Zé Celso sai de cena, mas deixa legado de revolução para a arte brasileira

31/08/2023

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Fundador do Teatro Oficina, José Celso Martinez Corrêa (1935-2023), PATRIMÔNIO DA CULTURA BRASILEIRA, tem ligação histórica com o Sesc São Paulo.

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Por Manuela Ferreira

Uma festiva celebração ao amor, em forma de cerimônia artística e ecumênica, foi um dos últimos atos da vida do dramaturgo, encenador, diretor e ator José Celso Martinez Corrêa (1935-2023). Aos 86 anos, cercado por amigos, familiares, artistas e intelectuais, ele trocou alianças com o ator Marcelo Drummond na noite do último 6 de junho. A união, que já durava 37 anos, foi formalizada no palco do Teatro Oficina Uzyna Uzona, sede da histórica companhia teatral liderada por Zé Celso desde 1958. No “templo dionisíaco de todos os santos”, como descrito no convite do casamento, os noivos, vestidos de branco, sorriram, de mãos dadas, enquanto a atriz Leona Cavalli abençoou o matrimônio, consagrado também no candomblé, pelo pai de santo Márcio Telles, e no rito indígena, por representantes do povo Guarani.

Depois de uma chuva de pétalas brancas, o beijo do casal selou a união, e o ritual apoteótico que começou ao som da Bachiana Brasileira Nº 5, de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), avançou noite adentro com os ritmistas da bateria da Escola de Samba Vai-Vai. Zé Celso, radiante, levantava os braços ao bradar a palavra símbolo da sua existência: “Evoé!”.

Para muitos dos convidados, no entanto, a celebração também significou um inesperado adeus ao encenador, que morreu um mês depois, em consequência de um incêndio em seu apartamento. E o Teatro Oficina, novamente, se encheu – o velório foi transformado em noite de festejos, canto e dança. Em um dos momentos de catarse, fãs, amigos e artistas de várias gerações entoaram os versos de um dos hinos do Oficina: o samba Meu cavalo tá pesado, gravado pelo trio Revista do Samba – formado por Letícia Coura, Beto Bianchi e Vitor da Trindade – no álbum Revista Bixiga Oficina do Samba (2006).

A música marcou a temporada da primeira parte da trilogia de Os Sertões: A Terra (2001), lendária encenação da companhia. Era com essa canção que Zé, na pele do líder religioso Antônio Conselheiro (1830-1897), conduzia o público ao início do espetáculo. Diz a letra: “Meu cavalo tá pesado / meu cavalo quer voar / atuar, atuar / atuar pra poder voar”. Assim como sua longeva trajetória pessoal e profissional, o ato final de Zé Celso será lembrado pela festa e música, elementos que regem os ciclos vitais, conforme dita a mitologia grega. Porque na vida e na morte, na gênese e em seu epílogo, a alegria era sempre a resposta deste homem que foi arte e revolução, até o fim.

“Precisamos inventar expressões para dar conta de alguém que era pura invenção. Nesse sentido, [Zé Celso] dá continuidade a uma tradição bem nossa, que remonta à antropofagia de Oswald de Andrade (1890-1954), na qual o mundo inteiro é matéria-prima para a criação. Relembro a energia de Zé Celso ao navegar em mares sem fronteiras, de Bertolt Brecht (1898-1956) a Euclides da Cunha (1866-1909), de Antonin Artaud (1896-1948) a Nelson Rodrigues (1912-1980), de Tchekhov (1860-1904) à Cacilda Becker (1921-1969). Fronteiras não fazem o menor sentido em sua cartografia. Suas encenações atraíram pessoas de identidades as mais variadas: verdadeiros rituais de encontro e ousadia poética”, escreveu o diretor do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda, em publicação no Instagram dedicada ao dramaturgo. Danilo foi um dos padrinhos de casamento do fundador do Oficina, de quem era amigo há mais de três décadas.

