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É o momento da pluralidade

Mais do que escrever livros, eles incentivam, despertam e apóiam novos autores

CECÍLIA PRADA

Nelson de Oliveira e Rinaldo de Fernandes – um paulista e um nordestino – são escritores hoje na faixa dos 40 anos. Em plena atividade, com obra pessoal madura e importante, ligados a universidades, desempenham também um papel de verdadeiros catalisadores da literatura brasileira atual, reunindo em torno de si, e divulgando, tanto em sua atividade crítica e de ensino como na organização de antologias, os escritores mais significativos que de norte a sul do país se dedicam à prosa de ficção e à poesia.

Nelson nasceu em Guaíra (SP), em 1966. É doutorando em letras pela Universidade de São Paulo (USP) e publicou, entre outros, os livros Naquela Época Tínhamos um Gato (contos), Subsolo Infinito (romance), O Filho do Crucificado (contos) – lançado também no México –, A Maldição do Macho (romance) – lançado também em Portugal – e Verdades Provisórias (ensaios). Dos prêmios que recebeu, destacam-se o Casa de las Américas, em 1995, o da Fundação Cultural da Bahia, em 1996, e duas vezes o da Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA), em 2001 e 2003.

Rinaldo é maranhense, nascido em 1960. É doutor em letras pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor de literatura na Universidade Federal da Paraíba. Autor dos livros de contos O Caçador, O Perfume de Roberta e da novela, inédita, Rita no Pomar, obteve em 2006 o Prêmio Nacional de Contos do Paraná, um dos mais tradicionais da literatura brasileira, com o conto "Beleza". Nos últimos anos, participou da organização de importantes antologias: Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século, Contos Cruéis: As Narrativas mais Violentas da Literatura Brasileira Contemporânea e Quartas Histórias: Contos Baseados em Narrativas de Guimarães Rosa – as duas primeiras publicadas pela Geração Editorial (SP) e a última pela Garamond (RJ).

Problemas Brasileiros – Como vocês vêem a literatura que se faz atualmente no Brasil?
Nelson de Oliveira
– Acho que estamos vivendo o momento da pluralidade. Poetas e prosadores das mais diferentes tendências estão circulando livremente pelas livrarias e pelas Bienais. Nunca se escreveu ou se publicou tanto no Brasil e no mundo. Essa explosão criativa, bastante visível principalmente na internet, provocou a seguinte declaração do poeta Gabriel Zaid: "A leitura de livros está crescendo aritmeticamente, a escrita de livros, exponencialmente. Se nossa paixão por escrever não for controlada, no futuro próximo haverá mais pessoas escrevendo livros do que lendo". Concordo com Zaid.

PB – Você é da mesma opinião, Rinaldo?
Rinaldo de Fernandes
– Sim. Há certamente bons escritores, prosadores e poetas. Até onde tenho acompanhado, o conto tem sido o gênero de destaque. Não apareceu ainda o grande romancista ou o grande poeta, aquele autor que de alguma forma desestabiliza, que traz algo de impacto, com cara de novo. Parece-me que os dois últimos grandes romances brasileiros são Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, e A Festa, de Ivan Angelo, ambos da década de 1970.

PB Você está se referindo a dois romances de inspiração "política". É por esse motivo que os classifica assim?
Rinaldo
– Não, absolutamente. É no sentido mesmo dessa desestabilização formal de que falei. Mas não quero dizer com isso que não tenham surgido outras obras de qualidade. Faço questão de citar alguns bons romancistas mais recentes: Miguel Sanches Neto, André Sant’Anna, Milton Hatoum, Luiz Ruffato, Paulo Lins, Patricia Melo, Chico Buarque, Nelson de Oliveira...
Com a poesia acontece algo parecido, mas os poetas mais velhos ainda dominam a cena – caso especialmente de Ferreira Gullar e Manoel de Barros. Os contistas, por sua vez, estão num momento muito instigante. Nota-se uma variedade de formas no conto, que vai do minimalismo ao realismo brutal, passando pela vertente intimista (ainda nas pegadas de Clarice Lispector), pela narrativa fragmentária ou mesmo experimental. Isso pode ser comprovado nas antologias ultimamente organizadas por mim, por Nelson de Oliveira e por Luiz Ruffato.

