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Cem anos de fé e resistência cultural

Festa de São Benedito revive culto e tradição dos escravos

HERBERT CARVALHO


Foto: Herbert Carvalho

As bandeirinhas coloridas que convergem para o alto da torre da Igreja de São Benedito, na cidade de Aparecida (SP), anunciam uma festa que parece junina, mas é comemorada, há cem anos, na época da Semana Santa, reunindo em seus momentos culminantes dezenas de milhares de devotos do santo negro, cujo culto entre os escravos, tolerado e até incentivado pelos senhores, transformou-se em símbolo da resistência cultural dos brasileiros afrodescendentes.

Em se tratando de uma cidade que ostenta o título de Capital Brasileira da Fé, acostumada a receber anualmente até 10 milhões de romeiros de todo o país em visita ao Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, a massa compacta reunida em torno da pequena igreja no fim de semana seguinte ao domingo de Páscoa não impressiona pela quantidade. O que transforma a Festa de São Benedito em Aparecida na maior manifestação folclórica religiosa do estado de São Paulo é seu caráter coletivo e profano, expresso por meio de cantos e danças, em contraste com a fé silenciosa, individual e recatada do culto à Padroeira do Brasil e das comemorações tradicionais da Igreja Católica.

Na centésima edição do evento, em abril deste ano, os grupos de congadas e moçambiques, com integrantes de todas as idades que desfilaram coreografias diferenciadas pelas ruas durante três dias, ao som de violas, sanfonas e de todo tipo de instrumentos de percussão, também chegaram, pela primeira vez, a completar uma centena, agregando aos visitantes tradicionais de cidades mineiras e paulistas representações que vieram de Goiás e do Espírito Santo.

"A cidade toda participa da recepção aos grupos, que se alimentam e até se hospedam em casas de família. A preparação dura o ano todo e envolve desde a confecção das bandeirinhas e do mastro até a arrecadação de fundos por meio de rifas e leilões. Neste ano, a festa assumiu uma importância maior por completar um século e também por causa da crise econômica, pois ela abre o calendário de romarias em uma cidade que tem no turismo religioso sua principal fonte de renda", diz o prefeito Antônio Márcio de Siqueira, comemorando a ocupação total dos 30 mil leitos da rede hoteleira local, o que é difícil acontecer mesmo no dia 12 de outubro, o feriado nacional em honra de Nossa Senhora Aparecida.

A diferença é que a grande maioria dos devotos da santa permanece apenas no interior e nas imediações da basílica, retornando às cidades de origem no mesmo dia. Na Festa de São Benedito, não: as barracas de comes e bebes, que atraem um público maior a cada ano, começam a funcionar no domingo de Páscoa, quando o batuque típico da irmandade de São Benedito anuncia o início da novena do santo, primeira ação litúrgica de uma série que terá seu ponto culminante no domingo e na segunda-feira seguintes (sempre um feriado municipal), com a Missa Conga, a Missa Solene – presidida por dom Raymundo Damasceno Assis, arcebispo de Aparecida – e a procissão. "Para os grupos folclóricos é uma maratona de três dias sem parar, sustentada pela fé e pela alegria. É uma herança passada de pai para filho. E a participação e a colaboração do aparecidense também viraram tradição. Essa é a essência da festa", resume a jornalista Ana Cláudia Siqueira, nascida e criada na cidade, à qual retorna todos os anos em razão do evento, que costuma fotografar e no qual já trabalhou como voluntária na área de assessoria de imprensa.

Nos principais dias da festa os grupos folclóricos, assistidos e aplaudidos por milhares de populares, não se limitam a cantar e dançar na rua. Evoluem também para dentro da Igreja de São Benedito, na cerimônia da Alvorada, quando se ajoelham diante da imagem do santo. E não poupam sequer as Basílicas Velha e Nova, que ocupam com o colorido de seus estandartes, turbantes, saiotes, colares, fitas, miçangas e lantejoulas, para saudar a padroeira, cujos templos os recebem de portas abertas. Mas nem sempre foi assim.

Protetor dos cozinheiros

O santo escolhido para abençoar as primeiras irmandades de escravos brasileiros – e que figura até hoje ao lado de Nossa Senhora do Rosário como patrono das confrarias de "homens pretos" – era também negro e filho de escravos etíopes, mas viveu toda a sua vida entre os brancos do sul da Itália. Nascido em 1524, em San Fratello, ele morreu aos 65 anos, na Páscoa de 1589, em Palermo, capital da Sicília.

Declarado livre ao nascer pelo senhor de seus pais, como recompensa ao bom comportamento e aos serviços por eles prestados no cativeiro, Benedito foi pastor de ovelhas e lavrador, antes de ordenar-se frade franciscano. No convento trabalhou como cozinheiro, razão pela qual tornou-se protetor de todos os que abraçam esse ofício.

Os milagres a ele atribuídos – como o de um almoço preparado por anjos – reforçaram a crença de que sua proteção, invocada por uma xícara de café colocada ao pé de sua estatueta nas cozinhas dos fiéis, é uma garantia contra a falta de alimentos, aos quais tem a imagem sempre associada.

