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As frestas necessárias no interior paulista

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti


Por Kátia Pensa Barelli


Não é à toa que o filósofo e antropólogo francês Edgar Morin nos ensina: “Qualquer que seja a cultura, o ser humano produz duas linguagens a partir de sua língua: uma, racional, empírica, prática, técnica; outra, simbólica, mítica, mágica”. O mundo prosaico, imerso nessa linguagem racional e objetiva, coexiste com o mundo poético, fruto da linguagem simbólica e subjetiva, mas raramente esses universos são igualmente valorados. O que se vê nas sociedades contemporâneas é uma extrema valorização do prosaico em detrimento do poético.

Pensemos nas ideias de capital e interior. As capitais são reconhecidas como regiões com maiores condições de (re)produção de riqueza material, mas com menor contato humano. Por outro lado, as cidades do interior aparecem no imaginário rodeadas de certo bucolismo, como locais onde as pessoas vivem com menos bens materiais, mas com mais ligação às suas práticas culturais tradicionais e relações mais próximas às pessoas e aos espaços.

O que precisamos, porém, é da harmonia entre esses dois mundos. Para sermos verdadeiramente prósperos, devemos congregar crescimento econômico a um amplo desenvolvimento cultural, em uma sociedade que conviva de forma saudável com o diverso, com o estrangeiro, com o diferente. É necessário que as pessoas tenham opções de lazer, de prática de atividades físicas e de fruição artística, mas que também possuam condições econômicas, além de tempo e energia vital para vivenciarem essas ofertas. Em outras palavras, é preciso que os lugares ousem ser capitais e interiores, cosmopolitas sem perderem de vista suas memórias e sua história, espaços que permitam o equilíbrio fundamental entre os universos poético e prosaico.

É uma utopia? Certamente, mas no sentido que o sociólogo português Boaventura Souza Santos dá ao conceito, “ao entender que existe algo radicalmente melhor, pelo o que vale a pena lutar e para o que a humanidade está completamente capacitada”.
Frestas – Trienal de Artes é um projeto que busca caminhar nessa direção. Criado por muitas mãos, seu mote é envolver a cidade de Sorocaba em torno das questões trazidas pela arte contemporânea. São dezenas de trabalhos de artistas, em sua maioria inéditos ao público sorocabano, que ocupam o Sesc e outros espaços da cidade. Alguns deles, inclusive, inéditos no Brasil.

O evento nasce com o compromisso da permanência, com o entendimento da arte não como texto a ser lido, mas como pretexto para reflexões e ações que possam reverberar após a realização da Trienal. Nasce, sobretudo, com o compromisso de envolver os artistas, no sentido de fortalecer uma cena artística que vem crescendo no interior.

Nos anos 90, o Sesc correalizou um projeto que mobilizou artistas de Sorocaba chamado Terra Rasgada, uma referência ao nome da cidade, cuja origem etimológica está nos termos tupi guarani sorok (rasgar) e aba. Foi um momento marcante que criou uma efervescência cultural e é lembrado ainda hoje, após mais de 15 anos, por artistas e pelo público. Frestas é, assim, resultado de uma ressignificação do Terra Rasgada, por meio de uma nova possibilidade de tradução do nome da cidade. É no lugar da rasgadura onde surgem as frestas possíveis e necessárias.

As cidades do interior do estado de São Paulo passam notadamente por um amplo e crescente desenvolvimento econômico. Para o poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz: “a poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de mudar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de liberação interior. A poesia revela este mundo; e cria outro”. E, para que o prosaico não prevaleça, que se criem, pois, outros mundos por meio das marcas irreparáveis e transformadoras deixadas pela poesia e pela arte.


Kátia Pensa Barelli, formada em Comunicação Social e mestre em Comunicação e Cultura,
é coordenadora de programação do Sesc Sorocaba