PB – Nos anos 1930 e 40 tivemos a renovação do romance brasileiro a partir do ciclo do romance nordestino. Hoje há diferenças entre a literatura que se faz no nordeste e a das outras regiões do país?
Nelson
– Não sou especialista no assunto, mas a impressão que tenho é que os autores do norte e do nordeste ainda escrevem contos e romances sobre o cotidiano rural, ao passo que os autores do sul e do sudeste enfocam quase que exclusivamente o cotidiano metropolitano. As pequenas cidades brasileiras quase não aparecem na obra destes últimos. Isso me parece empobrecedor.
Rinaldo – O ciclo do romance de 1930 foi, efetivamente, um acontecimento extraordinário de nossa literatura, revelando autores como Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Jorge Amado. Atualmente, autores nordestinos como Antônio Torres, Francisco Dantas ou mesmo Aldo Lopes de Araújo conseguem manter um diálogo rico, não raro original, com essa tradição. Outro exemplo, ainda inserido na tradição regionalista mas com soluções diferentes, é a narrativa dialógica, intertextual, de Aleilton Fonseca, que resgata o universo e a oralidade de Guimarães Rosa. Mas há autores com outros traços, a exemplo de José Nêumanne Pinto, com o romance O Silêncio do Delator, que retrata, de forma paródica, alguns ícones da cultura urbana e de massa da segunda metade do século 20.

PB – Mas o Nêumanne está radicado há muito tempo em São Paulo.
Rinaldo
É ainda muito relacionado ao nordeste por conta de sua origem. A poesia dele, por exemplo, está impregnada de motivos da paisagem nordestina. O mesmo acontece com Antônio Torres, que há muito reside no sudeste. Minha intenção foi relacionar o autor com sua origem, mesmo porque hoje há escritores nordestinos que residem na região e fazem uma literatura urbana, que, de tão metropolitana, fica difícil às vezes relacionar com o nordeste. É o caso, por exemplo, da contista Marilia Arnaud. Ou mesmo o meu caso. Meus contos são urbanos, tornando difícil ao leitor associá-los ao nordeste. Mas eu, embora já tenha vivido em São Paulo, resido na Paraíba.
Nelson
– O certo é que caminhamos, globalmente, para a megametrópole... Daqui a 200 ou 300 anos não haverá mais vilas e cidadezinhas, pois a superfície da Terra estará coberta por uma única e imensa cidade, como no romance Neuromancer, de William Gibson. Mesmo assim a literatura ainda precisa contemplar, de maneira vigorosa e inventiva, a realidade miúda e distante das pequenas comunidades.

PB – Como vocês começaram a escrever?
Nelson
– Na adolescência, para vencer o tédio que a vida numa cidade pequena do interior paulista sempre provoca, eu lia e escrevia muito. Principalmente crônicas bem-humoradas. Eu era muito influenciado pela turma do "Pasquim": Henfil, Millôr, Jaguar, Paulo Francis... Escrevia e desenhava, pois era (ainda sou) apaixonado por cartuns, histórias em quadrinhos e desenhos animados. A literatura mais sofisticada, a alta literatura, só foi entrar na minha vida depois que me mudei para São Paulo. Mais maduro, cursando a faculdade de artes plásticas, comecei a ler e a imitar os pesos pesados da prosa e da poesia: Kafka, Maiakóvski, Borges, Pessoa, Joyce, os concretistas. Foi fundamental na minha formação freqüentar a oficina de criação literária de João Silvério Trevisan. Graças a ela percebi que a literatura precisava ocupar mais espaço na minha vida.

PB – Enfrentou dificuldades no começo para publicar?
Nelson
– Sim, muitas. Meu primeiro volume de contos, Fábulas, esperou oito anos para ser lançado, e esse primeiro original só escapou de ficar perpetuamente na gaveta graças ao Prêmio Casa de las Américas. Isso mesmo, curiosamente, estreei em espanhol... Ainda hoje em dia, apesar da explosão editorial que vem multiplicando o número de editoras e de autores, depois de mais de 20 títulos publicados, não tenho nenhuma garantia de que o próximo também será lançado. Para quem nunca foi best-seller a batalha sempre recomeça, livro após livro.

PB – E você, Rinaldo, como se tornou escritor?
Rinaldo
– Meu início foi meio parecido com o do Nelson. Eu também tinha uma grande admiração pela crônica. Procurava nos jornais e revistas os cronistas. Às vezes produzia algumas narrativas tratando de cenas do meu cotidiano em São Luís, onde passei grande parte de minha infância e a adolescência, mas não as publicava por falta de oportunidade. Eu já fazia a faculdade de letras em Fortaleza quando publiquei minha primeira crônica no suplemento de cultura do "Diário do Nordeste", importante jornal da cidade. Fiquei muito contente, quase corro na rua quando apanhei na banca o jornal, pois meu texto saiu numa página junto com uma crônica de Drummond. Depois fui pegando gosto pelo conto.

