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A mata atlântica ainda pede socorro

Aprovação de lei favorece proteção, mas destruição não pára

NATÁLIA SUZUKI


Vista da serra entre Cunha (SP) e Parati (RJ) / Foto: Natália Suzuki

A primeira paisagem com a qual os portugueses se depararam ao avistar o litoral brasileiro foi uma densa floresta, cuja aparência não se assemelhava em nada com a daquelas que conheciam. Essa exuberante vegetação era uma pequena amostra da mata atlântica.

Àquela época, esse bioma se estendia por 1,3 milhão de km², o que equivale a 15% de todo o território brasileiro. Ainda hoje, sua ocorrência pode ser verificada em 17 estados, numa faixa territorial que se estende do Piauí ao Rio Grande do Sul e ultrapassa as terras brasileiras, chegando ao Paraguai e à Argentina. Em dezembro de 2006, um levantamento realizado pela Fundação SOS Mata Atlântica e pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostrou que a destruição da vegetação nativa ainda persiste. Entre os anos de 2000 e 2005, a área dessa mata diminuiu de 7% para 6,98% da cobertura original (restam apenas 90.740 km²). O decréscimo ocorrido nesse período pode parecer pequeno, mas, em números absolutos, a devastação totalizou 950 km². Em 1990, havia 8,8% de vegetação. O levantamento analisou a situação do bioma em oito estados: Goiás, Mato Grosso do Sul, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A extensão estudada é de 790 mil km², o que corresponde a 60% de toda a área original de mata atlântica brasileira.

Paraná e Santa Catarina foram os estados campeões da devastação nos últimos anos. Juntos, responderam por 77% do desmatamento. Nesses locais, a pressão se concentra principalmente na floresta de araucárias, devido à exploração da madeira.

Por outro lado, em São Paulo e no Rio de Janeiro, líderes tradicionais da devastação, houve diminuição. "As quedas se devem muito mais à falta do que desmatar do que à adoção de medidas de preservação. Sobraram remanescentes em áreas de difícil acesso, e por isso creio que não há uma contribuição ‘sincera’ de qualquer um dos estados", explica Flávio Ponzoni, coordenador técnico do estudo pelo Inpe. No caso do Rio de Janeiro, o pouco que restou da vegetação original se encontra em relevo bastante acidentado.

O Ministério do Meio Ambiente (MMA) chegou a divulgar um levantamento que apontou a ocorrência de 27% de remanescentes de mata atlântica no Brasil. De acordo com o próprio órgão, a escala e os critérios utilizados são diversos daqueles do levantamento feito pela Fundação SOS Mata Atlântica e pelo Inpe. O estudo do MMA inclui também, por exemplo, áreas de transição para outros tipos de floresta e de capoeiras na composição de seu mapa.

De qualquer modo, a situação atual não se deve apenas à extração predatória de madeira. Eventos que parecem distantes entre si formam uma conjuntura que teve e tem efeitos diretos sobre a mata atlântica.

Tanto a história da ocupação como a da economia, no Brasil, coincidem em muitos momentos com o processo de destruição desse bioma. A primeira atividade de exploração de recursos naturais foi a extração de pau-brasil, levado em grande quantidade para a Europa. O intenso desmatamento acabou fazendo essa espécie de árvore rarear em apenas algumas décadas.

O botânico e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Carlos Alfredo Joly explica que cada ciclo econômico do país foi responsável por um legado de degradação desse bioma. "A mata atlântica é a mais antiga de nossas florestas e a mais diversa em riqueza de espécies, mas foi também a que mais sofreu impactos. Depois do pau-brasil, veio a cana-de-açúcar, o ouro, o café e, finalmente, a expansão urbana e a formação de metrópoles."

Luta socioambiental

Há pouco mais de duas décadas, o movimento socioambientalista brasileiro passou a manifestar preocupação e a lutar pela preservação do pouco que restava da mata atlântica. Na época da Eco 92, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, o deputado federal Fábio Feldmann (então do PSDB-SP) apresentou o projeto de lei nº 3.285, voltado para a proteção do bioma. Somente 14 anos mais tarde, no entanto, em dezembro de 2006, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei, após muitas discussões, lobbies e pressão da sociedade civil e do movimento socioambiental.

