Escriturgências na contemporaneidade circense 

30/07/2025

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Por Diocélio Batista Barbosa 

Ao lançarmos nossas percepções em torno das cenas, festivais e atividades formativas circenses na contemporaneidade, é possível observarmos iniciativas produzidas por grupos, artistas e instituições que se relacionam com a noção de composição, seja a nível micro, no qual as subjetividades e os quereres pessoais são evidenciados durante a condução e a concepção dessas iniciativas, seja na dimensão macro, em que os desejos que envolvem a sociedade como um todo se tornam basilares na condução das atividades específicas de cada um dos 3 segmentos referenciados.  

Analisando a cena circense, é possível perceber aspectos recorrentes nas estruturas dramatúrgicas de algumas obras, tais como: 1. Camadas discursivas que versam sobre aspectos do ativismo das sujeitas e dos sujeitos em sociedade; 2. Depoimentos pessoais dos próprios corpos-performers; e 3. Estruturas narrativas que são construídas a partir de documentos e arquivos pessoais ou públicos. Diante desse cenário, podemos constatar que o virtuosismo técnico não se torna o ponto de partida ou um fim em si mesmo no ato criativo desses e dessas artistas. Portanto, são obras que aglutinam as habilidades como um dos muitos outros recursos disponíveis em um processo de composição dramatúrgica, o que, dessa forma, cria uma rede de diálogos entre os diversos elementos cênicos, dissipando aspectos hierarquizantes e dominantes tão presentes na história do circo. Dessa maneira, a tão almejada dramaturgia do risco se torna apenas uma dentre tantas outras que emergem dentro de processo composicional, o que amplia a artesania de uma cena que traz outras camadas para além de um viés meramente estético. Contudo, é importante frisar que, com esta reflexão quer anular o aprimoramento técnico, e sim expandir a sua ação no processo de composição das dramaturgias circenses.   

Essas estratégias de composição dramatúrgica foram consideradas como tendências contemporâneas circenses no estudo realizado por este autor e pela autora Maria Carolina Vasconcelos, no estudo intitulado Pluralidades Dramatúrgicas nos Circos Contemporâneos (BARBOSA, OLIVEIRA, 2021) como sendo tendências contemporâneas circenses. Portanto, é nesse contexto que, na  narrativas e subjetividades levadas à cena, que trazem consigo um desejo de ecoar as vozes discursivas dos próprios corpos-performers, que venho denominando na minha pesquisa doutoral de Escriturgências.   

O que se percebe é que essas formas desviantes de escritas dramatúrgicas provocam no público um sentimento de estranhamento, talvez porque receba essas obras a partir de uma perspectiva imersa em um imaginário romântico do circo; uma vez que ele não é contemplado, se efetiva esse fenômeno reativo. Este me parece ser um dos grandes desafios dos e das artistas na contemporaneidade: dialogar com a recepção mas, ao mesmo tempo, não se deixar enclausurar em padrões hegemônicos de arte, ou ainda em modelos e normas rígidas preestabelecidas. 

Vale salientar que essa busca não é mero estilo, investigação de linguagem ou ainda tentativa de tematizar uma obra; ao contrário, essas escolhas buscam um contraponto e um desvio dos modelos preexistentes, o que vem revelar dramaturgias com camadas de alteridades, ou seja, que se voltam para a existência de outras realidades narrativas, para além daquelas questão postas como estéticas imutáveis. Dessa perspectiva, os agenciamentos são bem mais complexos, uma vez que os discursos que os criadores e as criadoras trazem em suas obras são tensionados desde a gênese da concepção da obra, ou então nascem durante o processo de criação – de todo modo, isso acontece se há um processo investigativo profundo. Portanto, essas estratégias escritas não estão apartadas do processo de investigação prática e não são adotadas por mera casualidade, e sim devido a fatores conscientes que versam sobre aspectos do urgente e do emergente.  

