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A revolução do imposto verde

 Cresce tendência de destinar parte dos tributos à preservação ambiental

CELIA DEMARCHI


Crianças em horta comunitária em São Jorge do
Patrocínio (PR) / Foto: Divulgação

A pequena São Jorge do Patrocínio, no oeste paranaense, com pouco mais de 6 mil habitantes, se tornou referência quando o assunto é proteção e conservação ambiental. Na cidade, a coleta de lixo é diária em toda a área urbana, e os resíduos são totalmente descartados em aterro sanitário. A mata ciliar ao longo dos córregos e rios que deságuam no portentoso rio Paraná está toda em processo de recuperação, e a prefeitura vem subsidiando produtores para que cumpram a legislação da reserva legal.

Também ao lado do Paraná, mas longe dali, no extremo noroeste de São Paulo, outra pequena localidade, com quase 30 mil habitantes, ganha fama por sua política de sustentabilidade: Santa Fé do Sul. No município, há 15 metros quadrados de área verde por habitante na zona urbana (três a mais que o índice internacionalmente considerado ideal), o meio ambiente é tema abordado de forma transversal por todas as disciplinas do ensino básico, e o cidadão que promove ações de preservação tem desconto no Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU).

As duas cidades são exemplos de uma tendência que, desde 1991, vem se alastrando silenciosamente pelo Brasil. Naquele ano, o estado do Paraná, sob o comando de Roberto Requião, de forma pioneira instituiu, por meio da lei complementar 59, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) ecológico, que determina que 5% da parcela de arrecadação do ICMS que cabe ao estado seja distribuída a municípios com unidades de conservação ou áreas protegidas ou ainda com mananciais usados para abastecimento público de água.

Atualmente, o ICMS ecológico vigora nos estados de Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Rondônia, Amapá, Pernambuco, Ceará e Paraná. E outros 12 estados estão debatendo sua adoção, segundo levantamento do programa Cidades e Soluções, da Globo News.

A possibilidade de receber recursos adicionais aguçou o interesse dos prefeitos de modo geral. No Paraná, segundo Rasca Rodrigues, secretário de Meio Ambiente e Recursos Hídricos, os administradores passaram a disputá-los a ponto de criar parques municipais só para ter acesso a uma fatia do ICMS ecológico. Como resultado, de 1991 em diante as áreas protegidas aumentaram 160% no estado.

Desde 2003, o governo do Paraná repassou R$ 487 milhões a 133 municípios por meio desse mecanismo (R$ 120 milhões neste ano). Em todo o país poderão ser liberados, em 2009, cerca de R$ 600 milhões, de acordo com dados divulgados pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA).

Rodrigues, porém, gostaria que todo o dinheiro fosse aplicado nas áreas que justificaram o repasse: "Comemoramos também quando é empregado em coleta seletiva, educação ambiental, arborização urbana, criação de parques, gerenciamento de resíduos sólidos e de recursos hídricos".

Em São Jorge do Patrocínio, uma das cidades paranaenses que mais recebem recursos do ICMS ecológico, o repasse equivale a 30% da arrecadação tributária da prefeitura. Ele banca com folga todo o orçamento da área de meio ambiente (R$ 670 mil neste ano) e ainda parte dos programas de educação, saúde e serviços municipais, que deram um salto de qualidade nos últimos anos. O dinheiro compensa o município pelo fato de metade de seu território, de 405 quilômetros quadrados, ficar dentro do Parque Nacional de Ilha Grande.

O repasse começou em 1995, após a criação das áreas de proteção ambiental (APAs) no entorno do parque, em 1994, segundo Gisele Petinelle da Silva, secretária de Meio Ambiente de São Jorge do Patrocínio. Foi, porém, a partir de 1997 que passou a engordar substancialmente a receita municipal. Desde aquela época, as responsabilidades também cresceram. "As tarefas quadruplicaram", diz Gisele. "Estruturamos a secretaria e começamos a fazer campanhas de educação ambiental nas comunidades."

Além de haver coleta de lixo diária em toda a área urbana, a seletiva já se estende até os bairros São Benedito e Gurucaia, na zona rural. Os produtores recolhem material reciclável e o entregam na escola pública de Gurucaia. A própria vizinhança os separa e comercializa e assim consegue renda extra. Até 1995, o lixo era depositado a céu aberto, onde agora há um moderno aterro sanitário, no qual a prefeitura investiu R$ 80 mil. O produto de poda de árvores e varrição de ruas vira adubo orgânico – cerca de 10 mil quilos por mês –, que é distribuído aos produtores rurais.

