MULHERES NO CHORO | A nova geração de cantoras e instrumentistas deste gênero da MPB

01/04/2024

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Novas gerações de cantoras e instrumentistas seguem legado das precursoras e mantêm vivo este patrimônio cultural brasileiro  

POR LÍGIA SCALISE

Leia a edição de ABRIL/24 da Revista E na íntegra

Poucas coisas têm tanto a cara do Brasil quanto uma roda de choro. Uma das primeiras manifestações instrumentais da música popular brasileira, o gênero surgiu no final do século 19, no Rio de Janeiro, como uma expressão urbana, criada a partir da fusão de elementos e músicas estrangeiras, principalmente portuguesas e africanas. Ao se popularizar, o choro atravessou os séculos, multiplicou-se em rodas formadas por todo o país e segue presente. No último dia 29 de fevereiro, o choro foi reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial do país, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). 

Se, por um lado, é admirável que as tradições do choro venham sendo transmitidas de geração em geração, há quase 200 anos, por outro, desde meados de 1970, começou-se a se questionar certos costumes das rodas de choro. Um deles é a prevalência de músicos homens, o que torna esse um ambiente pouco convidativo para a participação e expressão de mulheres musicistas.  

Ainda que esse gênero tenha tido como uma das principais expoentes a pianista, maestrina e compositora Chiquinha Gonzaga (1847-1935), as mulheres tiveram que se esforçar para conquistar respeito e espaço como instrumentistas e compositoras. “A roda de choro sempre foi uma espécie de ‘clube do bolinha’. A presença feminina nesses ambientes chegou a ser rotulada como ‘auxiliar do marido’, ‘aspirante a cantora’, ‘tocadora de chocalho’ etc.”, relatou Anna Paes, cantora, violonista e pesquisadora, no artigo “A presença feminina no choro”, para o projeto Brasil Toca Choro, da TV Cultura. 

A própria biografia de Chiquinha Gonzaga retrata a luta feminina para conseguir reconhecimento na cena da música popular brasileira. Arrojada, e por isso considerada subversiva, a pianista enfrentou inúmeros desafios ao romper com um casamento – numa época em que ainda não existia divórcio –, e, com isso foi afastada de seus filhos e familiares. Chiquinha passou, então, a dar aulas de piano para sobreviver até se tornar a primeira pianista do choro, consolidando o gênero ao lado de homens como Joaquim Callado (1848-1880), considerado o ‘pai do choro’.  

Foi somente na primeira metade do século 20, como relembra Anna Paes, que o crescimento do movimento feminista mundial e a gradual mudança de percepção sobre o papel da mulher na sociedade permitiram que outras artistas pudessem projetar seus nomes como profissionais do choro. Entre elas, destacaram-se Tia Amélia (1897-1983), Lina Pesce (1913-1995) e Carolina Cardoso de Menezes (1913-2000).  

Apesar de o choro ser essencialmente instrumental, uma brecha se abriu para a entrada das mulheres no canto ao longo do século passado. Elizeth Cardoso (1920-1990), Ademilde Fonseca (1921-2012), Zezé Gonzaga (1926–2008), Teca Calazans e Amélia Rabello são alguns dos nomes pioneiros. Já Dona Inah, Carmen Queiroz, Maria Martha, Ruth Eli, Dalva Torres e Kelly Rosa fazem parte do time de intérpretes contemporâneas do choro.  

Como defende Maria Souto, flautista, professora e pesquisadora, a presença das mulheres neste gênero musical só começou efetivamente a mudar a partir da década de 1970.  “Aconteceu uma mudança de paradigma e os instrumentos tocados por mulheres não se restringiam mais ao piano. Isso causou um retrato da mudança de costumes no choro, já que mulheres começaram a se arriscar a tocar instrumentos de todos os tipos, até então, dominados pelos homens.” 

Luciana Rabello, com o seu cavaquinho, tornou-se a primeira mulher a integrar um conjunto regional profissional de choro, no Rio de Janeiro, em 1976. Assim como também fez Nilze Carvalho, que começou ainda menina, aos seis anos de idade, tocando cavaquinho e conquistando espaço nas rodas e na mídia. Em São Paulo, Jane do Bandolim inaugurou as rodas de choro em meados dos anos 1980, tornando-se referência para Roberta Valente, que apareceu e conquistou a cena pouco depois.  “Nas últimas décadas, principalmente de 2000 para cá, passamos a ver um número cada vez maior de mulheres atuando com excelência na música popular. Rodas formadas somente por mulheres é outra mudança de paradigma na cena. Elas criam um novo capítulo na história do choro, ajudando a fortalecer e a dar visibilidade à crescente presença delas no gênero”, reflete Maria Souto. Na ativa desde 1994, Choronas é o primeiro grupo do gênero formado exclusivamente por mulheres e, desde então, não param de se multiplicar grupos femininos que vêm enriquecendo a cena do choro em todo o país. 

