Artigos refletem sobre a poética e a função crítica da arte do circo

31/07/2023

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O circo é “essa arte que combina linguagens, desafia regras, que joga com o impossível, com os limites, a proeza, a poética, a política”, descreve a professora argentina Julieta Infantino, organizadora do recém-lançado A arte do circo na América do Sul: trajetórias, tradições e inovações na arena contemporânea (Edições Sesc São Paulo, 2023), com tradução de Adriana Marcolini.

Fazer artístico que atravessa séculos carregando uma diversidade de estéticas e poéticas que espelham a beleza do extraordinário, mas que também desvelam críticas sociais, a arte circense entra, nos últimos anos, na arena dos espaços teóricos e práticos da cena cultural sul-americana.

Diante disso, A arte do circo reúne artigos acadêmicos e ensaios de autores-atores da Argentina, do Brasil, Chile e Uruguai, que fazem do circo um ofício e uma fonte de pesquisa. Dividido em cinco partes, o livro congrega revisões críticas sobre a história desse gênero artístico e suas representações na atualidade, classificações e conceitos estético-temporais – como “circo tradicional”, “novo circo” e “circo contemporâneo” –, tensões entre criatividade e técnica, bem como depoimentos de artistas, gestores e referências da área.

Neste Em Pauta, excertos de dois artigos publicados na obra trazem à lona importantes reflexões. No primeiro, a pesquisadora argentina Erica Stoppel, cofundadora e performer do coletivo Piccolo Circo Teatro de Variedades, investiga o circo como espetáculo e produção de linguagem; e no segundo texto, o fundador e diretor do Circo Mínimo, Rodrigo Matheus, traça um arco temporal das transformações atravessadas pelo fazer circense no Brasil. Boa leitura!

Ofício, técnica e arte no circo

Por ERICA TOPPEL (ARGENTINA)

Se antigamente o circo era privilégio dos herdeiros de um saber familiar, hoje ele é povoado de integrantes dos mais diversos segmentos da arte, do esporte e de manifestações da cultura popular. Faço parte do que poderíamos chamar de geração da transição, aquela que aprendeu o caminho entre a vida no circo e a formação em escolas. Na minha época, aprender circo significava aprender as técnicas, saber o ofício. Claro que a esse saber se agregavam conhecimentos de outra natureza, como fazer um aparelho, instalá-lo na lona, subir na lona para uma lavagem coletiva e muitas outras coisas relativas aos materiais de trabalho, mas também à ética do período: o respeito aos mestres da tradição, a nobreza de pisar no picadeiro como artista e o culto às formas e às habilidades do corpo.

Ao falar de circo neste texto, meu recorte é o fazer artístico, o circo como espetáculo e a produção de linguagem. No decurso dos estudos que deram origem à minha pesquisa de mestrado, intitulada O artista, o trapézio e a criação: reflexões de uma artista circense da cena contemporânea [Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas – IA/Unicamp, 2017], entrei em contato com o texto de Mário de Andrade (1893-1945) O artista e o artesão, no qual ele trata de artesanato, técnica e obra de arte para entender a formação de um artista.

De início, o autor distingue arte de artesanato: “A arte na realidade não se aprende. Existe, certo, dentro da arte, um elemento, o material, que é necessário pôr em ação, mover, para que a obra de arte se faça. O som em suas múltiplas maneiras de se manifestar, a cor, a pedra, o lápis, o papel, a tela, a espátula, são o material de arte que o ensinamento facilita muito a pôr em ação. Mas nos processos de movimentar o material, a arte se confunde quase inteiramente com o artesanato. Pelo menos naquilo que se aprende. Afirmemos, sem discutir por enquanto, que todo o artista tem de ser ao mesmo tempo artesão. Isso me parece incontestável e, na realidade, se perscrutamos a existência de qualquer grande pintor, escultor, desenhista ou músico, encontramos sempre, por detrás do artista, o artesão”.