Zé é sem dúvidas o Exu das artes, do teatro. Não sei falar de Zé Celso no passado porque seu legado é presente

Paula Mares, cenógrafa

Crédito: Jennifer Glass

O DEUS DA REVOLUÇÃO. Nascido em Araraquara, interior do estado de São Paulo, Zé Celso estudou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Durante o período universitário, fundou o Grupo de Teatro Amador Oficina, junto aos atores Renato Borghi e Amir Haddad, colegas de curso. Na época, o teatro brasileiro estava polarizado entre produções que seguiam um modelo europeu – a exemplo do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) – ou um viés mais nacionalista, como o Teatro de Arena. As primeiras encenações do Oficina, Vento Forte para Papagaio Subir (1958) e A Incubadeira/As Moscas (1959), são autobiográficas. À medida em que se profissionalizou, no começo dos anos 1960, o grupo passou a se dedicar a montagens de teor mais realista, como Pequenos Burgueses (1902), do russo Máximo Gorki (1868-1936) e Um Bonde Chamado Desejo (1947), do norte-americano Tennessee Williams (1922-1983). Com o golpe civil-militar de 1964, o Oficina aprofundou suas buscas por uma linguagem cênica tendo como base uma perspectiva política, o que culmina na antológica montagem, em 1967, de O Rei da Vela (1933), escrita por Oswald de Andrade. A encenação é tida como a síntese de um teatro antropofágico – e Zé Celso foi alçado como o espírito da contracultura no país e representante do movimento Tropicália no tablado.

SER INFINITO. Já em 1968, com Roda Viva, de Chico Buarque, o diretor entrou de vez no alvo dos militares: o espetáculo, montado poucos meses antes da instauração do Ato Institucional nº 5 (AI-5) – que deu início ao período de maior repressão da ditadura – seria censurado, considerado subversivo e, posteriormente, proibido. A peça seria novamente encenada em 2018, no Sesc Pompeia. Após a estreia do espetáculo, no Rio de Janeiro, grupos conservadores agrediram os artistas. Meses depois, em São Paulo, integrantes do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) invadiram o Teatro Ruth Escobar e destruíram cenários, poltronas e camarim. Novamente, o elenco foi agredido – entre as vítimas estava a atriz Marília Pêra (1943-2015).

Com Galileu Galilei (1943), de Brecht, encenado pelo Oficina ainda em 1968, o grupo aprimorou as buscas por um teatro mais sensório e ritualístico, influenciado pelo dramaturgo Antonin Artaud. Em 1974, Zé Celso foi detido e, após 20 dias encarcerado e torturado, buscou exílio em Portugal, fechando as portas do teatro. A soltura teria sido fruto de uma ideia do cineasta Glauber Rocha (1939-1981), que falsificou um telegrama “assinado” por artistas como Marlon Brando (1904-2004), Orson Welles (1915-1985), Sophia Loren e Jane Fonda, exigindo a libertação do grupo. No país lusitano, Zé Celso filmou, em parceria com o cineasta Celso Lucas, o média-metragem O Parto (1975), sobre a Revolução dos Cravos, que colocou fim aos 48 anos da ditadura portuguesa. Em 1976, eles partiram para Moçambique, onde filmaram o documentário 25 (1977), sobre os movimentos anticolonialistas que levaram à independência do país africano.

Zé era um xamã, um poeta, um dramaturgo, um arquiteto, um urbanista, um sociólogo. A arte que ele criou extrapola barreiras e rótulos

Cyro Morais, ator

Crédito: Jennifer Glass

CANTAR A TRAGÉDIA. “Em 31 minutos, a dupla registra um parto e o florescer da Revolução dos Cravos, a libertação das colônias de ultramar e a chegada do socialismo ao mundo de fala lusitana. Com a libertação de Moçambique, em 1975, Zé Celso e Celso Lucas tomariam os rumos do país africano para realizar um alucinante e frenético registro das transformações provocadas pela Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), comandada por Samora Machel (1933-1986)”, detalhou a jornalista e crítica e cinema Maria do Rosário Caetano, em artigo publicado no portal da Revista de Cinema, em 6 de julho de 2023.