A regeneração da mata ciliar é considerada assunto resolvido na cidade: "Agora estamos empenhados na questão da reserva legal", diz Gisele, lembrando que a prefeitura subsidia os produtores com doação de mudas de plantas nativas e demarcação do terreno. Conforme prevê a Constituição, 20% da área total de cada propriedade tem de ser preservada ou reflorestada para assegurar a biodiversidade, mas poucos produtores no país cumprem essa norma. Mesmo em São Jorge do Patrocínio, apesar do apoio da prefeitura, há quem resista: "Por isso, atuamos junto com o Ministério Público nessa questão e estamos avançando", diz Gisele.

O resgate da mata ciliar começou em 1993, também com respaldo do Ministério Público. Atualmente, de acordo com a secretária, há trechos recuperados e outros em que os trabalhos estão em estágio inicial, mas todos os proprietários cercaram rios e córregos e isolaram 30 metros de terreno a partir das margens, como manda a legislação federal. Para isso, foi preciso, antes, assegurar o abastecimento de água para as famílias e o gado: as propriedades receberam poços artesianos, construídos pela prefeitura em parceria com os produtores.

Faltava, porém, um método que assegurasse água para a agricultura sem comprometer a mata ciliar. Em 2006, começou a ser implantado um projeto de irrigação ambicioso, que capta água do ribeirão São João e a armazena num grande reservatório. Uma tubulação subterrânea, que segue o trajeto da estrada, transporta a água para o bairro de São Mateus, onde 60 produtores já a utilizam, armazenando-a em tanques particulares, por meio de bombeamento elétrico. O projeto piloto custou R$ 340 mil: R$ 180 mil da prefeitura, R$ 100 mil do governo do Paraná e R$ 60 mil dos produtores – cada um investiu R$ 1 mil.

Luiz Carlos Bonato, de 51 anos, presidente da Associação Comunitária dos Moradores e Amigos do Bairro de São Mateus, está otimista com as perspectivas. Em sua propriedade de 10 alqueires (24 hectares), ele mantém 30 cabeças de gado bovino de corte e planta principalmente café e mandioca, que são comercializados na região.

Este ano, o primeiro em que irriga as culturas, antes dependentes do regime de chuvas, ele espera colher 420 sacas de café, 40% mais que nos anos anteriores. Quem planta feijão, diz ele, deve produzir agora entre 50% e 60% mais grãos e colher 180 sacas por alqueire (2,4 hectares). Em cada alqueire irrigado, ele explica ainda, podem pastar até 18 vacas leiteiras, para apenas 2,5 vacas em área de mesmo tamanho sem irrigação.

"O ICMS ecológico nos ajuda a manter a população na área rural, onde mora hoje metade dos habitantes de São Jorge", diz Gisele, informando que a prefeitura organiza os produtores, orienta para a prática de agricultura sustentável e subsidia equipamentos como tratores e resfriadores de leite para uso comunitário.

Ela conta que campanhas de educação ambiental, com panfletos, eventos, peças teatrais, envolvem praticamente todas as secretarias. Essas iniciativas são parte fundamental da estratégia de desenvolvimento econômico sustentável da cidade – quanto mais consciente for, mais a população irá colaborar com as metas da administração.

IPTU verde

Em São Paulo, o ICMS ecológico foi instituído em 1993 e prevê redistribuição de 0,5% da fatia paulista da arrecadação do tributo aos municípios com áreas protegidas. Somente este ano, segundo Roberta Buendia, assessora de gabinete da Secretaria do Meio Ambiente (SMA), 184 prefeitos receberam R$ 66 milhões relativos à rubrica. Em 2001, eram 150 as cidades beneficiadas. O aumento se deve ao interesse cada vez maior nas áreas de proteção, que, além de estimular a biodiversidade, incrementam o valor paisagístico das cidades. "Em função da agenda ambiental, entra em pauta o turismo ecológico", diz Roberta.

São Paulo, contudo, lançou um outro programa, o Município Verde, em 2007, que aprofunda ainda mais a abordagem. A meta principal é criar uma agenda comum para o meio ambiente em todo o estado e descentralizar as ações, de modo que cada cidade identifique seus problemas e se encarregue das soluções.