Observo que, no circo, adquire-se o artesanato na construção de um conhecimento que se dá tanto na transmissão de mestre para discípulo como na prática do ofício. Entendo, ainda, que certas características da linguagem circense parecem sugerir que, para se expressar nessa linguagem, o domínio de certas habilidades é imprescindível (seria difícil imaginar um trapezista voar numa grande altura sem uma preparação anterior ou desenvolver alguma rotina ou coreografia sem ao menos ter uma vivência razoável no aparelho).

No circo, existem categorizações para as habilidades circenses, e um conjunto de habilidades configura uma modalidade. Um acrobata aéreo, por exemplo, tem domínio do seu corpo e consegue evoluir em figuras e sequências num aparelho que o deixa distante do solo ou em pouco contato com ele. Tanto nos programas de apresentação dos circos como no ensino das escolas, as modalidades se dividem entre a arte equestre, a doma, a manipulação de objetos (antigamente chamada de malabarismos), as acrobacias, os equilíbrios, as técnicas aéreas, o ilusionismo e a palhaçaria.

Essas modalidades, por sua vez, podem se combinar entre elas, como se observa nas acrobacias que acontecem no ar em aparelhos como a báscula, a maca russa, o quadrante, o trapézio de voos e muitos outros. Fazer malabarismos sobre o arame ou dar um salto mortal sobre o cavalo são, por exemplo, combinações usuais. Entretanto, assim como essas modalidades conhecidas são nomeadas e classificadas, poderiam ser criadas outras. Observa-se que é difícil distinguir as habilidades de acordo com as modalidades, pois, apesar de cada modalidade ter características e exigências particulares, esses limites não são rígidos. La maîtrise personnelle, ou a habilidade pessoal, será sempre de natureza muito distinta e, mesmo considerando as diferentes classificações encontradas nas artes do circo, novas especialidades ou expertises sempre poderão aparecer.

Observo que, no circo, adquire-se o artesanato na construção de um conhecimento que se dá tanto na transmissão de mestre para discípulo como na prática do ofício

A determinação das habilidades que se devem adquirir para se ter o ofício circense será distinta para cada sujeito. Por um lado, porque não existem padrões delimitados que definam se uma habilidade faz parte ou não de uma modalidade determinada; por outro, porque a diversidade da linguagem sugere permanentes invenções ou recriações. Um artista que tenha grandes habilidades na contorção poderá se desenvolver, por exemplo, no trapézio, favorecendo a utilização de movimentos de extrema flexibilidade, enquanto outro trapezista poderá se valer de movimentos que exijam mais força ou dinamismo.

Ser o homem faquir que se deita sobre vidros e come vidros pode ser a habilidade de um circense. Ser expelido por um canhão, como no número do homem-bala, também é uma especialidade. Montar diante dos olhos do espectador uma estrutura de estabilidade aparentemente frágil, com sarrafos engrenados do modo como castores constroem seus diques, e realizar uma figura de equilíbrio em seu topo, a seis metros de altura, é uma habilidade circense.

Costumo dizer que o artista de circo vive do seu truque. Um trapezista de voos que é segundo volante pode passar a vida inteira ganhando salário por seu duplo salto mortal estendido. Um malabarista pode ser lembrado por ser o homem que faz cinco bolas rebotarem no chão enquanto provocam determinada melodia. Ou, sem ir muito longe, uma aerialista [pessoa que pratica acrobacias aéreas] pode ter um excelente giro de nuca, e esse ser sempre o grande trunfo da sua apresentação. O truque, em todos esses casos, é uma especialidade do ofício.

Identifico-me com a definição de Alice Viveiros de Castro, que afirma que o “circo é a arte do insólito, do inesperado, do surpreendente. […] O circo é a arte do diverso. Tudo cabe debaixo de uma lona, tudo pode entrar na roda mágica do picadeiro”. Nesse sentido, o circo se caracteriza, por excelência, como a arte da diversidade, primando pelo exótico, pelo novidadeiro, pelo surpreendente e pela expectativa de fazer surgir uma nova habilidade ou mesmo pela reinvenção de uma antiga, o que me leva a pensar na possibilidade de que surjam novas modalidades ou que o termo “modalidades” possa ser questionado.