COISA DE FAMÍLIA 

No início dos anos 1980, o nome de Jane Silvana Corilov começou a circular pelas rodas de choro. “Tem uma menina tocando muito bem o bandolim”, dizia João Macacão, violonista 7 cordas e uma figura marcante na cena do choro paulistano. Não demorou para que os caminhos se abrissem para a menina prodígio, que passou a ser conhecida como Jane do Bandolim. A instrumentista tinha apenas nove anos quando ouviu o pai tocar bandolim pela primeira vez. “Contra a vontade da minha mãe, que queria que eu fizesse aulas de piano ou de balé, comecei a ter aulas de bandolim com meu pai. Ele me ensinou um pouco de música sacra e erudita, até que, aos 11 anos, ganhei dele o vinil Vibrações, do Jacob do Bandolim [1918-1969]. Esse era o incentivo que eu precisava.” 

Matheus José Maria

Jane do Bandolim em apresentação pelo projeto Instrumental Sesc Brasil, no Teatro Anchieta, Sesc Consolação. Foto: Matheus José Maria

Jane passou a fazer aulas de bandolim com um tio violonista. Depois, conheceu Walter Veloso, bandolinista que fazia parte, então, do Conjunto Atlântico, grupo representativo na cena do choro paulistano na segunda metade do século 20. “Com 16 anos, comecei a frequentar as rodas. Tomei muita bronca e ouvi comentários maldosos e machistas. Por outro lado, aprendi tudo que sei com eles. Também me senti acolhida. Quando teve alguma provocação, eu só desabafava com meu pai.” 

Tendo em vista essas dificuldades, a mãe da bandolinista custava em aceitar a escolha da filha. “Hoje eu entendo sua preocupação, afinal, só tinha eu de mulher no meio das rodas, né? Já meu pai, consciente da minha felicidade com o bandolim, dizia: ‘Desde quando a palavra de alguém vai ser mais forte do que você? Não estou te reconhecendo!’. Ele sempre teve razão. Eu sempre fui uma menina enxerida!”, brinca. 

Com o tempo, Jane construiu uma sólida carreira nas rodas de choro e foi uma das poucas mulheres a liderar seu próprio grupo, em 1993, batizado de Jane do Bandolim e o Miado do Gato. Em 1998, foi intitulada “a rainha do bandolim brasileiro” pelo Jornal da Tarde e jornal O Globo. Apesar de abrir espaço para outras artistas, Jane conta que demorou um bom tempo até encontrar outras mulheres na roda. “Comecei a ver uma menina tímida tocando seu pandeiro. Pouco depois, soube que era a Roberta Valente. Sinto muita alegria por ver tantas mulheres e alunas minhas, inclusive, dando show por aí. Quando alguma delas me pede um conselho, logo digo: ‘Ocupe o seu lugar e se preocupe em tocar bem’.”  

UMA PUXA A OUTRA 

Referência no choro e no samba de São Paulo, Roberta Valente tem uma trajetória de 35 anos de carreira como pandeirista, produtora, professora e pesquisadora de música popular brasileira. Ela é também uma produtora reconhecida por movimentar a cena, dando espaço para o trabalho de choronas e chorões das novas gerações. Neta de violonista, bisneta de bandolinista e filha de pais apaixonados pela música brasileira, Roberta começou a tocar violão aos 14 anos até que, aos 17, conheceu as rodas de choro. “Ali eu me encontrei e encontrei o meu mundo. Troquei o violão pelo cavaco, e logo me interessei pelo pandeiro. Eu era muito tímida e gostei da ideia de tocar pandeiro, escondidinha no palco ou na roda”.  

A ausência de mulheres no choro foi sentida desde o começo, mas Roberta pensava que eram as próprias mulheres que não queriam estar ali. “Eu era muito ingênua. Cheguei na roda deslumbrada, acreditando que qualquer uma poderia estar no choro, bastava querer. Só depois percebi o tanto de ‘sapo que tive que engolir’ para me manter naquele universo tão masculino”, desabafa. Um dos nomes mais admirados e respeitados na cena do choro, Roberta conta que outro ponto que a ajudou a circular pelas rodas foi o seu trabalho como produtora. “Sempre fui tão fanática pela música e pelos músicos, meus ídolos maiores, que nunca me conformei com os cachês aos quais eles se submetiam. Então, comecei a trabalhar para vender bem os shows deles. Fiz isso pensando em fortalecer o choro”, conta. Roberta também complementa que muita coisa mudou nesse cenário, apesar de ainda observar algumas resistências contra a participação das mulheres. “Infelizmente, o machismo ainda existe. Por outro lado, nunca vi tanta mulher tocando como vejo hoje. Comemoro muito esse momento e até penso que adoraria ter começado minha carreira agora”, constata. 