O governo estadual entra com recursos: todo o orçamento da SMA, de R$ 793 milhões este ano, destina-se a consolidar projetos ambientais concebidos nos municípios, segundo as dez diretivas do Município Verde – esgoto tratado, lixo mínimo, recuperação da mata ciliar, arborização urbana, educação ambiental, habitação sustentável, uso da água, poluição do ar, estrutura ambiental e conselho de meio ambiente.

Dos 645 municípios paulistas, 635 já estão em busca da certificação do programa e 44 já a obtiveram. A posse do certificado dá direito a prioridade em receber investimentos de outras áreas do governo: "Se a Secretaria dos Transportes vai investir, por exemplo, em estradas vicinais, distribuirá os recursos em primeiro lugar para essas cidades", diz Ubirajara Guimarães, chefe de gabinete da SMA e gerente do Município Verde.

Para aderir ao programa, os prefeitos têm de assinar um protocolo que prevê a elaboração de um plano municipal de meio ambiente, conjuntamente, entre técnicos da prefeitura e do governo do estado. Para cada uma das diretivas, avaliam-se dificuldades e estabelecem-se metas. A partir daí, o governo estadual começa a fornecer apoio, principalmente técnico, mas também em forma de financiamento de máquinas e equipamentos a fundo perdido.

Dessa forma, priorizam-se as ações planejadas: "Antes, liberávamos recursos e não víamos resultados", diz Guimarães, enfatizando que os projetos são monitorados. Ele conta ainda que órgãos oficiais como a Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb) e a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) se tornaram mais próximos dos municípios: "Antigamente, nem conversavam um com o outro".

A redução de 137 para 50 lixões em solo paulista em dois anos é um dos resultados mais evidentes do Município Verde. As cidades também estão adotando mais a coleta seletiva. Com isso, aumentam a vida útil dos aterros, que deixam de receber materiais recicláveis. Atualmente, de acordo com Guimarães, 447 municípios têm coleta seletiva ou planejam instituí-la – eram apenas 180, antes de 2007.

O principal problema no estado, no entanto, segundo o técnico, é o esgoto. Ele afirma que Ribeirão Preto, São José do Rio Preto e Pindamonhangaba tratam praticamente 100% do esgoto que geram. Já a capital trata 70% do total e Guarulhos, com cerca de 1,3 milhão de habitantes, a segunda maior população do estado, ainda direciona para o rio Tietê quase a totalidade de seus dejetos. No ano passado, finalmente, o assunto começou a ser encaminhado: a prefeitura firmou um acordo com a Sabesp, que prevê tratamento de 20% do esgoto gerado na cidade. O foco do governo do estado nesse caso é o Projeto Tietê.

A mata ciliar, objeto da terceira diretiva do Município Verde, também apresenta situação preocupante. Especialmente devastada no oeste paulista, devido ao avanço das pastagens nas últimas décadas, dá mostras, agora, de recuperação, principalmente em Jales e Santa Fé do Sul. Esta última cidade ficou no topo do ranking do Município Verde no ano passado, com nota 94,96, numa escala que vai até 100.

Da nota, 10 pontos se relacionam à primeira diretiva: desde 2000, a cidade trata 100% do esgoto, segundo Denis Kobayashi, diretor do Departamento de Meio Ambiente de Santa Fé do Sul. No que respeita à segunda diretiva, referente a lixo mínimo, a cidade ganhou 9,8, pois o atual aterro sanitário, o terceiro em cinco anos, ainda não tem membrana de impermeabilização, que está sendo providenciada para os próximos meses.

O município mantém ações relacionadas a todas as diretivas, que ganham mais eficiência por causa de um outro mecanismo, criado pela administração: o IPTU verde, que consiste em dar descontos de até 30% a contribuintes que adotam medidas em prol do meio ambiente, como preservar áreas verdes particulares e economizar água e energia. Segundo Kobayashi, a prefeitura espera atingir, em quatro anos, o limite de 4% de desconto na arrecadação total de IPTU, estabelecido na lei que instituiu o mecanismo. Em 2009, está concedendo desconto a 174 contribuintes que requereram o benefício – um total de R$ 22,5 mil, equivalentes a 0,9% da arrecadação prevista de R$ 2,5 milhões.

