
Por Cibele Mateus1
Senhores, senhoras e senhorios, menines de todo lugar. Antes que nada, primeiro que tudo. Peço licença pra eu poder aqui falar, ou melhor, escrevinhar. Sobre o circo daqui e de acolá, o respeitado circo popular. E, pra começar esta conversa, uma memória-saltimbanco de infância vou aqui evocar. Memória feita de remendos catados, do que lembro, do que peguei emprestado e também um pouco do que inventei e tomei como existido.
Era começo dos anos 90, eu devia ter 5 anos de idade. Como algo vindo de outro mundo, apareceu um circo de lona montado num terreno baldio em São Bernardo. Ali, bem na borda do campo. O carro de som passou no meu bairro, Parque Imigrantes, anunciando sua chegada. A atração principal era o show da “Angélica”. Imagine, um circo passando na nossa quebrada rural e trazendo uma famosa da TV! Minhas irmãs, minhas primas e eu ficamos alvoroçadas, vestimos nossa melhor roupa -, roupa de missa, como dizem os antigos – e fomos ao circo.
Sei que não vou surpreender ninguém dizendo que a Angélica não era a verdadeira, e sim uma sósia. Minha irmã mais velha, a Nêga, lembra que “fizeram a mancha na perna da sósia de ca-ne-ti-nha, toda torta, dava pra ver por cima da meia calça, era falsa”. Eu não me lembro do rosto dela, mas a Lene, minha segunda irmã mais velha, disse que “a Angélica parecia mais a nossa vizinha Sandra, só que com o cabelo pintado de loiro”. E a Cíntia, minha irmã do meio, completou a colcha de memórias dizendo que a falsa Angélica chamava as crianças no palco para cantar, ela se esgoelou para participar, mas não foi escolhida. A Lene lembra bem que esse circo tinha animais e também promoveu um concurso de lambada.
Esse circo mambembe do qual não sei o nome, feito de gente com a cara da nossa vizinha, gente negramestiça, indígena, cigana, deficiente, trans… essa gente da chamada classe popular, é esse circo que caminha pelas estradas encantando os mais diversos cafundós dos Brasis, incorporando em suas apresentações, além de virtuosismos milenares do circo, o chamariz popular do momento. Na minha época era a lambada, a Angélica, a Xuxa, o . No desembrulhar do tempo para trás e para frente, já foram os artistas de feiras, o sertanejo, a comédia, o drama, Patati Patatá, Peppa Pig, Harry Potter e tantas outras atrações que pudessem/podem atrair o público, principalmente das classes subalternas, para dentro do espaço de apresentação.
As expressões artísticas que compõem o circo: acrobacia, malabarismo, pirofagia, contorcionismo, pernas de pau etc., são manifestações existentes em várias civilizações antigas, como China, Grécia, Roma e Egito, desde tempos imemoriais. Para alguns historiadores, o circo moderno começou no século 18, quando Philip Astley, um ex-militar da cavalaria britânica, “criou” um espaço fechado de madeira com uma pista circular e arquibancadas ao redor e incorporou às suas apresentações equestres números de artistas chamados de “saltimbancos”, que dominavam diversas linguagens artísticas e se apresentavam nas feiras, ruas e praças. E não só, o moço colocou de um tudo dentro desse espaço. Artistas de diversos teatros, artistas herdeiros da commedia dell’arte, ciganos, mágicos, bonequeiros, dançarinos, cantores, músicos, acrobatas, cômicos em geral, hipódromos. Era coisa, viu? Tudo para deixar as apresentações com ritmo, oferecer um entretenimento diferente ao público e fazer dinheiro, lógico, porque de bobo, nem o da corte. (ABREU, SILVA, 2009).
As primeiras manifestações circenses chegaram em terras Pindorama antes mesmo das famílias circenses europeias. Daniel Lopes e Eliene Benício2 nos contam que temos registros de artistas saltimbancos no século 18 no Brasil. Eram provavelmente ciganos, faziam números com cavalos, adestramento de ursos, e se apresentavam com pessoas que vão compor o universo circense, malabaristas, acrobatas e assim por diante.
Foi no século 19 que as primeiras companhias circenses, que tinham como modelo de apresentação o circo moderno de Astley, chegaram ao Brasil, sendo a família inglesa Southby a primeira de que temos registro oficial, em 1818, no Rio de Janeiro.
Uma das principais características da linguagem circense sempre foi a contemporaneidade, com uma capacidade de se mover fisicamente, por seu caráter ambulante, e também de promover muitas movências estéticas, técnicas e poéticas, sempre agregando o que há de novo, como um rizoma que contempla multiplicidades de culturas. E é honrando esse fundamento que, ao chegar ao Brasil, o circo estabeleceu relações singulares com elementos sociais, políticos, econômicos e culturais, criando aos poucos uma identidade própria.