"Foi preciso uma série de debates com deputados e senadores, além de encontros com os então presidentes Fernando Henrique Cardoso e Lula para que a sociedade conseguisse conscientizar os políticos da necessidade de aprovação da lei", recorda Miriam Prochnow, coordenadora da Rede de ONGs da Mata Atlântica (RMA).

Fábio Feldmann lembra que, após a Eco 92, "o projeto de lei ficou praticamente engavetado na Câmara dos Deputados por oito anos". Ele explica que, no governo de Fernando Henrique Cardoso, a discussão sobre a proposta foi paralisada devido ao jogo político. "A pressão do PFL [Partido da Frente Liberal] de Santa Catarina impediu qualquer avanço, porque a base do governo era formada por PSDB [Partido da Social Democracia Brasileira] e PFL."

Durante a tramitação do projeto no Congresso, a oposição foi feita principalmente pela bancada ruralista e pelo setor madeireiro. Mas Mario Mantovani, diretor da Fundação SOS Mata Atlântica, diz que a pressão vinha também de outros grupos, como o imobiliário e aqueles ligados à defesa dos moradores de áreas irregulares.

Já no governo Lula, havia um comprometimento do presidente com a aprovação da lei, segundo Feldmann. Em sua opinião, a presença de Marina Silva, como ministra do Meio Ambiente, e o clima político propício à discussão desse problema permitiram um desfecho favorável. Mantovani, por sua vez, acredita que todo esse empenho serviu não apenas para a aprovação da lei como também para impulsionar o movimento socioambiental no Brasil e torná-lo mais politizado.

"A mobilização das entidades, nesse período, fez com que cada estado regulamentasse e atualizasse o que era o bioma mata atlântica em seu território, além de conscientizar a sociedade. Criamos uma frente parlamentar, o que nos tornou mais presentes. Aprendemos como funciona o Congresso, que tipo de pressão se pode fazer, quem são as pessoas e onde estão os interesses. O campo experimental de tudo isso foi a Lei da Mata Atlântica", avalia Mantovani.

Ao longo de todo esse processo, alterações na própria lei também foram inevitáveis. Seus defensores consideram, no entanto, que as mudanças foram benéficas. "Esses 14 anos permitiram o aprimoramento da legislação, e pode-se dizer mesmo que ela melhorou. Nas negociações, tivemos de abrir mão de alguns itens, mas de maneira geral é uma boa lei, que incorpora a proteção dos ecossistemas associados", diz Feldmann.

"Cada lei da área ambiental – dos crimes ambientais, dos recursos hídricos, das unidades de conservação e da biodiversidade – promulgada depois de 1992 foi dando forma ao projeto", diz Mantovani. "Mesmo com a aprovação da Lei da Mata Atlântica, no entanto, o Congresso Nacional continua a dever instrumentos que regulamentem outros biomas. O poder público tem uma dívida muito grande com os patrimônios naturais do país", acrescenta Feldmann.

Definição e contribuições

Uma das mais destacadas contribuições que a lei traz é a clara definição do que é considerado mata atlântica, uma vez que ainda não havia uma formalização legal sobre o que seria o bioma. "Quando essa questão foi apresentada na Eco 92, o PFL queria que fosse incluída apenas a vegetação que recobria a serra do Mar. Por isso, a legislação é importante, já que garante a preservação da floresta, seja qual for o estado de conservação em que ela se encontre", diz Fábio Feldmann.

A ausência de especificação abria espaço para o desmatamento, porque não era claro nem para os infratores nem para o poder público o que deveria ser preservado e o que poderia ser explorado. "A definição é essencial, porque estados como Santa Catarina e Paraná teimavam que o bioma era dez vezes menor do que diz a lei. Agora fica reconhecida a importância dos vestígios vegetais em seus vários estágios", explica Wigold Schaffer, coordenador do Núcleo de Mata Atlântica do Ministério do Meio Ambiente.