PB E as influências literárias que tiveram?
Rinaldo – Fui aluno, na faculdade, de um grande contista cearense, Moreira Campos. Ele não só me incentivou a escrever contos como me indicou os grandes mestres do gênero. E foi também o meu primeiro leitor, dizendo sempre que eu tinha talento para o gênero. A partir desse contato com Moreira Campos, decisivo em minha trajetória de autor, passei a ler contos permanentemente. Tive outra grande influência, quando era muito jovem, ao ler as memórias do meu conterrâneo Humberto de Campos. Eu adorava o modo de ele escrever, a fluência, o ritmo de sua prosa. Achava bonito seu nome, acreditava que Humberto de Campos, em seu tempo, namorava todas as mulheres que desejava – por ser escritor e por causa do nome dele, com a preposição "de" dando todo o charme [risos]. Tanto que, para imitá-lo, passei a assinar, ainda adolescente, "Rinaldo de Fernandes"...

PBMas seus contos hoje são muito modernos, de feitio metropolitano. Certamente não há mais nada ligando você a Humberto de Campos...
Rinaldo – Claro, era uma "paixão" de menino. Depois passei a admirar autores como Tchekhov, Machado de Assis, Julio Cortázar. Mas no estilo penso ter tido influência de Graciliano Ramos, autor enxuto, sóbrio. Gosto muito de Clarice Lispector. E ainda de Guimarães Rosa. Especialmente depois que organizei em 2006, para a Editora Garamond, a coletânea Quartas Histórias: Contos Baseados em Narrativas de Guimarães Rosa, na qual consegui reunir um time de excelentes contistas para recriarem o autor de Sagarana. Dos contistas contemporâneos, leio sempre Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, para mim os dois melhores escritores vivos de nossa literatura.

PB E você, Nelson, quais os autores que mais o influenciaram?
Nelson
– Sempre li com bastante atenção os mestres da suspeita: Schopenhauer, Nietzsche, Freud, Popper, Kuhn, Feyerabend. Esses pensadores passaram a vida pondo em xeque o alcance e a nobreza de todas as teorias mal formuladas do conhecimento. A ciência e boa parte da filosofia iluminista têm a pretensão de conhecer a realidade, de apreender a totalidade do mundo, de conhecer a essência das coisas. A parte da filosofia que me interessa desconfia dessas pretensões e deixa bem claros os limites do sistema científico, filosófico, histórico, religioso e poético. É a linguagem suspeitando da própria linguagem. A crise do mundo contemporâneo é a da epistemologia. Minha literatura está encharcada dessa crise. Kafka escreveu: "Um livro tem de ser um machado para o mar congelado dentro de nós, a literatura só é digna desse nome quando descongela o sangue de quem lê". Gosto dessa imagem: a literatura e a filosofia são dois machados necessários, por isso seus golpes, apesar de proporcionarem muito prazer, também doem tanto.

PB – As gerações que precederam a de vocês foram marcadas pelo engajamento político. Podem comentar sobre isso?
Nelson
– De fato, ao menos na prosa, os escritores da década de 1970 se dedicaram bastante à literatura de cunho político e social. A resistência ao totalitarismo de direita, a militância política, a arte e a literatura andavam freqüentemente juntas. A fim de escapar da censura e da cadeia, os escritores trabalhavam o tema da repressão e da opressão de maneira cifrada. Mas a verdade é que tempos depois a grande maioria desses escritores simplesmente desapareceu do mapa. Ficaram apenas os nomes mais fortes, que, mesmo tendo injetado em seus livros bastante do mal-estar da nossa situação política sob a ditadura militar, se preocuparam muito mais em fazer boa literatura do que eficientes panfletos de resistência. Falo, por exemplo, de escritores como Antonio Callado, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Roberto Drummond e Sérgio Sant’Anna. Talvez por não ter vivido intensamente o período negro da ditadura militar, em meus livros nunca senti necessidade de flertar explicitamente com as questões políticas. Mesmo assim, de modo mais amplo e universal, tenho certeza de que o romance Subsolo Infinito e a coletânea de contos Algum Lugar em Parte Alguma têm passagens fortemente engajadas. Mas minha militância diz respeito à raça humana, à servidão de todos os homens na face da Terra, e não a determinado sistema de governo atual ou já extinto, ocidental ou oriental.
Rinaldo
– O engajamento do escritor deve ser de duas ordens, com a palavra, com a qualidade do seu texto, e com a sociedade, com os dramas humanos e sociais de seu tempo. Não acho que o engajamento social seja necessário, mas não deixa de ser complicado um escritor fora do seu tempo, do cotidiano de sua cidade, de sua região, de seu país. A questão é de tratamento mesmo, de forma. É claro que um tema pode ter sua força, e chego mesmo a acreditar numa "poética do conteúdo", mas a forma em literatura é uma força maior, é uma questão fundamental. O ficcionista, por exemplo, precisa dominar a arte da narrativa, precisa ter um estilo próprio, que de algum modo o faça ser reconhecido, identificado. Penso que minha geração, que surge nos anos 1980 mas que começou mesmo a se consolidar nos 90, continua a tradição de nossa literatura, dialogando com os grandes autores, mas trazendo questões novas e, em certos casos, linguagem nova. Mas é uma geração meio estagnada, do ponto de vista formal. Nesse sentido, não é melhor do que a geração dos anos 1970, por exemplo. Em alguns aspectos, é até pior. Há autores publicando apressadamente, às vezes mais preocupados com a fama do que com o amadurecimento do texto. Talvez isso seja um reflexo – negativo – da cultura audiovisual, muito dinâmica.

