e respeito

Precisamos do respeito, porque todas as coisas que existem têm um valor em si mesmas. Elas não existem porque se destinam para nós. Não, elas têm uma história muito mais velha que a nossa. Quando a Terra toda estava pronta, surgiu a espécie humana. A Terra não precisou da gente para criar sua imensa biodiversidade, criar todos os seres que compõem a comunidade de vida que convive conosco. Então, é preciso respeitar cada ser, porque eles são ancestrais, muito mais velhos que nós. Junto com isso, a amorosidade, essa capacidade de sair de si e se abrir ao outro, não se fechar, nunca rejeitar ninguém. O amor talvez seja uma das formas mais supremas do cuidar.

 

Pela educação

Devemos incorporar na educação o cuidado com todas as coisas, uma ética do cuidado. Uma dimensão espiritual da vida onde haja solidariedade, amor, onde as pessoas se tratem humanamente. Isso tem que entrar no processo educativo. A realidade exige que a gente enriqueça os processos educativos porque nós temos que aprender a ser cuidadosos, a ser mais solidários, mais cooperativos, mais amorosos, a ser menos excludentes. Somos diferentes, mas somos todos humanos. A educação é onde a gente cresce com esses valores. E devemos nos educar a vida inteira, mesmo no ato de morrer, estamos aprendendo.

 

Assista ao Sesc Ideias Saber Cuidar: do Pensamento à Ação, com Leonardo Boff e mediação de Mara Rita Oriolo, gerente adjunta do Sesc Guarulhos, em São Paulo, no canal do YouTube do Sesc São Paulo.

 

 

 

 

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