Valéria Martins

Importante nome do choro, Nilze Carvalho começou a tocar
cavaquinho aos seis anos de idade. Foto: Valéria Martins

 
ABRIR CAMINHOS 

Uma das principais referências do pandeiro, além de percussionista e cantora, Xeina Barros reconhece a importância de instrumentistas que a antecederam. “Se encontrei as portas abertas para participar das rodas de choro, é porque a Roberta Valente e a Jane do Bandolim já tinham passado por elas. Eu faço parte de uma geração que tinha para onde mirar”.  

Xeina começou a estudar pandeiro ainda criança, influenciada pelas rodas de samba que aconteciam na casa de sua avó, em Piracicaba, no interior de São Paulo. Aos 16, ganhou seu primeiro cachê e, aos 19, foi se profissionalizar no Conservatório de Música de Tatuí. Depois disso, mudou-se para a capital paulista, cidade que escolheu para construir sua carreira no choro.  

A pandeirista também reconhece a importância das formações femininas. “Essas rodas compostas por mulheres são um espaço importante de acolhimento, até mesmo para estudos e ensaios. É onde eu digo para as mulheres mais novas que a gente tem que seguir o exemplo das pioneiras e não baixar a guarda”, arremata. 

DE 2000 PARA CÁ, PASSAMOS A VER UM NÚMERO CADA VEZ MAIOR DE MULHERES ATUANDO COM EXCELÊNCIA NA MÚSICA POPULAR. RODAS FORMADAS SOMENTE POR MULHERES É OUTRA MUDANÇA DE PARADIGMA NA CENA. 

Maria Souto, flautista, professora e pesquisadora 

CHORO EM CORO 

De 23 de abril a 5 de maio, Sesc 24 de maio celebra várias gerações do choro 

A partir do dia 23 deste mês, quando se comemora o Dia Nacional do Choro – data atribuída ao aniversário do maestro, músico e compositor Pixinguinha (1897-1973) – o Sesc 24 de Maio realiza a quinta edição do Choraço, com dezenas de apresentações, oficinas, audições e bate-papos. “Esse é um projeto que busca oferecer ao público um panorama do choro, respeitando a história e a constante evolução do gênero. Para isso, convidamos artistas e grupos que fazem referência aos clássicos, ao mesmo tempo em que apresentam arranjos, interpretações e vozes contemporâneas”, destaca Jáderson Porto, técnico de programação da unidade. 

Nesta edição, as mulheres ganham destaque com Carmem Queiroz, que apresenta o espetáculo Choro cantado, Nilze Carvalho, que celebra os 40 anos do seu disco Choro de Menina, e Wanderléa, que apresenta o álbum Wanderléa Canta Choros (Selo Sesc, 2023). Também serão realizadas atividades formativas nos Centros de Música do Sesc São Paulo, nas unidades Consolação, Guarulhos e Vila Mariana, além de rodas e bailes gratuitos de choro, para crianças e idosos.  

O choro também é destaque na programação do SescTV deste mês, às terças-feiras, 21h30, com a exibição de quatro episódios do Instrumental Sesc Brasil: Dedo de Moça, dia 2/4; Deborah Levy, dia 9/4; Marcela Nunes, dia 16/4; e Choronas, dia 23/4. 

Osmar Moura

Na programação, a pandeirista Xeina Barros se apresenta com o grupo Água de Vintém. Foto: Osmar Moura

Confira destaques da programação:  

24 DE MAIO

Choro Cantado 

A cantora Carmen Queiroz celebra seus 40 anos de carreira no choro ao lado de Lula Barbosa e Maria Martha, com um repertório que apresenta a poesia de letristas como Catulo da Paixão Cearense e Bello de Carvalho. 

Dia 24/4, quarta, às 20h. 

Choro de menina – 40 anos 

A cantora, instrumentista e compositora Nilze Carvalho apresenta um espetáculo instrumental, com seu cavaquinho e bandolim, em um repertório comemorativo às quatro décadas da série de discos Choro de menina, lançados entre 1981 e 1984.  

Dia 3/5, sexta, às 20h. 

Wanderléa canta choros 

Wanderléa volta às suas origens musicais com show do disco homônimo lançado pelo Selo Sesc. Acompanhada pelo pandeiro de Roberta Valente, apresenta um repertório com canções de nomes como Joyce Moreno, Waldir Azevedo e Assis Valente, entre outros.  

Dia 4/5, sábado, às 20h, e dia 5/5, domingo, às 18h. 

Roda Água de Vintém 

Um dos principais conjuntos de choro da atualidade, o Água de Vintém comemora a volta aos palcos com o show 10 anos de choro. Com pandeiro de Xeina Barros, o quinteto apresenta repertório com obras tradicionais do choro, além de composições autorais.  

Dia 5/5, domingo, às 15h. GRÁTIS.  

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