Os especialistas afirmam que a lei é também um instrumento que esclarece como fazer intervenções de forma sustentável. "Há regulamentações de uso, com a finalidade de proteger o bioma, mas a lei não é proibitiva", explica Miriam Prochnow, da RMA. "A restrição maior é para a floresta primária, mas há exceções em casos de obras de utilidade pública sem alternativas locais", acrescenta.

Existem ainda especificidades legais, como a preocupação com o pequeno proprietário e o uso da floresta para meios de subsistência. A autorização de desenvolvimento de atividade científica e a permissão para alguns loteamentos são outros itens previstos.

A lei institui também um fundo financeiro, com recursos provenientes da União e de doações, destinado a dar suporte a projetos de preservação ambiental e de pesquisa científica. Há propostas ainda de utilizar essas verbas para capacitar municípios para a aplicação e a fiscalização da lei. "A idéia é promover uma transferência de atribuições, de modo que o varejo seja incumbência dos municípios, a demanda média fique com os estados e as grandes obras, licenciamentos e fiscalização sejam de responsabilidade do governo federal", diz Schaffer.

O texto legal também reconhece a função social desempenhada pela mata e seu caráter de patrimônio de interesse público. "No passado, muitos proprietários se sentiam ameaçados e destruíam a vegetação para que suas terras não fossem desapropriadas. A lei, agora, cria uma série de mecanismos de estímulo para a manutenção da floresta", explica Schaffer.

Aqueles que não cumpriram a determinação legal de preservar 20% de mata nativa em suas terras podem fazer uma compensação desse passivo ambiental, reconstituindo a floresta em suas propriedades ou então comprando uma área em uma unidade de conservação – espaço territorial legalmente delimitado com o objetivo de proteger a biodiversidade – e doando-a ao poder público. De acordo com Schaffer, esse trâmite permitiria regularizar o status de terras que ainda não foram desapropriadas devido à falta de verbas para indenização dos proprietários.

Segundo o MMA, 20% do que resta da mata atlântica está protegido pela demarcação de 860 unidades de conservação. "Estamos em desvantagem, porque o mínimo que deveríamos ter é de 35% a 40%, mas o objetivo é aumentar em 10% o número de unidades até 2010", afirma Schaffer.

Contudo, o reconhecimento legal não é ainda suficiente para garantir que os remanescentes da mata atlântica sejam preservados. "A grande dificuldade continua sendo a fragilidade dos órgãos ambientais brasileiros, que não têm capacidade de fiscalização", diz Fábio Feldmann. Por outro lado, ele acredita que, nos últimos 15 anos, houve avanço na conscientização da sociedade. "Até os empreendimentos imobiliários utilizam a mata atlântica como diferencial para valorização do patrimônio", diz ele.

Efeito estufa

Baseados nos dados divulgados pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), órgão da Organização das Nações Unidas (ONU), especialistas prevêem que a mata atlântica não estaria livre dos efeitos do aquecimento global.

"A situação da mata atlântica vem sendo agravada devido às mudanças nos padrões climáticos terrestres. O regime de chuvas, entre outras alterações atmosféricas, tem modificado drasticamente o padrão de distribuição das espécies do bioma, que tanto podem entrar em processo de retração de sua área de ocorrência como podem simplesmente desaparecer", afirma Alexandre Colombo, pesquisador da área de ecologia da Unicamp. De acordo com a Fundação SOS Mata Atlântica, estão listadas 383 espécies de animais ameaçadas de extinção no bioma.

O professor Carlos Alfredo Joly, também da Unicamp, lembra que as mudanças não serão iguais em todo o bioma. "A alteração da precipitação de chuvas vai ser mais forte sobre as florestas do nordeste do que sobre as do sudeste, e haverá um efeito maior na área de araucárias, que é mais fria", exemplifica.