A jornalista ressalta que, depois do retorno ao Brasil, Zé Celso continuou sua carreira cinematográfica em duas frentes: “No resgate dos registros da peça O Rei da Vela e sua transformação em um longa-metragem, e na função de ator em filmes de terceiros. Cumprido o desejo de transformar a montagem da peça de Oswald de Andrade em um filme, Zé Celso transformou-se em requisitado ator de participações especiais em muitas produções — apesar disso, só chegaria a protagonista aos 84 anos, em Horácio (2019), longa de Mathias Mangin”, relatou Maria do Rosário Caetano.

Nesse novo ciclo, o Teatro Oficina experimentou diferentes gestões administrativas que interromperam, na década de 1980, a apresentação de espetáculos na Rua Jaceguai, 520, no bairro do Bixiga, no Centro de São Paulo. Além disso, o espaço cênico, cujo projeto arquitetônico é assinado por Lina Bo Bardi (1914-1992), ainda que tombado como patrimônio cultural de São Paulo em 1982, passou a ser motivo de uma mobilização que se estende até hoje: o grupo comercial que é proprietário de vários terrenos da região,
inclusive da área onde está construído o teatro, reivindica o espaço para a construção de um shopping center.

Não existe educação sem cultura. Com a educação, você pode criar um rebanho, mas com a cultura é impossível, porque a cultura desperta o espírito crítico, desperta o utópico, desperta o sonho, a poesia, a liberdade, e faz você entender através das máscaras sociais. Você passa a entender o coletivo. Você não vai ficar vendo só do ponto de vista da sua categoria, da sua classe. Você começa a ver as coisas de outra maneira.

José Celso Martinez Corrêa em entrevista ao Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, em 2013

TUDO SE RENOVA. Nos anos 1990, rebatizada como Companhia de Teatro Oficina Uzyna Uzona, a trupe de Zé Celso ganhou novo fôlego na busca da chamada “tragicomediorgia” como linguagem artística. Tais inovações resultaram em espetáculos transgressores, de alto teor contestatório e provocativo e que marcaram época nas artes cênicas do país, como As Boas (1991), Hamlet (1993), Para Dar um Fim no Juízo de Deus (1996), As Bacantes (1996) e Esperando Godot (2001).

Era 1998 quando as atrizes Bete Coelho e Giulia Gam dividiram o papel da atriz Cacilda Becker na montagem de Cacilda!. “O Zé era fascinante. Eu olhava nos olhos dele e tinha uma conexão: ficava apaixonada, encantada. Ele era teatro puro, era liberdade pura. Eu fiz Cacilda! com ele e a leitura de mesa era uma coisa que eu nunca tinha feito, de se sentar à mesa, ler o texto, compreender o texto – foi aí que eu vi que ele tinha uma cultura enorme, que ele conhecia altamente os atores, os autores”, recorda Giulia Gam.

Entre os anos 2002 e 2007, a companhia levaria para os palcos seu projeto teatral mais ousado até então: a transposição do romance Os Sertões, publicado em 1902 pelo escritor e jornalista Euclides da Cunha (1866-1909). A adaptação foi dividida em cinco espetáculos. Envolvido com o projeto desde a sua criação, Tommy Della Pietra, atualmente assistente de teatro da Gerência de Ação Cultural do Sesc São Paulo, trabalhou com Zé Celso por 15 anos. Ele destaca que Os Sertões marcou, na história do teatro brasileiro, o retorno do público para dentro da cena.

“Foi uma grande revolução. Os espectadores que haviam voltado ao Oficina entre 1996 e 1998 eram majoritariamente das classes médias paulistas, gente de teatro, acadêmicos; com Os Sertões, trabalhamos com crianças do bairro do Bixiga, do [antigo projeto comunitário chamado] Bixigão. Essas crianças entraram como coro para a peça e para as produções. Isso abriu o caminho para um novo público, mais diverso, e daí surgiu algo que eu não tinha visto até então: a tecnologia da inclusão do público em grande quantidade. Eram massas dançando, cantando, e o público que repetidamente comparecia foi, aos poucos, aprendendo. Algo incrível”, lembra Della Pietra.