Em geral, os artistas circenses conhecem mais de uma modalidade, mas, de forma mais ampla, minha experiência me faz pensar que o ofício do circense parece se sustentar numa apropriação técnica muito apurada no trabalho com um determinado objeto ou material, ou com o próprio corpo, com o próprio corpo em relação a outro, com ou sem aparelhos, construções, objetos ou materiais. Nesse processo, o corpo ganha habilidades muito específicas, que lhe permitem realizar ações incomuns, inusitadas ou arriscadas. Esse corpo se constrói, torna-se extraordinário e, para isso, sofre adaptações, às vezes lesões, mas, ainda assim, treinado para um determinado fim, deixa de ser um simples corpo humano e se manifesta como sobre-humano.


Erica Stoppel é trapezista, cofundadora e performer do coletivo Piccolo Circo Teatro de Variedades e do Circo Zanni. Também é cofundadora da Cia. Nau de Ícaros, onde atuou de 1993 a 1997. Foi professora e orientadora, de 2003 a 2011, no Cefac – Centro de Formação, e é colaboradora de casting do Cirque du Soleil desde 2000.

“Artes do circo”: arte “popular” ou simplesmente arte generosa? Possibilidades para o futuro do circo no Brasil

Por RODRIGO MATHEUS (BRASIL)

O circo sempre sofreu grandes mudanças em sua história, mas, a partir do final da Segunda Guerra Mundial, houve transformações políticas e sociais no Brasil que alteraram o modo de vida circense. Pela opção de alinhamento com as políticas econômicas do governo norte-americano, o governo brasileiro optou por construir rodovias, relegando as ferrovias a um lento esquecimento que favoreceu as montadoras de automóveis. Isso fortaleceu também as construtoras, que mantêm grande poder político e econômico até hoje, mais do que poderia ser aceito por governos democráticos. Essa opção obrigou diversos circos a adquirir caminhões, em vez de alugar vagões de trem, mas possibilitou uma liberdade maior aos artistas, que passaram a trocar de empregador com maior frequência.

A partir dos anos 1950, os brasileiros começaram a valorizar a especialização, em detrimento da formação generalista. Famílias que formavam seus filhos em ofícios familiares passaram a preferir a escola formal, uma educação “de verdade”, para dar a seus filhos melhores condições de vida. Assim, muitas famílias passaram a enviar os jovens para grandes cidades. Isso aumentou a densidade urbana e diminuiu a rural. Para o modo de vida circense itinerante, essa mudança foi decisiva.

Além de muitos circenses passarem a preferir uma especialização, uma única técnica na qual fossem muito bons, deixando outras de lado, o número de descendentes aprendendo na “escola única e permanente”, que era a lona, diminuiu substancialmente. A principal consequência desse processo para o circo foi a fundação de escolas, inicialmente para a preparação dos filhos de circenses que não mais estudavam na lona itinerante. Mas isso não ocorreu. Poucos foram os que buscaram as escolas de circo, surgidas no Brasil no final dos anos 1970 e início dos 1980. Na verdade, pessoas de vários meios, além dos próprios circenses, buscaram esses espaços, fato que só aumentou a disputa por rótulos.

De acordo com a historiadora Erminia Silva, “Arthur Azevedo não deixou de expressar as relações tensas que mantinha com as companhias circenses que ‘invadiam’ os ‘templos do teatro nacional’” [trecho do artigo Arthur Azevedo e a teatralidade circense (Revista Sala Preta, 2006)]. Também é possível ler várias matérias em jornais abordando a “crise” por que passava o “verdadeiro circo” desde os anos 1950. A partir dos anos 1970, circenses de lona tentaram se reapropriar do conceito de “circo tradicional”, demandando para si o crédito de únicos detentores da “verdadeira arte circense”, já que surgia, a partir das escolas de circo, um movimento de “novos” circenses, clamando para si a responsabilidade da renovação da linguagem. Nesse caso, os “tradicionais” implicavam que esses “novos”, mais tarde “contemporâneos”, não eram circenses, apenas amadores.