Segundo Joly, há ainda muitas espécies na mata atlântica não identificadas pela comunidade científica. Enquanto praticamente 95% das espécies de árvores e de vertebrados (com exceção dos peixes de riachos mais isolados) já são conhecidas, apenas 10% das de invertebrados foram identificadas. "Um dos problemas é que há relativamente pouco conhecimento dos ecossistemas terrestres", afirma ele.

Ocupação urbana

Nos domínios que eram originalmente de mata atlântica, vivem hoje cerca de 120 milhões de pessoas, o que corresponde a mais de 60% dos brasileiros. Aos habitantes das áreas urbanas somam-se as populações tradicionais: cerca de 70 povos indígenas e mais de 370 comunidades quilombolas, além de caiçaras e ribeirinhos. Por conta disso, toda essa área apresenta uma grande multiplicidade etnocultural e é marcada por diferenças socioeconômicas.

O fato de o bioma abrigar um grande contingente populacional implica um fluxo instável de pessoas. As migrações e o crescimento demográfico são intensos, e esses fenômenos sociais têm sérios impactos na natureza. "Os remanescentes estão sob forte influência da ação antropogênica, porque as cidades continuam se expandindo e, com isso, há necessidade de ampliação da infra-estrutura", explica Joly.

Ao mesmo tempo, porém, em que a expansão urbana aumenta a pressão da ocupação irregular e das atividades econômicas, os habitantes dessas áreas dependem cada vez mais da conservação do meio ambiente. "A preservação do que resta de mata atlântica é importante também pelo fato de ela abranger as nascentes que abastecem de água todas as capitais da região sul, sudeste e nordeste", acrescenta o professor.

No Brasil, a mata atlântica abriga sete das nove grandes bacias hidrográficas – Atlântico Leste, Atlântico Sul-Sudeste, Uruguai, Paraguai, Atlântico Norte-Nordeste, São Francisco e Paraná –, que participam de um complexo e rico ecossistema aquático e são responsáveis pelo abastecimento de 110 milhões de pessoas de 3,4 mil municípios.

No caso da região metropolitana de São Paulo, a grande preocupação é a expansão urbana que está se consolidando na área de mananciais das represas Guarapiranga e Billings, assim como do Sistema Cantareira. O crescimento da capital paulista e dos municípios vizinhos começou na década de 1950 e se intensificou principalmente nos anos 1970. Os limites se alargaram horizontalmente, atingindo pontos que ainda eram inabitados, onde não havia nada além da mata nativa. "As cidades avançam sem planejamento, de forma desordenada, sem estrutura, o que acaba impactando os mananciais", afirma Marussia Whately, coordenadora do Programa de Mananciais do Instituto Socioambiental (ISA) de São Paulo.

Segundo estimativas da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), só na área da Guarapiranga, a população atual chega a 1,5 milhão de habitantes. Dados do ISA indicam que as ocupações urbanas correspondem a cerca de 17% do entorno da bacia da Guarapiranga. O que mais espanta é que essas novas ocupações se localizam em áreas de proteção permanente (APPs), que são espaços territoriais regulamentados para a proteção de ecossistemas. Topos de morro, nascentes, margens de rios são alguns exemplos de locais que deveriam ser resguardados da expansão habitacional para a preservação da água e do solo. De acordo com Maria Lucia Refinetti Martins, professora e coordenadora do Laboratório de Habitação e de Assentamentos Humanos da FAU-USP, não é um acaso o fato de os limites da região metropolitana alcançarem os mananciais. Em sua opinião, o fenômeno também já pôde ser verificado em outras grandes cidades brasileiras, como Curitiba e Belo Horizonte. "Existe um forte deslocamento não só em direção aos mananciais, mas para espaços territoriais que tenham qualquer tipo de proteção legal. Numa situação em que a oferta de imóveis na região mais consolidada da cidade não é suficiente, há uma grande pressão nesses locais. Como o mercado imobiliário formal não vai até onde é proibido habitar, essa é uma área que fica vazia. É algo muito cruel, porque há proteção da lei, mas que não ocorre na realidade." 

 

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