Na historicidade do circo no Brasil, temos diversas passagens que podem descrever como essa identidade foi e continua, pois não é estanque, muito menos única, se formando. A dança, a música, o teatro, a capoeira, o lundu e outras práticas culturais foram adentrando o circo durante os séculos, não somente como uma forma de agradar e trazer o público para suas apresentações, mas também como posicionamento político.
Um exemplo disso foram os campeonatos da capoeiragem,3 promovidos no Circo Spinelli em 1913, assim como a destinação de parte do dinheiro de duas apresentações do mesmo ano a João Cândido, líder da Revolta da Chibata.4 Ações que apontam a tecnologia de captação de público e demonstram como a produção do circo sempre esteve imersa e antenada ao seu período histórico (SILVA; LOPES et. al, 2020).
A biografia de vários artistas brasileiros passa pelo circo, como a de Tonico e Tinoco, que, além de se apresentarem como cantores, também tiveram seu próprio circo, Irmãs Galvão, Tião Carreiro e Pardinho, Trio Parada Dura e outros artistas da cultura sertaneja. Artistas do samba como Adoniran Barbosa também marcaram presença no picadeiro. Pixinguinha fez composições para circo. Grande Otelo começou a atuar em circos ainda criança. E não poderíamos deixar de mencionar Benjamim de Oliveira, que é considerado o primeiro palhaço negro de que temos registro e um importante artista empreendedor, que consolidou o circo-teatro no Brasil, sendo autor e diretor de textos e músicas de diversos espetáculos. E muitos outros nomes importantes, que este pequeno texto inacabado não dará conta de escrevinhar, assim como tantos outros nomes desconhecidos que a história não cuidou de registrar. Como a Angélica do circo surgido na borda de São Bernardo, que, além de representar a personagem icônica, provavelmente era trapezista, equilibrista, pipoqueira e bilheteira desse grande circo desconhecido.
Inúmeras companhias e circos, familiares ou não, vindos do estrangeiro ou constituídos aqui no território brasileiro, não foram/são registrados. A grande Erminia Silva se dedicou com paixão a pesquisar e historiografar o circo, deixando um legado riquíssimo. Aponto aqui também o esforço sankofiano de Mariana Gabriel5 de olhar o passado para alavancar histórias de sua avó, Dona Maria Eliza Alves dos Reis, o palhaço Xamego, grande atração do Circo-Theatro Guarany nos anos 1940.
Em um processo de afetações culturais, percebo que não somente o circo incorporou expressões da cultura brasileira como, em outra via, manifestações tradicionais também aderiram ao imaginário circense. Isso se dá por exemplo na brincadeira do Cavalo Marinho da Zona da Mata Norte de Pernambuco, onde encontramos as figuras6 do “Italiano e o Urso”. Assim como La Ursa, presente no Carnaval do Nordeste. Essas figuras podem revelar a presença de artistas mambembes independentes ou provenientes de circos, que chegaram a estes lugares com esse animal, que sabemos não ser originário do Brasil.
Acredito que o imaginário do/a/e palhaço/a/e do circo também tenha influenciado a nomenclatura de figuras cômicas presentes em manifestações afro-indígenas brasileiras, como a figura do Mateu,7 que no Reisado de Congo do Ceará é chamado de “palhaço Mateu”, assim como as figuras dos soldados da Folia de Reis são chamados de “Palhaços da Folia”. Apesar de essas figuras terem fundamentos próprios, elas possuem o gracejo, a desenvoltura do corpo, piadas e presepadas que se assemelham aos do/a/e palhaço/a/e.
Sebastião Pereira de Lima, conhecido como mestre Martelo, é o Mateu de Cavalo-Marinho mais antigo em atividade. Ao falar sobre o que uma pessoa precisa para ser Mateu, ele diz que: “Para ser Mateu, você precisa ser Mateu e palhaço ao mesmo tempo”, e completa dizendo que: “Assim como não existe circo sem palhaço, também não existe Cavalo-Marinho sem Mateu”. Aqui, como nos ensina Nêgo Bispo,8 Mateu e Palhaço confluem sem se sobrepor.
Uma vez assisti ao Cavalo-Marinho do mestre Zé de Bibi, em Glória do Goitá, e fiquei impressionada com a figura do “Samba Aqui” e a similaridade com a estrutura da esquete clássica de palhaçaria “Aqui não pode tocar”.
Saloma Salomão conta que no Brasil, até os anos 1960, antes do rádio, da televisão e do futebol se tornarem as principais formas de entretenimento, eram os festejos populares, ao lado dos circos e lonas mambembes, as principais práticas de diversão e religiosidade das classes pobres. (SALOMÃO et al., 2024).
A professora Eliene Benício relatou em uma entrevista uma cena que viu em Itabuna, município da Bahia, terra onde ela nasceu. “Eu fui em um cirquinho bem mambembe e fiquei chocada de ver que os artistas colocaram o bode para atravessar na corda bamba.”