Os cenários também eram outro idioma nas obras do Teatro Oficina, com um vocábulo próprio e suas idiossincrasias, como explica a cenógrafa Paula Mares. “Trabalhar com o Zé foi uma experiência linda. Ver como tudo é inspiração para dar forma a uma ideia, para materializar um pensamento, nada passa desapercebido. Ele não cansa de tentar outra vez, e não permite que a ideia se encerre nela mesma. O resultado que ele busca é sempre gancho para um novo pensamento, um novo caminho. Zé é, sem dúvidas, o Exu das artes, do teatro. Não sei falar de Zé Celso no passado porque seu legado é presente”, compartilha.

Verbo no infinitivo, Zé Celso era afeito a “reexistir” – como ele mesmo disse em entrevista à Revista SescTV, ao completar 80 anos – e assim o fez inúmeras vezes ao longo da vida. “Zé Celso criou muito mais do que uma companhia, um prédio onde se faz peças, uma forma de atuação. Ele, como muitos dos grandes artistas, criou uma forma de se ver o mundo. Não é exagero quando Camila Mota, atriz da companhia, fala nos eventos que vem acontecendo depois da sua ethernidade, que Zé era um xamã, um poeta, um dramaturgo, um arquiteto, um urbanista, um sociólogo. A arte que ele criou extrapola barreiras e rótulos”, arremata o ator Cyro Morais.

Zé Celso no papel de Antonio Conselheiro na montagem de Os Sertões, em 2004.. Foto: Adriana Vichi.
Zé Celso no papel de Antonio Conselheiro na montagem de Os Sertões, em 2004.. Foto: Adriana Vichi.

ZÉ CÉU SOL

A Queda do Céu, nova montagem do Teatro Oficina que deve estrear em 2024, é parte da histórica ligação da companhia com o Sesc São Paulo.

Muitos dos rituais artísticos liderados por José Celso Martinez Corrêa aconteceram em espaços do Sesc que se transformavam em “solo sagrado-profano”, segundo Danilo Santos de Miranda, diretor da instituição no estado de São Paulo. “Era onde a trupe catalisada por Zé Celso experimentava inéditas liturgias. E o ser-teatro torna-se ser-mundo”, escreveu Danilo em suas redes sociais, na homenagem que fez ao amigo de longa data.

Neste ano, inclusive, o Sesc Pompeia receberia o espetáculo em que Zé Celso estava trabalhando nos últimos meses, antes de sair de cena. Trata-se de A Queda do Céu, baseado no livro homônimo do escritor e xamã Davi Kopenawa Yanomami e do antropólogo Bruce Albert, publicado pela editora Companhia das Letras em 2015.

Zé Celso conduziu três leituras públicas no local, nos meses de abril, maio e junho, com parte do elenco, público e convidados. Dizia que este era o projeto mais importante de sua existência. A ideia do encenador era realizar uma montagem imponente, que reunisse um elenco formado, em sua maioria, por artistas indígenas – profundamente ligado à causa, Zé vivia um período de preocupação com a questão do marco temporal e a demarcação dos territórios indígenas. A companhia dará continuidade ao sonho do diretor, com estreia prevista para 2024.

Foi também no Sesc Pompeia que a companhia apresentou os espetáculos O Bailado do Deus Morto, neste ano, Esperando Godot (2022), Roda Viva (2018), As Bacantes (2016) e a trilogia de Os Sertões (2004). Uma das últimas montagens do grupo, Fausto (2022), com codireção de Fernando de Carvalho, estreou no Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros, ano passado. Já o Sesc Araraquara, no interior de São Paulo e cidade natal do diretor, foi palco de Macumba Antropofágica e da segunda montagem de Cacilda!, ambas em 2013.

“Zé Celso operou, como poucos, a metamorfose de expansão que transita do corpo individual para o corpo coletivo, deste para o espaço teatral – ah, o Teatro Oficina! –, do espaço teatral para o bairro do Bixiga, e daí para a cidade, para o país, para todo o planeta. Nessa dilatação que une arte e política, teatro e urbanismo, ele se envolveu em debates que dizem respeito à própria lógica de funcionamento da cidade. Falar mais parece ocioso, já que não é possível dar conta desse fenômeno que pudemos seguir de perto”, concluiu Danilo Santos de Miranda.

Assista a uma série de vídeos dedicada à trajetória do diretor.

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