Em outro milagre, ordenou a uma mãe que amamentasse o filho que ela julgava morto, e que teria voltado à vida em razão do contato com o seio materno. Essa criança é a que aparece nos braços do santo em todas as suas imagens.

Exemplo de virtude por observar votos de pobreza, obediência e castidade, chegou a ser nomeado administrador do convento, apesar de analfabeto. Os relatos de sua vida dão conta de que não usava calçados, dormia no chão sem cobertas e recusava qualquer forma de conforto material.

Em resumo, seu perfil era exatamente aquele que a ideologia do colonizador desejava inculcar no coração e na mente dos africanos escravizados: a de um negro dócil que suporta toda e qualquer adversidade, mantendo-se operoso em busca apenas do reconhecimento divino.

Dessa forma, seu mito foi difundido pelos religiosos incumbidos de catequizar a África, muito antes de sua canonização ser oficializada pela Igreja, o que só ocorreu em 1807.

"São Benedito chega ao Brasil a bordo dos navios negreiros, junto com a imagem de Nossa Senhora do Rosário, adotada pelos africanos por sua semelhança com Ifan, rainha negra que usava colares de contas", explica José Felício Murad, professor da Universidade de Taubaté, pesquisador da cultura popular no vale do Paraíba e organizador, há mais de 20 anos, da Festa de São Benedito em Aparecida.

Irmandades

Aqui, porém, o culto ao santo iria adquirir um caráter diverso, de resistência cultural e organização autônoma dos escravos que, impedidos de frequentar as igrejas dos senhores, obtinham, entretanto, permissão para fundar irmandades nos moldes das ordens terceiras, que abrigavam os leigos brancos vinculados, sobretudo, às tradições dos franciscanos, carmelitas e dominicanos.

As irmandades, além de sua finalidade religiosa, atuariam também como organização de auxílio mútuo – realizando cotizações para comprar alforrias – e como guardiãs dos usos e costumes tribais africanos entre seus membros, dando origem aos congos e moçambiques.

"Os congos são um bailado de origem africana que rememora costumes e fatos da vida tribal, como a entronização de um rei", explica Mário de Andrade na obra Danças Dramáticas do Brasil. Câmara Cascudo, em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, diz que a representação teatral refere-se à coroação do Rei Congo e da Rainha Ginga de Angola, retratando ainda as embaixadas trocadas entre as cortes negras. Ele acrescenta que as influências ibéricas fizeram com que as congadas também reproduzissem os combates entre mouros e cristãos – como se vê nas coreografias em que bailarinos entrecruzam bastões de madeira. O aspecto militar está presente inclusive na espada e no uniforme do capitão do grupo.

O moçambique difere da congada por dispensar a embaixada e pelos paiás, latinhas cheias de pequenas pedras amarradas no joelho ou no tornozelo, que ajudam a marcar o ritmo. Ambos representam uma herança cultural africana semelhante ao candomblé baiano ou ao maracatu pernambucano, só que de origem rural, popularizada mais nas regiões interioranas mineiras e entre os descendentes dos escravos que sustentavam a cafeicultura paulista.

Em 1757 foi criada a primeira Irmandade de São Benedito do vale do Paraíba, em Guaratinguetá, que organizou imediatamente a festa daquele que oficialmente ainda não era santo – a celebração aconteceu na Capela de São Gonçalo, outro santo de pele escura, indiano, detentor, assim como Santa Ifigênia, da preferência dos fiéis negros e pardos.

Sagrado e profano

A expansão do cristianismo sobre as ruínas do Império Romano evidenciou a dificuldade da Igreja em substituir as arraigadas crenças primitivas das populações rurais, tidas como bárbaras, e seus cultos solares e lunares associados à vida agrícola. Não por acaso as festividades de celebração do nascimento de Jesus e de São João Batista coincidem, respectivamente, com os solstícios de inverno e de verão no hemisfério norte.

Essa tendência a absorver de maneira sincrética as formas espontâneas e pré-cristãs de misticismo e religiosidade popular foi acentuada pelo Concílio de Trento (1545-63), que incentivou o culto às relíquias e às imagens dos santos por meio de festas e procissões que contrastassem com o despojamento das celebrações protestantes.

Por essa razão, já nos primórdios da colônia os portugueses – pontas de lança da Contrarreforma – realizaram na Bahia, com toda a pompa, em 1686, a primeira Festa de São Benedito em terras do Brasil.

Ao longo de todo o século 19, os aparecidenses frequentadores da Festa de São Benedito em Guaratinguetá voltavam pela estrada de terra acalentando o sonho de festejar o santo em sua própria localidade, na época apenas um distrito da cidade vizinha.

A imagem do santo já existia (a mesma de hoje) desde 1874, trazida de Portugal pelo capelão da Igreja de Nossa Senhora Aparecida e colocada em uma casa comercial. Em 1906 ela é levada para a Capela de Santa Rita, onde fica até a construção final da atual igreja do santo, em 1919. Esse fato será mais um a dificultar a separação entre o sagrado e o profano na Festa de São Benedito: para agradecer a estadia, todos os anos, na véspera de seu grande dia, o andor do santo negro sai em cortejo cercado de congadas para buscar a imagem da antiga anfitriã, que com ele dormirá nos dois dias seguintes, em honra do que mais parece ser um antigo namoro.