Venho percebendo que a noção de Escriturgências pode atuar como uma espécie de “guarda-chuva”, onde se abarca uma multiplicidade de tendências. Dessa forma, identifico em certas produções aspectos que caminham por narrativas autobiográficas, documentárias, políticas e ecoperformativas.  

Por outro lado, vale salientar que as Escriturgências não estão restritas apenas ao âmbito espetacular, isto é, cerradas nas estruturas dramatúrgicas dos espetáculos circenses. Podemos ampliar essa percepção ao encontrarmos esses aspectos no processo curatorial de um festival de circo, por exemplo. Programadores de festivais circenses na atualidade estão ampliando seus conceitos e formas de compor as programações quando se utilizam, como fontes basilares, de obras que apresentam escritas da urgência e da emergência dialogando diretamente com a nossa contemporaneidade. 

A nível de exemplificação, podemos citar a sétima edição do CIRCOS – Festival Internacional Sesc de Circo, realizada em 2023, que ofereceu em sua programação obras com tais perspectivas, para citar algumas: Yé – Água, do grupo Circus Baobab, da Guiné, que foca na desigualdade da distribuição de água potável no planeta; King Kong Fran, apresentado por Rafaela Azevedo, que por meio da palhaçaria feminina traz reflexões sobre sexualidade e distinção de gênero como construção social, e outros temas tabus; Circo de los Pies, com atuação da artista Emeli Bruna Barossi, obra que apresenta uma narrativa a partir das memórias, potências e limitações do corpo, discutindo questões como acessibilidade e inclusão; e por fim Colibri – Uma Fábula Circense Latino-americana, do coletivo Um Café da Manhã, que trouxe em cena a parceria entre artistas do Brasil, México, Peru e Colômbia, para debater questões como decolonialismo e identidades latino-americanas. 

No âmbito de um cenário formativo em que se estimula a criação de uma escrita autoral circense, as experiências que venho acumulando desde 2021 como provocador em um curso norteado pelas poéticas da Escriturgências me levam a perceber que existe uma facilidade na eclosão dessas narrativas, que de alguma forma se presentificam como desejos artísticos latentes, prontos para ganhar vida. Talvez o que se necessitaria seria uma maior difusão dessas metodologias de composições dramatúrgicas no/para o circo. Acreditando nessa hipótese, fui impulsionado a estimular a criação de um e-book, intitulado Dramaturgias Circenses: escritas em processo,3para que essas vivências e metodologias fossem partilhadas. A obra foi lançada como uma coletânea de escritas emergidas durante uma atividade formativa promovida pelo Sesc Avenida Paulista, em São Paulo, no ano de 2021. Dessa forma, as dezoito dramaturgias em processo, compiladas nesse título que versa sobre questões relativas à autobiografia, à autoficção e à política, foram tramadas, trançadas, alinhavadas por autoras e autores latino-americanos que se relacionaram diretamente com um processo composicional cuja base metodológica foi a noção de Escriturgências como base metodológica para a criação dessas escritas.  

Diante disso, o que se percebe é a existência de um devir dramatúrgico, no qual não há uma superação ou a crise de uma forma em detrimento de outras, o contemporâneo versus o tradicional; o que se estabelece é uma relação de recriação, de atualização, de um fluxo permanente que confirma a multiplicidade da linguagem circense. Portanto, se concretizam processos de composições de Escriturgências em uma cena circense plural. 

Referências:  

BARBOSA, Diocélio Batista; OLIVEIRA, Maria Carolina Vasconcelos (org.). Circo e comicidade: reflexões e relatos sobre as artes circenses em suas diversas expressões. São Paulo: Paco Editorial, 2021.  

BARBOSA, Diocélio Batista (org.). Dramaturgias Circenses: escritas em processo [livro eletrônico]. João Pessoa, PB: Diocélio Batista Barbosa, 2021. Disponível em: www.arlequinoproducoes.com/dramaturgiascircensesescritasemprocesso. Acesso em 21 maio 2025. 

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