PBPara que serve a literatura? Ela é capaz de transformar o mundo? O escritor deve ter consciente ou inconscientemente esse propósito, essa "transcendência"?
Nelson – A literatura e o mundo estão em constante transformação. A expressão poética é capaz de transformar os indivíduos, que por sua vez acabam transformando a expressão poética, ambos, mundo e palavra, metidos numa perpétua espiral dialética. Escrever, para mim, é entrar em contato com o lado sagrado da existência. Sim, isso é a mais pura transcendência, porque a partir dos fatos mais corriqueiros do dia-a-dia eu consigo, mergulhando fundo no jogo de idéias e conceitos literários, iluminar a banalidade do meu cotidiano. A literatura enriquece meu dia-a-dia e é por ele enriquecida: de novo, a espiral dialética.
Rinaldo
– A literatura, como toda arte, tem como primeira função nos proporcionar um prazer estético. E é também, em suas melhores expressões, uma forma de conhecimento da natureza humana, da engrenagem social. Mas não acredito que a literatura seja capaz de transformar o mundo. É capaz de melhorar o homem. O que transforma o mundo é a ação política de indivíduos ou de um corpo coletivo.

PB – A literatura de hoje, focada principalmente na violência urbana, representa a voz do povo?
Rinaldo
– A literatura hoje cumpre o papel de sempre, ou seja, representar a realidade. Se a sociedade é violenta – e é extremamente violenta, todos sabemos –, a tendência da literatura é enfocar a questão. Organizei em 2006 a coletânea Contos Cruéis. A primeira edição já está se esgotando. Portanto, há um grande interesse dos leitores pelo tema. Os contos da coletânea retratam dois tipos de violência: a física e a psicológica. São os principais contistas do país – ou pelo menos grande parte dos mais importantes – refletindo sobre o tema.
Nelson
– O povo não está interessado nos nossos livros, simplesmente porque 75% dos brasileiros são analfabetos ou analfabetos funcionais, ou seja, na melhor das hipóteses mal conseguem interpretar uma simples notícia de jornal. São pessoas que quase não freqüentam uma biblioteca. Não compram livros, porque no Brasil eles não são um produto de primeira necessidade. Quem freqüenta as livrarias e compra nossos livros é a classe média e a aristocracia. Muitos prosadores da Geração 90 e da Geração Zero Zero, pertencentes também à classe média ou à aristocracia, estão produzindo quase que exclusivamente narrativas cruas e violentas, protagonizadas por indigentes e marginais, ambientadas na periferia ou na favela. Me parece que esse ambiente excêntrico, distante do centro do poder, acabou condensando o novo inconsciente da metrópole. Eu digo isso na apresentação da antologia Cenas da Favela. Todos os nossos medos, traumas, desejos e preconceitos estão lá, na periferia e na favela. Por isso essa forte atração, essa mitificação da miséria moral e econômica, por parte dos novos escritores. Esse impulso está muito associado à noção de liberdade e de desregramento de todos os sentidos, dos poetas malditos da Europa do final do século 19, das vanguardas modernistas, dos beatniks... A linhagem é longa. Trata-se de uma forma de militância contra a boçalidade reinante na classe média e na aristocracia. Essa não é a literatura que faço, mas admiro muitos dos seus autores. 

 

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