Esqueciam que muitos lograram fazer disso um modo de vida e passaram, sem problemas, a se denominar circenses. No nosso trabalho, optamos por estar de acordo com Alexandre Roit, palhaço e pesquisador circense paulistano que, em entrevista [para a minha dissertação de mestrado], afirmou: “O que é ser circense? Acho que é suficiente você se reconhecer circense e o seu entorno reconhecer isso em você. Nenhuma das duas isoladas atende ao ser circense. Se uma das coisas não acontecer, a coisa não funciona. Por mais que o que seja ser circense seja completamente dúbio”.

Paralelamente, os novos e contemporâneos consideravam-se a nova expressão do circo em oposição ao que era velho. Passaram a defender o protagonismo da tão esperada renovação da linguagem – na época (1970-80), vários dos espetáculos que se apresentavam na capital paulista se repetiam e não agradavam uma parte dos alunos recém-iniciados nas escolas de circo. Aqueles alunos esqueciam-se de que o circo sempre tinha sido “novo”, sempre tinha sido “contemporâneo” a seu tempo, já que sempre respondeu e assimilou as inovações técnicas, estéticas e de gênero artístico, bem como a mistura de linguagens que, de certa forma, caracterizam muitos grupos contemporâneos. O circo sempre foi uma arte miscigenada, múltipla e generosa, que aceita quase tudo. Não nos esqueçamos: ele surgiu da mistura do teatro com a acrobacia, os saltimbancos e apresentações militares com animais.

O circo é múltiplo, misturado, diverso, diferente e generoso. Generoso como modo de produção, como linguagem artística, como grupo social

Em 1997, uma matéria no jornal O Estado de S. Paulo falava sobre o Novo Circo, que chegava ao Brasil com a companhia de Pierrot Bidon, em projeto no Rio de Janeiro.  O texto enfureceu circenses não só de São Paulo, mas do próprio Rio de Janeiro. O jornalista dizia: “O Novo Circo, movimento de renovação surgido na França na década de 1970, vai poder ser conhecido pelos brasileiros a partir deste ano”. Para nós, circenses brasileiros, era inaceitável que nem o jornalista nem o respeitável artista francês soubessem das inúmeras companhias brasileiras que já faziam sucesso no Brasil, chamando-se de “circo novo”.

Dois anos depois, em 1999, um grupo de circenses “novos”, envolvidos na recente fundação da Central do Circo, organizou, junto ao Sesc Belenzinho, em São Paulo (SP), o Circonferência – Festival de Circo Novo. No evento, foram apresentadas todas as companhias atuantes de circo “novo” de que a curadoria tinha notícia até o momento. Foi um marco na história do circo paulista e brasileiro (vieram companhias de todo o país). Nos debates, discutiram-se rótulos, e foi sugerido que éramos “contemporâneos”, em oposição aos “clássicos”, e não “novos”, em oposição aos “velhos”. Ficou clara a inadequação do título do festival, nunca usado novamente.

Em 2017, foi fundado em São Paulo um movimento político chamado “Circo Diverso”, para que os circenses não itinerantes de lona tivessem representação política e pudessem participar e atuar nas políticas públicas, demandando principalmente que somente nós (eu faço parte do movimento) pudéssemos avaliar projetos com as nossas características, da mesma maneira que somente os “tradicionais”, ou “itinerantes de lona”, possam analisar projetos de circos itinerantes. Trata-se de um movimento contra a exclusão. Até hoje a disputa segue, com muitos capítulos que escancaram o debate: o circo é múltiplo, misturado, diverso, diferente e generoso. Generoso como modo de produção, como linguagem artística, como grupo social. O circo é diverso.

Rodrigo Matheus é diretor de espetáculos circenses e professor de circo e teatro licenciado pela Faculdade Paulista de Artes – FPA. É ainda fundador e diretor do Circo Mínimo (1988), do Centro de Formação Profissional em Artes Circenses (Cefac, 2003 a 2011) e da Central do Circo (1999 a 2004).

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