De acordo com Kobayashi, o desconto está estimulando os proprietários a preservar de 15% a 18% dos terrenos das novas construções como área permeável. Esses imóveis também estão sendo equipados com aquecedores solares, e alguns munícipes adotaram ainda sistemas de captação e aproveitamento de água da chuva. O desconto é progressivo, conforme a quantidade e o peso das medidas adotadas pelo contribuinte. Cada espécime de árvore frutífera na propriedade, por exemplo, valorizada porque alimenta os pássaros, vale 2%. Por árvore da mesma espécie, o proprietário acumula mais 0,2% de desconto.

Inês Mateus da Luz, de 58 anos, foi uma das contribuintes beneficiadas este ano. Por um "rancho" de 2,9 mil metros quadrados em área urbana próxima ao rio Paraná, ela pagou R$ 309 de IPTU, 30% menos do que recolheria caso não tivesse se inscrito no programa IPTU verde e comprovado que a mata ciliar está preservada no terreno. "Muitas pessoas tiram as árvores para abrir a vista para o rio", diz.

Santa Fé do Sul foi o primeiro município paulista a elaborar um plano diretor de arborização, que especifica normas de plantio e manejo. Hoje, orgulha-se de suas praças, parques e ruas, por onde se espalham 60 mil árvores. O grande destaque na cidade, porém, é a educação. Nas escolas do ensino fundamental, o curso é apostilado, de modo a promover a transversalidade do tema meio ambiente, que transpassa o conteúdo de todas as disciplinas, segundo Kobayashi: "Esse é um ponto muito forte, que adotamos há oito anos. Os resultados são evidentes no comportamento das crianças".


Quando faltam recursos

Nem todos os municípios que recebem recursos do ICMS ecológico estão satisfeitos. Em Piraquara (PR), próximo de Curitiba, preservar os mananciais é um ônus, na opinião de Gilmar Clavisso, secretário municipal de Meio Ambiente, Agricultura e Turismo. O orçamento anual da cidade, de R$ 60 milhões, é parco para atender seus quase 100 mil habitantes, de acordo com Clavisso – 82 mil em 2007, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

De seus 228 quilômetros quadrados, 93% estão em área de captação de água, que brota de pelo menos 1.116 nascentes (total catalogado), as quais formam a bacia do rio Iraí. Com tanta água, a cidade abastece 3 milhões de habitantes de 12 dos 26 municípios da região metropolitana – que lhe sugam 3,5 mil litros por segundo. Os demais 7% do território de Piraquara estão em áreas de proteção, de acordo com o secretário: "Assim, ficamos amarrados. Não podemos ter nenhum tipo de indústria, mesmo não poluente, nem serviços, pois o governo do estado alega que atividade econômica provoca adensamento".

Segundo Clavisso, a população de Piraquara cresceu entre 9% e 10% ao ano até quatro anos atrás, à custa de ocupações irregulares. Como não há trabalho na cidade, seus habitantes geram renda nos municípios vizinhos e demandam os serviços públicos locais. O secretário diz que a prefeitura luta, sozinha, para barrar as invasões, com uma minguada equipe de oito fiscais para meio ambiente e para urbanismo: "O estado não se sensibiliza com nosso problema orçamentário".

Ainda de acordo com ele, embora bem-vindos, os R$ 9,9 milhões que Piraquara recebeu em 2008 de ICMS ecológico por preservar os mananciais não são suficientes para cobrir os gastos. Clavisso defende aumento da compensação financeira e permissão para atividades como serviços, indústrias não poluentes, agricultura orgânica e turismo.

Apesar das dificuldades, 100% das residências de Piraquara são atendidas pela coleta de lixo, inclusive na área rural – os resíduos são depositados em um aterro de Curitiba. O município conta ainda com coleta seletiva, realizada apenas uma vez por semana – para não prejudicar os carrinheiros.

Recentemente, a administração federal investiu R$ 500 mil para construir e equipar uma central de triagem de materiais recicláveis. Além disso, o governo do estado deve erguer na cidade uma vila agroecológica, com investimento de R$ 4 milhões, para produção de vinho, leite e embutidos, que deve beneficiar 200 famílias de agricultores. "São investimentos pontuais. Precisamos de uma solução definitiva", diz Clavisso.

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