Um bode na corda bamba! Lá nas Europas tinha os hipodramas, um tipo de espetáculo teatral combinado com circo e cavalos, onde o cavalo muitas vezes era o ator principal. Mai mininu… Aqui a gente tem o bode na corda bamba!
Vou parando por aqui, que está dando a minha hora, mas, como em todo festejo, no momento da despedida não dá vontade de ir embora. Vou escreviver mais uma coisinha e saio com a caipora.
O fato é que o circo e seus diversos agenciamentos foi, é e continuará sendo popular. E não digo isso de forma romantizada. Sabemos que o termo “popular” foi e ainda é tratado em oposição ao que se diz erudito, como menor ou artisticamente pobre. A questão é que, sem o popular – sem o povo que faz o popular, essa gente pertencente ao estrato mais baixo da sociedade, que tem seus linguajares, territórios e culturas próprias e são a base racializada que sustenta todo país colonizado -, o circo como linguagem não existiria no mundo.
O circo popular é potência inventiva constante, abarca múltiplos saberes e está sempre se atualizando. É o que faz essa arte ser tão re-existente, tão a cara da vizinha Sandra com o cabelo pintado de loiro.
Viva o circo popular! Viva o circo daqui e de todo lugar!
Cibele Mateus é artista da cena, pesquisadora e atuadora da figura do Mateu, presente em diversas brincadeiras populares brasileiras.
1 Artista da cena, diretora, educadora social e pedagoga. Desde 2005 desenvolve seus trabalhos cênicos a partir de motrizes e matrizes afrodiaspóricas e afroindígenas, tendo a rua como principal espaço de atuação. Vem fazendo sua trajetória de arte e vida com a pesquisa e prática da máscara de negrume da figura do “Mateu”, presente em diversas manifestações populares brasileiras. Organizou junto a Odília Nunes o livro Mateus de uma vida inteira, de autoria de mestre Martelo, de quem é discípula.
2 Referência retirada do podcast “O circo no brasil: um pouco de história para começar”, descrita nas referências bibliográficas.
3 Referente à capoeira, expressão afro-brasileira que mescla música, dança e luta, desenvolvida no Brasil por escravizados e descendentes.
4 A Revolta da Chibata foi um motim realizado por marinheiros no Rio de Janeiro em novembro de 1910, como protesto contra as más condições de vida e de trabalho nas Forças Armadas e o uso de chibatadas por oficiais navais brancos ao punir marinheiros negros.
5 Mariana Gabriel é jornalista e se dedica a pesquisar a origem de sua família circense. Realizou a série documental Guarany, Histórias do Circo dos Pretos, que apresenta a história de João Alves da Silva, fundador do Circo-Theatro Guarany e pai do palhaço Xamego, interpretado pela artista Maria Eliza, avó de Mariana.
6 Podemos associar a nomenclatura “figura” a personagem. As figuras utilizam máscara inteira, de couro, de papel machê ou pintura (de carvão ou farinha de goma) no rosto.
7 Figura cômica presente em diversas manifestações brasileiras, que pinta o rosto (máscara) de carvão ou tinta preta para saudar a ancestralidade africana.
8 Antônio Bispo dos Santos (1959-2023), popularmente conhecido como Nêgo Bispo, foi um filósofo, poeta, escritor, professor, líder quilombola e ativista político brasileiro. É considerado um dos maiores intelectuais do Brasil.
ABREU, Luiz Alberto de; SILVA, Ermínia. Respeitável público: o circo em cena. Rio de Janeiro: Funarte, 2009.
Benício, Eliene; Dal Gallo, Fábio; Bolognesi, Mário Fernando (Orgs.). O Circo: Ontem e Hoje. Cadernos do GIPE-CIT, n. 44, 2020. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/gipe- cit/article/view/61242. Acesso em: 18 de maio 2025.
CHICO, Vinícius; SARAIVA, Fagner; PEQUENINO, Mafalda (Org.). Comicidades e palhaçarias negras. 1. ed. São Paulo: Ed. dos autores, 2024.
LIMA, Sebastião Pereira de. Mateus de uma vida inteira. Organização: Cibele Mateus; Odília Nunes. 1. ed. Pernambuco. Ed: dos autores, 2024.
O CIRCO NO BRASIL: UM POUCO DE HISTÓRIA PARA COMEÇAR (2ª TEMPORADA. EP.009).
[Locução de]: Felipe Nickning. Entrevistada: Daniel Lopes e Eliane Benício. [S.l.]: Catavento companhia Circense; Spotify, 10 jan. 2003. Podcast. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/549LFAUUMGXj43NYOcpWrQ?si=4kTcrvR0Qa2jmulmu2d-Tg. Acesso em: 22 mai. 2025.
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