Em 1909, é fundada a Irmandade de São Benedito em Aparecida, que realiza no ano seguinte a primeira festa na cidade em moldes muito semelhantes aos atuais, com missa solene e procissão. A organização é atribuída aos reis, como hoje – sempre um homem e uma mulher, não necessariamente cônjuges –, auxiliados por centenas de pessoas com tarefas específicas (em 2009 foram 800 pessoas divididas em 35 equipes). Uma delas é o capitão do mastro, a quem cabe escolher o tronco que, pintado de branco e azul, no dia da festa será o centro de um ritual catártico: abençoado por um padre, será erguido diante da igreja, enquanto milhares de fiéis, aos gritos de "viva São Benedito", o reconhecerão como a incorporação do próprio santo. Devotos disputam o privilégio de carregar o mastro (que mede cerca de 15 metros) pelas ruas da cidade, tentam tocar nele, jogam no buraco de terra aberto para recebê-lo bilhetes com pedidos a São Benedito, e as congadas dançam à sua volta, celebrando a fertilização da terra, fonte da vida que nos dá água e alimento. Práticas consideradas mais profanas também acontecem na festa há cem anos: a distribuição de doces (atualmente 8 toneladas) e o desfile da cavalaria, hoje com mais de 1,5 mil integrantes, representando a versão urbana e moderna das ancestrais cavalhadas.

Redentoristas

Nos primeiros anos, a festa era realizada na Basílica Velha, até a Igreja de São Benedito ficar pronta. Em 1922 uma congada mineira se incorpora ao evento para cumprir uma promessa e desde então, a cada ano, em maior ou menor número, os grupos folclóricos transformam-se na alma da festa, louvando o santo em primeiro lugar com os pés.

A partir de 1973, a festa deixa de acontecer na segunda-feira após a Páscoa, para não coincidir com a homônima de Guaratinguetá, e passa a ser celebrada no fim de semana e segunda-feira seguintes. Por essa época, as crianças ganham também seu espaço: os bonecões de João Paulino e Maria Angu, tradição de São Luiz do Paraitinga (cidade próxima a Taubaté), passam a fazer a alegria da garotada com suas evoluções.

Outra inovação foi a Missa Conga, cujo principal celebrante é sempre um padre negro. Realizada num palanque na praça em frente à igreja, nela a flexibilização dos ritos admitida pelo Concílio Vaticano II para atrair mais fiéis atinge seu paroxismo: toda a liturgia, do começo ao fim, é entremeada por cantos populares e danças embaladas pelo rufar de tambores.

Ao longo desses cem anos, porém, as relações entre os promotores da festa e a hierarquia católica local nem sempre foram harmoniosas. Em 1894 o controle do santuário de Aparecida foi assumido por padres alemães redentoristas, ou seja, membros da Congregação do Santíssimo Redentor, fundada na Itália, em 1732, por Santo Afonso Maria de Liguori.

Eles representavam o ultramontanismo, como foi batizado, no século 19, o movimento articulado pelo Vaticano para retomar o controle das atividades e festividades que tinham ido parar em mãos de leigos nas ordens terceiras e irmandades, impondo um catolicismo hierarquicamente verticalizado. Tinham também a tarefa de organizar as romarias de forma programada, disciplinando as manifestações de fé popular.

Em relação às festas religiosas, embora nunca tenham chegado ao extremo da proibição – como ocorreu em São Luiz do Paraitinga, em 1922, com a Festa do Divino, por outros setores do clero –, faziam o possível para que nelas a reza fosse tão imóvel quanto o Deus concebido por São Tomás de Aquino. "Foram necessárias várias décadas até que um padre Marcelo Rossi – ‘gingão de batina’ – resgatasse a essência da afirmativa de Nietzsche: ‘Não acredito em um Deus que não dance’", explica o professor Isnard de Albuquerque Câmara Neto, autor do livro A Festa de São Benedito e os Redentoristas (Editora Santuário, Aparecida, 2009). De acordo com ele, os redentoristas bávaros, familiarizados com as práticas populares no Santuário Mariano de Altötting, em sua terra natal, gradativamente foram aceitando aquilo que de início qualificavam de um "barulho de negros", ao concluir que os cantos e danças não ameaçavam o "monopólio do sagrado".

Essa aliança tática rendeu bons frutos: graças à maciça adesão do povo aos santos de sua devoção, Aparecida permanece até hoje como cidadela fortificada do catolicismo, imune à invasão das seitas evangélicas que pululam em outras cidades brasileiras.

Como recompensa, os redentoristas abriram em 1997 para as congadas e os moçambiques não apenas as portas da Igreja de São Benedito, mas também as de ambas as basílicas. Em 2009, a festa chega à sua centésima edição, organizada pelos reis negros Toninho e Sofia, consolidando mais uma conquista dos afro-brasileiros no longo processo de luta pelos seus direitos e de afirmação de sua identidade cultural.

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